Fuga de presos no interior de SP foi reação a violações de direitos e maus-tratos

    A análise de uma frase registrada no muro do presídio permitem-nos compreender que a evasão não se trata de evento isolado, tampouco imprevisível

    Foto: Reprodução/ WhatsApp
    Foto: Reprodução/ WhatsApp

    “Gostava de opressão? Agora aguenta!” Essa frase, de enfrentamento e resistência, pode ser lida no muro interno do Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Jardinópolis, interior de São Paulo, onde, na manhã de 29 de setembro, eclodiu uma ação coletiva das pessoas privadas de liberdade daquele estabelecimento prisional, quando se promoveu a evasão de centenas de pessoas, das quais, até o início da noite do mesmo dia, cerca de 350 haviam sido recapturadas, segundo informações do Comando da Polícia Militar de Ribeirão Preto (SP).

    O evento despertou surpresa de muitas pessoas, desde curiosos e veículos da imprensa regional, até os próprios servidores da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) paulista, sobretudo por tratar-se de uma unidade de regime semiaberto, supostamente menos propícia a esse tipo de acontecimento. Uma olhar para o fato, e uma análise da frase registrada no muro do estabelecimento, no entanto, permitem-nos compreender que não se trata de evento isolado, tampouco imprevisível.

    E nem é apenas a superlotação o CPP, segundo informação da SAP, possui capacidade de 1.080 vagas, abrigando, em 27 de setembro, 1.864 pessoas que explica o grito contra a opressão, já característico das ações empreendidas pelos diversos coletivos de presos em diversos estados brasileiros. A gestão local e o tratamento dispensado aos homens encarcerados e seus familiares está na base do acontecimento e levar em consideração esses fatores é fundamental, inclusive, para compreender as formas como o Estado reage a essas situações, reforçando exatamente os atos e procedimentos que são compreendidos como opressão por aquelas pessoas que são, cotidianamente, violados em seus direitos e em sua dignidade humana.

    Porém, como tudo que é planejado segue, em sua execução, outro sentido, educação e trabalho foram instrumentalizados, em Jardinópolis, como atividades de controle e vigilância das pessoas privadas de liberdade.

    O CPP Jardinópolis foi inaugurado em setembro de 2013, seguindo um modelo arquitetônico originalmente concebido para a unidade prisional que, três anos antes, fora construída em São José do Rio Preto, quando a SAP desativou o Instituto Penal Agrícola que existia naquela cidade. A partir de então, as unidades de regime semiaberto paulistas seguirão esse modelo arquitetônico, caracterizado como uma unidade voltada para a prestação das assistências previstas na Lei de Execução Penal, em especial a oferta de educação e atividades laborais.

    Porém, como tudo que é planejado segue, em sua execução, outro sentido, educação e trabalho foram instrumentalizados, em Jardinópolis, como atividades de controle e vigilância das pessoas privadas de liberdade. E como isso foi feito? Utilizando-se dos próprios instrumentos de gestão da política prisional levados a cabo pelo Estado de São Paulo.

    Em maio de 2014, São Paulo inaugurou em Ribeirão Preto o primeiro Departamento Estadual de Execução Criminal (Deecrim), órgão criado para processar os atos da execução criminal, com a promessa de dar agilidade a esse processamento, por meio da digitalização dos processos de execução criminal de “novos executados”, permanecendo nas Varas de Execução Criminal (VEC) os processos em curso anteriores ao Decreto de criação dos Deecrims.

    Aquela promessa de agilidade foi transformada, no CPP Jardinópolis, em instrumento de opressão, pois, segundo relato colhido junto a diversos sentenciados, servidores da unidade os obrigavam a trabalhar e a estudar (a Lei de Execução Penal trata o trabalho como dever, a educação como direito) para permanecer com o processo no Deecrim, sob pena de ter sua execução transferida para a VEC, supostamente mais morosa na concessão de progressão de regime e livramentos.

    Todo diálogo que tentei estabelecer com alguma pessoa presa foi ostensivamente monitorado por algum agente de segurança, de modo a impedir qualquer tentativa de denúncia ou reclamação por parte de qualquer pessoa.

    Em entrevista realizada com o juiz titular do Deecrim Ribeirão Preto em maio de 2015, ouvi que tal transferência da execução não era permitida, uma vez que a origem dos processos incorporados no Deecrim era, exclusivamente, o critério de “nova execução”, o que não permitia sua exclusão do sistema daquele órgão. No mesmo mês, membros da Defensoria Pública de Ribeirão Preto confirmaram, em entrevista, haver reclamações de pessoas presas e familiares quanto às ameaças realizadas pela diretoria do estabelecimento prisional. O Deecrim virou, para a direção do estabelecimento, um instrumento de controle e opressão das pessoas presas.

    O problema era agravado por meio de outras práticas: silenciamento e proibições extra-legais eram utilizadas como instrumentos de gestão, havendo diversos casos de ameaças e interdições, inclusive por meio da transferência de pessoas presas que, a despeito das dificuldades geradas pela administração local, ousaram se matricular em universidades ou cursos de qualificação profissional em ambientes externos ao estabelecimento. Por outro lado, em seu interior, o silêncio imperava. Realizando visita ao CPP em dezembro de 2015, todo diálogo que tentei estabelecer com alguma pessoa presa foi ostensivamente monitorado por algum agente de segurança, de modo a impedir qualquer tentativa de denúncia ou reclamação por parte de qualquer pessoa.

    Em duas ocasiões, no entanto, esse controle falhou: numa primeira, ao entrar na sala de leitura existente na unidade, fui abordado com o questionamento sobre se eu era “membro dos direitos humanos”, pois algumas coisas “precisavam ser informadas”, disse-me um rapaz; na segunda, ao entrar sozinho num galpão de trabalho e perguntar a um trabalhador-preso o motivo de tanto silêncio naquele ambiente, recebi a resposta de que “aqui o silêncio fala”, seguido de um gesto de cabeça que sinalizava a presença de um agente de segurança observando da porta do galpão. Posteriormente, fui informado, por intermédio de um interlocutor de pesquisa que trabalha em ambiente externo ao CPP, que seus dois colegas de cárcere haviam sido castigados com dois dias de recolhimento em cela disciplinar.

    Também comuns eram as ameaças de transferências de unidades e as imposições de castigos realizadas pelos agentes de segurança, bem como a imposição de outras obrigações não previstas legalmente.

    Saí daquela unidade com a sensação de que estava revisitando o Modelo Auburn, segundo o qual todas as pessoas em privação de liberdade deveriam ser submetidas a trabalho rigoroso e silencioso, sem que se permitisse qualquer comunicação entre elas. Além disso, a fala da direção do estabelecimento era de que ali “todo preso trabalha”, contrariando dois dados de observação imediata, quais sejam, a ocupação de um número excessivo de pessoas executando tarefas que exigiriam um número muito menor de trabalhadores (obviamente para aumentar os índices de pessoas presas em atividades laborais), e a presença de dezenas de pessoas presas vagando pelo pátio central, sem acesso sequer aos alojamentos, que permaneciam fechados durante todo o dia.

    Também comuns eram as ameaças de transferências de unidades e as imposições de castigos realizadas pelos agentes de segurança, bem como a imposição de outras obrigações não previstas legalmente, como a adesão a campanhas de vacinação que, em princípio, são de participação voluntária, e a presença em cultos ou cerimônias religiosas.

    Por fim, e ainda mais motivador, o constante desrespeito aos familiares das pessoas presas, permanecendo, como na maior parte das unidades prisionais paulistas, os constrangimentos relacionados à entrada de itens de alimentação e higiene pessoal que o Estado é incapaz de fornecer adequadamente e, sobretudo, a prática da revista vexatória.

    A cena de dezenas de homens correndo em retirada do CPP Jardinópolis é a evidência de que o Estado de São Paulo, por meio de seus agentes públicos, comete muitos mais crimes do que todas as pessoas que se encontram no interior de suas muralhas e alambrados.

    A ação ocorrida no CPP Jardinópolis, unidade ocupada por pessoas que se alinham, participam dos códigos ou são efetivamente vinculadas ao Primeiro Comando da Capital (PCC), não foi, portanto, nenhuma surpresa. Foi um movimento de reação a práticas cotidianas de violação de direitos, maus-tratos e humilhações. E foi, principalmente, um ato para dar visibilidade a essa opressão, que foi realizado, também sem nenhuma surpresa, sem qualquer ato de violência contra qualquer agente do Estado. Não houve agressões ou rendição de reféns, mas tão somente, segundo informam os jornais locais, a destruição dos espaços de opressão os ambientes administrativos e das equipes de segurança, os galpões de trabalho e espaços de educação e a evasão massiva daqueles que dali conseguiram sair.

    A cena de dezenas de homens correndo em retirada do CPP Jardinópolis, longe de ser o registro de uma fuga da prisão, é a evidência de que o Estado de São Paulo, por meio de seus agentes públicos, comete muitos mais crimes do que todas as pessoas que se encontram no interior de suas muralhas e alambrados.

    Infelizmente, aquele grito contra a opressão não será ouvido. Infelizmente, a resposta estatal será de mais violência e endurecimento na forma de atendimento às pessoas privadas de liberdade e seus familiares. Infelizmente, algum agente de menor importância na escala de comando daquela unidade prisional será punido como suposta resposta da Secretaria de Administração Penitenciária. Infelizmente, aquele “agora aguenta” será, uma vez mais, a demonstração de que quem paga pela violência estatal paulista não são apenas as pessoas presas, mas é o próprio sentido daquilo que compreendemos como Humanidade.

    PS: Os jornais locais informam que um corpo carbonizado foi encontrado no canavial que circunda a unidade prisional. Fica a questão: quem ateou fogo no canavial?

    * Doutorando e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, onde integra o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos. Autor do livro “As prisões de São Paulo: Estado e mundo do crime na gestão da ‘reintegração social’” (Alameda Casa Editorial, 2014).

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    1 Comentário
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários
    trackback

    […] última quinta-feira (30) também houve ocorrência de rebelião em uma penitenciária de Jardinópolis, interior de São Paulo. O motim começou em protesto pela […]

    mais lidas