“Estado brasileiro tem falhado na garantia do direito à vida”, diz Anistia Internacional

    Mais de 800 pessoas foram mortas por policiais no estado do Rio de Janeiro em  2016, de acordo com a organização, que lança relatório sobre o cenário dos Direitos Humanos no Brasil e no mundo nesta quarta-feira (22/02)

    A diretora da Anistia Jurema Werneck fala sobre o relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2016/2017”, ao lado da assessora de Direitos Humanos da organização Renata Neder e das ativistas Marion Gray-Hopkins e Shakelia Jackson. | Foto: Reprodução/Anistia


    O “uso desnecessário e excessivo da força” pelas polícias brasileiras, especialmente contra jovens negros de periferias, é destacado pela
    Anistia Internacional em relatório que analisa o cenário dos direitos humanos em 159 países. Somente no estado do Rio de Janeiro, mais de 800 pessoas foram mortas por policiais em  2016 e 20% dos homicídios são cometidos por policiais em serviço, segundo a organização.

    O documento O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2016/2017, que será lançado na noite desta quarta-feira (22/02) no Centro da capital fluminense, também critica o uso indiscriminado por policiais das chamadas armas menos letais, como balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, na repressão a manifestações, e traz reivindicações aos governos federal e estadual com relação às políticas voltadas à defesa e promoção dos direitos humanos no país.

    Mais do que dados, o material conclama a sociedade civil ao debate e à luta em defesa dos direitos humanos. “Esse relatório pode ser visto também como um outro tipo de oportunidade, a de ser o elo de ligação entre a necessidade de mudança e aquelas pessoas que estão, nesse momento, esperando a faísca, esperando o momento para se engajar e fazer parte desse movimento internacional que quer mudar o mundo”, afirmou a diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck. “Nenhuma crise é justificativa para perda de direitos”, ressaltou.

    “O Estado brasileiro tem falhado duplamente na garantia do direito à vida: de um lado, mais um ano se passou sem que fosse implementada uma política e um programa nacional de redução de homicídios e, de outro lado, os homicídios cometidos pela polícia permaneceram muito altos, em alguns estados aumentaram”, criticou a assessora de Direitos Humanos da Anistia, Renata Neder. “Ou seja, o Estado tem falhado na sua responsabilidade de proteger o direito à vida de todas as pessoas”, completou.

    Com a lamentável marca de 60 mil homicídios por ano, o Brasil é o país em que mais se mata no mundo, e a violência letal não afeta todas as pessoas da mesma forma no país, de acordo com a Anistia. “A principal vítima de homicídio é o jovem negro do sexo masculino. A maior parte desses homicídios, cerca de 70%, é cometida por armas de fogo e raramente é investigada. Apenas cerca de 5 a 8% dos homicídios no Brasil são investigados”, afirmou Neder.

    A maior parte dos estados brasileiros, segundo a assessora, não guarda registros do número de pessoas mortas pela polícia em serviço, motivo pelo qual não há dados nacionais sobre isso. “Onde temos dados, como no Rio de Janeiro, a gente já sabe que 20% do total de homicídios são cometidos pela polícia em serviço. Em 2016 foram mais de 800 pessoas mortas por policiais em serviço no estado, o que consolida uma tendência de aumento no número de pessoas mortas pela polícia que recomeçou a partir de 2014”, analisou.

    Esse número chegou ao ápice em 2007, quando 1330 pessoas foram assassinadas pela polícia em serviço no Rio, e foi reduzido significativamente entre 2007 e 2013, mas voltou a subir drasticamente de 2014 pra cá.

    Uma das causas do aumento, aponta o relatório, é a ausência de investigação e de responsabilização de agentes da segurança pública que praticam homicídios, o que aprofunda o ciclo de violência e nega às famílias das vítimas o direito à justiça. Outra causa é a excessiva militarização das favelas durante os megaeventos que o Rio sediou nos últimos três anos: os Jogos PanAmericanos em 2007, a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016.

    No ano passado, o Relator Especial da ONU para questões relativas a minorias chegou a apresentar ao Conselho de Direitos Humanos a recomendação de que seja abolida a classificação automática dos homicídios cometidos por policiais como “resistência seguida de morte” — que há muito vem sendo criticada por movimentos de direitos humanos por presumir que o policial agiu em legítima defesa e, assim, não levar a nenhuma investigação. Ele também recomendou a extinção da Polícia Militar.

    Ato da Anistia Internacional Brasil contra a violência policial em 2016. Foto: Reprodução/Anistia


    Militarização de favelas

    “Dezenas de milhares de militares e agentes de segurança foram deslocados para o Rio de Janeiro. O número de pessoas mortas pela polícia na cidade do Rio de Janeiro imediatamente antes dos Jogos, entre abril e junho, aumentou 103% em relação ao mesmo período de 2015”, segundo o relatório. De acordo com a Anistia, a polícia admitiu ter matado pelo menos 12 pessoas na cidade do Rio de Janeiro e ter se envolvido em 217 tiroteios em operações policiais no estado, somente durante os Jogos Olímpicos.

    As operações policiais foram intensificadas no período das Olimpíadas, principalmente nas favelas de Acari, Cidade de Deus, Borel, Manguinhos, Alemão, Maré, Del Castilho e Cantagalo, os moradores sofreram com tiroteios intensos, mortes e outras violações de direitos humanos, como invasões de casas por policiais sem mandados e agressões.

    Para além do contexto dos megaeventos, trata-se de locais já marcados por violações constantes, como demonstram diversas reportagens veiculadas pela Ponte: localizadas na Zona Norte da capital fluminense, essas favelas estão na região onde atua o esquadrão mais letal do estado: o 41° Batalhão da PM, responsável por 13% dos homicídios praticados por policiais no Rio em 2014, de acordo com dados do ISP (Instituto de Segurança Pública).

    “Guerra às drogas”: uma guerra contra pessoas

    Uma das principais questões a serem discutidas no processo de transformações no modelo de segurança pública vigente é a da chamada “guerra às drogas”, que não reduz o consumo de substâncias ilícitas e resulta em milhares de mortes todos os anos.

    “As políticas de segurança pública no Brasil são baseadas na lógica da guerra, em particular da guerra às drogas, o que se traduz, na prática, em operações altamente militarizadas e violentas, que resultam em milhares de pessoas mortas todos os anos, inclusive policiais no exercício de suas funções”, disse Neder.

    Segundo Werneck, é fundamental que a sociedade civil participe do debate sobre a questão. “A Anistia convoca um grande debate público, em que todos precisam se engajar para encontrar a melhor solução para a questão das drogas. A estratégia de guerra às drogas só resultou em mais mortes, mais sofrimento, mas violações de direitos humanos. Não apenas os diretamente envolvidos mas toda a sociedade tem sofrido com isso”, afirmou.

    Protagonismo das mulheres na luta por Justiça

    O relatório enfatiza a importância da luta das mulheres por Justiça nos casos envolvendo o assassinato de pessoas por policiais. São principalmente as mães, irmãs e esposas das vítimas que se mobilizam para buscar a responsabilização dos autores dos crimes na imensa maioria das vezes.

    Como exemplo disso e para evidenciar que o jovem negro é a principal vítima da violência policial no mundo inteiro e “não apenas nos países de terceiro mundo”, como colocou a diretora da Anistia Internacional Brasil, ativistas estrangeiras trouxeram ao Brasil suas histórias: as norte-americana Marion Gray-Hopkins, que teve o filho, Gary Hopkins, de 19 anos, assassinado por um policial em 1999 em Maryland, nos Estados Unidos, e a jamaicana Shackelia Jackson, que teve o irmão, Nackiea Jackson, de 29 anos, assassinado por um policial na Jamaica em 2014.

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