‘Sou discriminada quando conto que a PM atirou em mim’, diz professora

    Professora tomou um tiro de bala de borracha no rosto quando voltava do cinema, em 2014; governo negou o crime e até a Defensoria ficou um ano sem lhe dar retorno

    A professora Patrícia Rosenko hoje | Foto: Arquivo Pessoal

    (*) Reportagem originalmente produzida para a 3ª edição do projeto Repórter do Futuro: Direito de defesa e cobertura criminal

    A professora de filosofia Patrícia Rodsenko pretende processar o governo do Estado de São Paulo por causa de um disparo de bala de borracha que atingiu o seu rosto, em 15 de maio de 2014, quando voltava do cinema. A decisão veio após a professora dar a entrevista abaixo, em que reclamou da Defensoria Pública de São Paulo por não dar notícias do seu caso há mais de um ano. Antes de publicar a entrevista, a Ponte entrou em contato com a Defensoria, que atribuiu a demora do processo a “documentos que estavam pendentes”. Ontem (19), a professora recebeu uma ligação da Defensoria sobre a possibilidade de abrir um processo.

    Segundo Patrícia, no telefonema o defensor contou que o caso dela está arquivado desde setembro de 2014, mesmo ano da agressão, por não ela ter apresentado identificação dos policiais envolvidos na agressão. O defensor deu a ela a possibilidade de abrir dois processos, um pedindo indenização ao Estado e outro criminal, contra os policiais envolvidos na operação. A professora disse que optou somente pelo pedido de indenização, já que a condenação dos policiais apenas provocaria “a transferência injusta da culpa do Estado para as pessoas”.

    Na noite da agressão, Patrícia Rodsenko estava com uma amiga saindo de um cinema localizado na rua Augusta, na região da avenida Paulista, em São Paulo, após assistir ao filme Hoje eu não quero voltar sozinho. Na mesma hora, acontecia ali uma manifestação contra a Copa do Mundo.

    Segundo Patrícia, ela e a amiga esperaram numa lanchonete da Paulista até que a região ficasse mais calma e, quando a avenida estava praticamente vazia, resolveram caminhar até uma estação de metrô. No percurso, Patrícia foi surpreendida com uma bala de borracha que atingiu seu rosto. O tiro quebrou seu nariz e o osso ocular no lado esquerdo da face, abaixo dos olhos.

    Na época, a Secretaria de Segurança Pública do governo Geraldo Alckmin (PSDB), em resposta à reportagem sobre Patrícia no Jornal Nacional, da Globo, disse que “em momento algum a Polícia Militar usou balas de borracha para conter os atos de vandalismo” e que “houve garantia do direito à livre manifestação”. A informação do governo foi desmentida pelo Hospital das Clínicas, que registrou o ferimento como ferimento por arma de fogo. Procurada pela Ponte, a SSP não se manifestou.

    Veja a entrevista dada por Patrícia no início deste mês.

    Quais informações você recebeu sobre o seu processo do dia da agressão até hoje?

    Patrícia Rodsenko: As informações são praticamente nulas. Por não ter condições para pagar um advogado, entrei com um processo pela Defensoria Pública. No começo eles davam todas as informações, pediam todas as provas que tinha do dia, como comprovante de cinema, do café, boletim… Inclusive, para fazer boletim de ocorrência, a defensora que me atendeu indicou um advogado para ir junto comigo e evitar qualquer tipo de constrangimento. Isso aconteceu em maio de 2014. Mas, a partir desse momento, foi tudo por minha conta.

    De lá para cá, toda vez que entro em contato com a Defensoria Pública para ter informações, eles falam que faltam alguns laudos da PM e da Polícia Civil a respeito das provas, das câmeras de segurança,… essas coisas todas. A última vez que consegui falar com eles foi no mês passado, mas foi uma fala sem informação concreta. Eu ligo para lá e eles falam que o defensor não pode me atender. Fui informada uma vez que meu caso seria redigido para o juiz tomar conhecimento. Ou seja, faz três anos que isso aconteceu comigo e até agora nenhum juiz tem conhecimento do caso. Um defensor entrou em contato comigo em setembro do ano passado falando que uma carta seria redigida e estaria na mão do juiz num prazo de 10 a 15 dias. Faz um ano e isso ainda não aconteceu. Deve estar em cima da mesa dele, né?

    Enfim, sobre o meu caso, toda informação que tenho é essa.

    A professora após ser baleada no olho pela PM paulista | Foto: Arquivo Pessoal

    Alguém da Secretaria de Segurança Pública entrou em contato?

    Patrícia: Não. A Secretária de Segurança Pública, jamais. Na verdade, o único depoimento que eles deram foi quando aconteceu o incidente. Como teve uma matéria divulgada na Rede Globo, eles alegaram simplesmente que não utilizaram algum tipo de bala de borracha ou bomba de gás, e que eles tinham dado total apoio a manifestação pacífica. O que não foi verdade.
    Foi isso. Eles nunca entraram em contato comigo. Tive que ir atrás de tudo, de todo o processo pela defensoria pública, apenas. Até mesmo no boletim de ocorrência, laudos médicos, pois passei por duas cirurgias… tudo isso fui eu que tive que ir atrás.

    Após o ocorrido, você teve contato com outras vítimas da PM em manifestações?

    Patrícia: Sim. Tive contato com a Elisa. Ela foi vítima uns seis meses depois, levando um tiro de bala de borracha no braço. Ficou muito ferida também, mas ela resolveu não ir atrás, não fazer queixa. Enfim, ela até fez alguns relatos nas redes sociais, mas preferiu não seguir adiante. E tive contato com o William também. Em 2015, ele participou de uma manifestação do Movimento Passe Livre. Nesse ato, ele estava de bike e, quando a manifestação encerrou em frente à Prefeitura, no viaduto do Chá, ele levou um tiro de bala de borracha no olho e por sorte não ficou cego. Até hoje ele diz que a visão dele não é a mesma de antes. Tem vários relatos dele nas redes sociais também. Inclusive, ele entrou com um processo, mas até agora não tem nenhum parecer. É que a gente sabe que esses processos contra o Estado demoram muito tempo e acabam caindo no esquecimento.

    Você acredita que ter sido agredida pela PM, mesmo não participando da manifestação, torna o seu caso mais grave?

    Patrícia: Não. Eu não acho que meu caso foi mais grave. Eu sou tão vítima quanto. Diante da truculência do policial não tem o mais grave ou menos grave. Eu acho lastimável que a gente tenha a polícia do jeito que ela é, que resolve as coisas dessa maneira. Eu fui muito discriminada e até hoje sou quando falo dessa história. Por parentes, parentes policiais, que dizem que a PM é o melhor exemplo de segurança pública que o Estado tem, que o país tem. Eles acham que a errada fui eu, que estava no lugar errado, na hora errada e que, se eu não tivesse saído da minha casa, nada disso teria acontecido. Que foi um problema meu, que é um caso isolado e de que os policiais estavam lá apenas para manter a ordem. O que não é verdade, pois no meu caso específico eu nem tinha ido para a manifestação. A manifestação tinha até acabado e eu estava esperando apenas o metrô abrir. E, mesmo em atos em que a manifestação está ocorrendo, a gente sabe que essa maneira de lidar é inadequada. Existe um protocolo que precisa ser seguido nesses casos e eles não utilizam. Eu escutei várias vezes, de policial, que eles não são treinados para dar tiro na perna de vagabundo, então, se eles têm que atirar, eles vão atirar na cara mesmo. Então quem é o vagabundo na história? Todo mundo que está na rua, no momento que eles estão ali servindo ao Estado.

    A agressão ocorreu há aproximadamente três anos e cinco meses. Persiste algum trauma?

    Patrícia: Sim. Tem trauma, sim. Mais que o físico, o trauma psicológico. Hoje, de certa maneira, é superado, mas, durante alguns meses, eu tive uma espécie de síndrome do pânico. Não me sentia à vontade em sair na rua, principalmente se cruzava com uma viatura ou policial. Era motivo de chorar e de não me sentir nada segura. Eu comecei a ter umas crises de ansiedade, a ponto de ir ao hospital achando que ia ter um infarto. Era um estresse pós-traumático. Segundo a psicóloga, é algo comum com vítimas de situação de choque e traumas repentinos. É algo que vou ter que levar para a vida, é uma questão minha agora. Como que supero? É no dia a dia. O trauma físico também foi ruim, afinal, passei por duas cirurgias e agora em outubro tenho mais uma consulta médica, pois faz somente um ano da última cirurgia que fiz. Até hoje minha respiração nunca mais foi a mesma. Claro que está melhor do que estava no primeiro momento do incidente, não tenho a respiração que sempre tive. Tive que fazer uma cirurgia reparadora porque quebrei o osso do nariz e o osso do maxilar. A gente tem que carregar no dia a dia, tentando superar.

    O que você espera que aconteça no prosseguimento do seu processo?

    Patrícia: Eu espero, no mínimo, no mínimo, que venha logo para o conhecimento de um juiz. Que ele venha entender a real situação. Mas isso é o que eu espero. E que tenha uma indenização, acho que é o mínimo que o Estado pode me dar. Independente do valor, que nunca vai pagar o que eu senti, o que eu sofri. Mas, sendo sincera, eu sou bem descrente que isso vai acontecer, porque a gente já tem casos de algumas pessoas que tiveram fins piores que o meu, chegaram a realmente perder partes do corpo, como a visão, e que foram nas suas sentenças declaradas culpadas por estarem na rua e se colocarem na frente do policial. Infelizmente, a nossa justiça tem esses olhos, onde o policial faz sem ver e está certo sempre. Então, eu espero receber essa indenização que seria o mínimo, mas eu sou bem descrente quanto a isso.

    Você é professora de filosofia. A violência é também um caso que pode ser discutido dentro da filosofia. Como você vê a PM na nossa sociedade?

    Patrícia: A PM na nossa sociedade é um dilema que está aí para ser discutido todos os dias. Eu falo isso claramente, não só por ser da área da educação, mas também por morar na periferia da cidade e a gente vê o que é o serviço da PM aqui. Eu tenho clareza de que o que aconteceu comigo e com outras pessoas no centro é coisa leve perto do que acontece na periferia, porque na periferia o policial não entra com uma arma de bala de borracha, ele entra com uma arma para matar, mesmo, arma de fogo. E ele não vai dar um tiro para te pegar, vai te dar um tiro para te calar, te matar. E isso é absurdo, porque aí a gente vê: para que serve a PM? A quem defende? A quem ela protege? Ela protege quem tem bens, a quem é conveniente. Mas na periferia todos os dias as pessoas morrem na mão dessa própria PM, que deveria dar segurança para a população.

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