‘Educação era a única arma que eu deveria ter pegado na minha vida’

    Ontem traficante, hoje escritor: Marcos Lopes deixou drogas, biqueira, armas e o poder quando percebeu que não tinha amigos além de uma pistola .357

    Marcos criou o Projeto Sonhar, que dá assistência a jovens da periferia | Foto: arquivo pessoal

    Aos 16, era o dono da boca, no Jardim Santo Antônio, extremo sul de São Paulo. Dezesseis anos depois, aos 33, ele está em Boston, nos Estados Unidos. Mudou de país para se especializar em literatura estrangeira. O que aconteceu nesse meio tempo renderia um filme.

    Marcos Lopes quase morreu na disputa pela biqueira que comandava. Os anos de 1990 eram especialmente sangrentos na região. Jardim Santo Antônio, Jardim Ângela e Capão Redondo: as três áreas vizinhas ganharam o apelido de triângulo da morte, uma das mais violentas do mundo na época.

    Com o crime, ele ganhou poder e dinheiro. Mas perdeu tudo, em especial, os parceiros. “Talvez eu tenha mais amigos no cemitério São Luís do que na rua.” Daqueles tempos, a contabilidade é pesada. Os amigos estão presos ou mortos. E a melhor amiga ficou nesta última lista. Foi o assassinato dela que causou uma virada.

    De uma infância pobre com pai alcoólatra, Marcos se viu no mundo do crime cedo. Aos 12, conheceu as drogas. Aos 14, queria fazer parte do grupo e topou assaltar a cantina da escola. “Fui expulso e a diretora falou que eu era burro e não passaria dos 20 anos, o que me assombrou até os 31.” Na rua, conheceu um homem que sabia tudo de estelionato. “Ele andava arrumado, cheiroso, era alguém melhor para me espelhar do que meu pai que estava sempre bêbado.” Pela primeira vez foi um bom aluno. Aprendeu tudo sobre golpes e fraudes.

    Projeto criado por Marcos atendeu mais de 500 jovens | Foto: arquivo pessoal

    Para sair da mira da polícia, o tal homem foi para o Rio de Janeiro e Marcos seguiu atrás. Fugiu de casa e o acompanhou. Mais uma escola, e de novo, excelente aluno. Dessa vez, Marcos aprendeu tudo sobre gestão de tráfico de drogas. Seis meses depois, de volta à São Paulo, ele colocou teoria em prática. Não demorou para ser o dono da boca. Tinha 16.

    Dinheiro, poder, mortes. Uma rotina sem fim. A disputa pelo ponto de venda de drogas estava acirrada. Na guerra entre traficantes, um dia, Marcos se viu sozinho e sem dinheiro. Precisava garantir o enterro da melhor amiga que tinha sido assassinada no dia anterior. Só conseguia lembrar da ativista conhecida até hoje no bairro. Foi pedir um empréstimo para Tia Dag, da Casa do Zezinho, que atende crianças em situação de vulnerabilidade. Ouviu: “Te empresto o dinheiro, mas quem é que vai fazer o seu enterro? Você será o próximo!”. Ele lembra: “Eu estava só, apenas com a minha 357”. Tia Dag falou de sonhos e o convidou a retomar os estudos. “Na verdade, a minha escolha era se eu ficaria vivo ou não.” Aceitou a mão estendida.

    Enterrou a amiga e voltou a estudar. Deixou drogas, biqueira, armas e o poder. Finalizou o ensino médio e conseguiu entrar na faculdade de Letras. A literatura nessa altura já era uma paixão. “Li ‘Capão Pecado’, do Ferréz. Mudou minha vida. Também queria contar o quão violento era o nosso bairro.” Em 2009, escreveu o livro “Zona de Guerra”, onde narra a própria história.

    Não bastava. Desejava retribuir. Foi ser voluntário em uma instituição. “Eu entrei nas favelas e pela pergunta ‘Qual seria seu sonho se pudesse estar em outro lugar?’ resgatei o primeiro jovem do tráfico.”

    Já formado, voltou à escola de onde tinha sido expulso anos antes. Agora como professor. E implantou um programa de erradicação às drogas. “As pessoas acreditam que quem vem da periferia não pode ser escritor, não pode ser professor, tem que ser sorte ou algo que você tem talento, que nada pode ser desenvolvido. Pela literatura e pela educação você pode ser o que realmente você quiser.”

    Professor mora atualmente nos Estados Unidos, um dos sonhos de criança | Foto: arquivo pessoal

    Depois de três anos, criou o “Projeto Sonhar”, com o educador social Alex Santana. A ONG faz assistências personalizadas – de moradia, questões jurídicas e psicológicas. Em cinco anos, atendeu mais de 500 pessoas – direta ou indiretamente. “Os meninos da periferia são muito carentes de boas referências. Eles olham (para mim) e pensam ‘Eu tenho uma chance’.”

    No final do ano passado, tomou coragem e investiu em mais um sonho: morar fora do Brasil. “Por que não?” Passou o natal e o réveillon em Boston. Agora, Marcos pretende ficar, pelo menos, dois anos nos Estados Unidos para estudar literatura estrangeira. E talvez escrever mais um livro, enquanto no Brasil, o Projeto Sonhar continua. “O projeto é minha vida, mas não o idealizei para ficar embaixo da minha asa… Ele segue com o Alex que é um grande conhecedor da quebrada.”

    No frio de 10º C negativos, Marcos recorda o sonho de criança de ser jogador de futebol para conhecer o mundo e dar entrevistas. “Mas a literatura, os estudos mostraram que eu poderia ser mais que jogador, hoje eu vejo que a educação era a única arma que eu deveria ter pegado na minha vida.”

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