‘Bala perdida agora tem endereço’: indenização para vítimas é ponto de partida para evitar mortes

STF decidiu que Poder Público deve indenizar vítimas ou familiares de mortos em operações, mesmo com perícia inconclusiva. Decisão deve abrir debate sobre qualidade da perícia policial no Brasil, apontam especialistas

Ato contra a violência policial na Avenida Paulista em junho de 2022, no centro da cidade de São Paulo | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

Em junho de 2015, o auxiliar de pedreiro Vanderlei Conceição de Albuquerque, 34 anos, foi atingido por um tiro em casa. O morador do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, morreu mesmo tendo sido levado a uma Unidade de Pronto-Atendimento. A Força de Pacificação — composta pelo Exército — atuava na comunidade naquela data. Houve troca de tiros, mas a perícia não conseguiu dizer de onde partiu o disparo. A busca da família de Vanderlei pela responsabilização do Estado teve consequência histórica. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela reparação dos familiares do pedreiro e que, em casos como o dele, o Poder Público deve pagar indenização por morte ou ferimentos. 

A decisão é importante, apontam especialistas ouvidos pela Ponte, tanto por obrigar o Estado a moderar o uso da força qunato por colocar a questão das perícias policiais no centro do debate. “É o Estado reconhecendo sua falha”, diz Maria Isabel Couto, diretora de Dados e Transparência do Instituto Fogo Cruzado.

Desde que passou a atuar, em julho de 2016, o Fogo Cruzado mapeou 1.554 pessoas feridas ou mortas por bala perdida. Esse número soma dados de Rio de Janeiro, Bahia, Pará e Recife. Em 49,6% dos casos, as vítimas foram baleadas em ações ou operações policiais.

Maria Isabel Couto afirma que o STF inflama a discussão sobre a revisão dos protocolos de uso da força. “Esperamos que ela sirva como motivador tanto dos governos estaduais quanto para a União, para revisarem os protocolos do uso de força das suas polícias”, diz.

Em sessão na quinta-feira (11/4), o STF decidiu que o Estado deve ser responsabilizado, na esfera cível, por morte ou ferimento de vítimas de disparos em operações de segurança pública. Com isso, o poder público deve indenizar a vítima ou os familiares. Para não ser responsabilizado, é o Estado quem deve provar que os agentes não foram responsáveis pela morte ou ferimento.

“Essa decisão só foi possível porque tinha uma mãe lutando”, diz Fransérgio Goulart, coordenador executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), em referência ao processo que resultou na decisão. 

O posicionamento também traz um ponto importante em relação à bala perdida, defende Fransérgio. “Ela era de ninguém e agora essa decisão aponta que, por ação ou por omissão, a responsabilidade é do Estado brasileiro.”

Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), concorda. “Não dá para pensarmos em um Estado que age sem consequências, sem prestar contas, sem ter algum parâmetro avaliativo para o curso das suas ações”, diz Hirata.

O que acontece hoje é que os familiares têm que provar que seus parentes mortos ou feridos são inocentes, fala o pesquisador. Isso passa por ter que provar que o morto não ofereceu resistência, por exemplo, a uma ação policial. Com a decisão, avalia, o STF recoloca duas questões fundamentais: a presunção de inocência e a responsabilização do Estado por seus atos. 

Perícia em foco 

Central na decisão do STF, a independência nas perícias é considerada fundamental pelos especialistas. “A perícia no Brasil é feita pela própria polícia, pelo próprio ator, que muitas das vezes produz a morte”, diz Fransérgio Goulart do IDMJR. Para o pesquisador, o posicionamento e as denúncias trazidas pelo caso Marielle Franco (onde o relatório da Polícia Federal fala em negligência na perícia) reacendem o debate sobre uma perícia independente das polícias. 

O IDMJR defende que a perícia deveria ser feita por profissionais da saúde. Tecnólogos, peritos formados pelo Estado, mas não policiais. “Esse é o grande salto de qualidade”, aponta Fransérgio.

A discussão já estava pautada em decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a partir do caso Favela Nova Brasília — uma incursão policial no Complexo do Alemão que matou 13 homens, em 1994. Na sentença, a corte destacou que as perícias no Brasil deveriam ser independentes e autônomas.

Para Hirata, a decisão do STF pode ter como consequência perícias mais independentes e autônomas. Ele diz que os peritos estão submetidos a uma cadeia institucional difícil. No Rio de Janeiro, a perícia é uma superintendência (coordenação) na própria Polícia Civil, coordenada por um delegado. “Fica muito difícil imaginar uma autonomia”, fala. 

Ainda no Rio de Janeiro, a própria Polícia Civil atua em operações ostensivas, como na Chacina do Jacarezinho, segunda operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, com 28 mortos. Isso é ainda mais grave para a garantia de perícias independentes. 

Reportagem da Ponte mostrou que muitos locais de crime na Chacina do Jacarezinho não foram periciados e os poucos que foram não puderam passar por um trabalho minucioso, pois os peritos foram apressados pela Polícia Civil. 

Para Fransérgio, é preciso agora ter atenção em relação ao cumprimento da decisão do STF. Ele diz que muitas das decisões acabam ressignificadas para agir pela manutenção de situações de violência. 

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O pesquisador cita como exemplo a ADPF das Favelas, na qual o IDMJR é amicus curiae. Durante a pandemia, foram suspensas as operações em favelas via STF. Isso diminui logo nos primeiros três meses os indicadores de letalidade policial. 

Fransérgio diz que o Estado usou da própria decisão judicial para voltar a agir. O “excepcional” do qual fala a decisão passou a ser justificado para voltarem às ações. Para ele, é necessário agora um acompanhamento minucioso do trabalho das perícias e do Ministério Público em relação aos casos. 

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