Dexter: ‘Faltam Marighellas, pessoas que lutem em prol do povo’

    Rapper analisa falta de referências políticas como Carlos Marighella, assassinado pela ditadura militar há 50 anos e considerado ‘inimigo público número 1’

    Rapper utiliza sua história para incentivar jovens e egressos do sistema prisional | Foto: Reprodução/Facebook

    Inimigo público número 1. Assim era conhecido Carlos Marighella, principal militante no combate à ditadura militar brasileira de 1964 a 1985. Fundou a ALN (Ação Libertadora Nacional), lutou pela democracia com armas e palavras, como escritor que era. Pessoas como Marighella, morto há exatos 50 anos por agentes da repressão, fazem falta no Brasil. É a avaliação de Marcos Fernandes de Omena, 46 anos, mais conhecido como rapper Dexter ou Oitavo Anjo.

    Assim como Marighella, Dexter tem na palavra a sua munição. É com o rap que mostra os caminhos que trilhou no crime e, depois, no “exílio”, como define a vida na prisão. Depois das grades, prefere aconselhar quem trilhou caminhadas similares, tarefa que abraçou no Projeto Responsa, coletivo que busca oportunidades de renda para quem deixou o “exílio”, se tornou egresso do sistema prisional e busca uma nova vida. Os olhos de quem o assiste brilham ao dar a letra do que é ser responsa na rua. Em entrevista à Ponte, Dexter conta como referências como a do Inimigo Público número 1 fazem ao país. “Faltam pessoas que lutem em prol do povo”, define.

    O rapper vai além: avalia a esquerda política brasileira, conta como é viver em país de políticos como o presidente Jair Bolsonao (PSL) e o governador de São Paulo, João Dória (PSDB). Da vivência que tem no cárcere, tem uma visão preocupante para o futuro. “Privatizar o sistema prisional é a nova escravidão. Preparem-se. Abram suas caixas de ferramentas”, diz, citando a investida de Doria em colocar a iniciativa privada na gestão de presídios.

    Ponte – Como é para você, negro, de periferia e rapper, viver em um país governado por Jair Bolsonaro e em um estado comandado por João Doria?
    Dexter –
    É difícil. Eu vivo em uma linha do perigo direto. Ando sobre ela. Esses caras não me representam, não representam nosso povo em nada. Quando você representa um perigo para esses caras, aí o Rap representa, o Responsa representa por estar educando as pessoas, você é um alvo. Tudo em relação a nós, com esses caras, é uma piada. Eles sabem tudo de nós, tudo que fazemos. Vivemos em perigo constante, é difícil ver se sua liberdade de expressão está assegurada em um país onde a repressão voltou a ser pauta um na cartilhas desses caras. É perigoso para caralho ser quem a gente é, só que a luta é maior do que qualquer pensamento que possamos ter em relação à segurança. Temos, claro. O amor pela luta, para fazer com que o outro tenha benefícios, é maior do que isso. Continuamos, mas é perigoso.

    Ponte – Por que você acha que a população abraçou discursos belicistas, de combater a violência com mais violência?
    Dexter –
    No Brasil, a violência está instalada. Tudo eu vejo como uma estratégia do sistema para eleger esse tipo de cara. Se o [Paulo] Maluf [ex-governador de São Paulo] entrar na próxima eleição, ele ganha. É um cara que sempre falou de Rota [tropa mais letal da PM paulista] na rua. É do brasileiro não dar segurança e querer segurança. Olha que loucura! Quando esses políticos falam em nome da opressão, do gatilho disparado sem normas, sem regras, não dá outra. As pessoas exigem uma certa segurança que no Brasil não é possível, a não ser pela pena de morte que está instaurada aí. Essas pessoas são quem autorizam essa pena de morte e elas não se dão conta disso por tudo ser manipulado.

    Ponte – Tem faltado personagens como Carlos Marighella?
    Dexter –
    Opa, claro! Tem faltado gente com boa intenção para com o povo, certo? Estão faltando Marighellas, que acreditam ma força do povo, que lutem em prol do povo. Mas tem muita gente boa também. O povo é maioria, as que querem lutar contra, felizmente, são minoria. É um grande contingente, mas é minoria.

    Ponte – Como você vê a polícia brasileira?
    Dexter –
    A polícia mata mais do que uma guerra na Síria. Quem devia nos proteger! É uma política criada e chamamos isso de política do medo. O pobre, que já tem a falta de informação, infelizmente, já é alvo de manipulação a vida inteira, o cara que sai de casa às 4h da manhã e volta 20h, muitas vezes já bêbado, agride a mulher, não tem tempo de ter informação. Esse cara votou no Bolsonaro. Acredita? Mesmo morando na quebrada. O que fizeram com o Lula? Existem duas coisas: esse povo votou, não foi a maioria, e tem essa parte que abdicou de ir às urnas. Tanto que Bolsonaro é eleito com votos a menos do que quem se absteve, brancos e nulos, quem votou no Haddad e outros presidenciáveis. O que acontece: os votos que elegeram ele foram bem menores dos que os que não foram às urnas, também pela nossa política ser desacreditada. O sistema ganha de tudo quando é lado. Faz com que você não acredite na política e te desanima e, automaticamente, quem acredita em um cara como esse, que não tem uma política direcionada para o povo, vota nele. E ele vem falar de segurança e essas pessoas votam nele. Para você ter uma ideia, minha sogra ia votar no Bolsonaro. Aí eu fui na ideias, para o combate. Disse para ela: “Como assim? Já parou para pensar que sua filha é branca, mas seu genro é preto? Parou para pensar isso, aquilo, eu sou rapper, pá”. E ela sacou. Não votou nele. Tive que virar o jogo dentro de casa, graças a Deus eu consegui.

    Ponte – O Brasil teve esquerda em sua história?
    Dexter –
    Eu considero o PT um partido de esquerda. Dadas as proporções, é isso. Mas o que é a esquerda de fato? Já vi essas questões sendo levantadas em Facebook, em algumas páginas. Concordo com algumas, outras não. Agora, supostamente somos de esquerda pela logística. Dentro dessa realidade, nós somos esquerda. Precisava estudar um pouco mais a fundo esse assunto, mas, pelo raso, não posso te dizer que existe “a esquerda”, só que existem os movimentos sociais de esquerda.

    Ponte – Falando de sistema, governantes têm apresentado a privatização dos presídios como solução para a crise do encarceramento. Como avalia essa proposta?
    Dexter –
    É a nova escravidão, vou te falar o quê? Preparem-se. Abram suas caixas de ferramenta. Nova escravidão… O Estado tirando sua responsabilidade e colocando na mão de senhores de engenho, de quem tem grana, tem uma condição financeira estável e que quer que o povo se foda. Transformaram humanos em riqueza, em dinheiro. Já somos isso. O sistema carcerário é uma máquina de fazer dinheiro, muito dinheiro. Hoje um preso no estado de São Paulo custa de R$ 2,4 mil a R$ 2,6 mil por mês. Porra, paga isso para o cara ficar em casa, estudar. E isso não vai para o preso, quem ajuda são as famílias. O ser humano preso hoje é isso, e não vem de 2019, é de 1980. O plano é esse, mesmo: do afastamento, isolamento e gerar ódio, raiva para que esse cara não saia socializado. Digo mais: falar de ressocialização em um país que as pessoas nem socializadas são é complicado. Isso é bonito para quem?

    Ponte – Existe ressocialização no Brasil?
    Dexter –
    Ressocialização, reinserção são palavras que carregam amor, mas não são praticadas, assim como o amor não está sendo praticado. Olha que loucura. O amor é praticado por nós que somos iguais. Para você ver: o Leonardo DiCaprio, com a ONG dele, doou 5 milhões de dólares para a Amazônia. É necessário que pessoas de fora venham para resolver problemas do Brasil. Somos um país rico em minérios, grãos, plantio, algodão, um grande exportador, mas isso está indo para o bolso de quem? Esses R$ 2,7 mil [ vai para o bolso de quem, se não chega de forma adequada e ética para o sistema carcerário? As pessoas nos olham dizendo que somos do time do mimimi e não é isso, é uma realidade existente no país.

    Ponte – E vimos massacres com 111 mortos recentemente em Manaus dentro de presídios administrados pela iniciativa privada…
    Dexter –
    Isso também é um jogo do sistema. Acho que existe alguém que dá uma ordem, do tipo “é hora de desafogar, estão dando muito problema para nós”. E aí acontecem os 111 mortos, que não são 111. Tem quem estuda e afirma que são, de fato 111, que tiveram contato aos documentos, mas conheci gente no Carandiru anos depois que ajudou a levar mais de 200 corpos. Então, você acha que vou acreditar? Não acredito nessa realidade. O lance é continuar fazendo com que tudo funcione da mesma maneira como sempre funcionou. O cárcere adoece, no mínimo. No mínimo. E voltamos lá para cima e qual governo coloca no mesmo presídio facções que são rivais? Qual governo em sã consciência faz isso? A não ser que seja em sã consciência para desafogar. Mata. Nós nem sabemos o número de cadeia que nós temos no Brasil.

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