Governo federal atrasa pagamentos a residentes em medicina durante pandemia

    Segundo Ministério da Saúde, atrasos atingem 4.199 residentes; ‘tenho medo de desistir por causa da falta de dinheiro’, afirma um dos estudantes

    Os 15 residentes de fonoaudiologia da USP estão sem receber regularmente as bolsas repassadas pelo Ministério Público | Foto: reprodução

    Durante a crise na saúde provocada pela pandemia do novo coronavírus, mais de 4 mil médicos residentes estão trabalhando há três sem receber a bolsa do Governo Federal. O valor mensal, que deveria ter sido repassado pelo Ministério da Saúde, se transformou em silêncio e incerteza.

    A Ponte ouviu alunos de uma turma de residentes multiprofissional em saúde do adulto e do idoso da USP (Universidade de São Paulo), que atuam no Hospital das Clínicas e no Hospital Universitário, e estão sem receber o valor das bolsas desde que começaram o primeiro ano de residência, em março.

    Dos 15 residentes, apenas três receberam uma das bolsas, referente ao mês de abril. A bolsa de março ainda não foi paga para nenhum deles. Eles já acionaram o Ministério da Saúde, por telefone e e-mail, e não tiveram uma resposta ou explicação oficial sobre a falta dos pagamentos.

    Thames Marques, 23 anos, é uma das três residentes que receberam uma bolsa mensal. Sem receber pelas 60 horas semanais de trabalho no Hospital Universitário da USP, Thames se sente desvalorizada.

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    “O medo tem feito parte da nossa rotina. Temos que lidar com a incerteza financeira que tem sido totalmente exaustiva. Amar nossa profissão infelizmente não é o suficiente para pagar nossas contas”, desabafa.

    A única manifestação governamental, até agora, foi um post do novo ministro Nelson Teich, em seu Instagram pessoal. A promessa feita por Teich é que as bolsas serão pagas até o dia 15 de maio. No texto, o ministro afirma que o atraso atinge 4.199 bolsas e que teria sido motivado por “inconsistências” nos cadastros, como números de CPFs incompletos.

    A residente Thames lembra que muitos colegas de residência tiveram que mudar de cidade ou estado para fazer parte do programa, assim como ela, que veio de Brasília para realizar o sonho. Uma grande mudança, que se torna ainda mais complexa durante a pandemia.

    “Já no primeiro mês da especialização nos vimos em meio a um mar de dúvidas e incertezas, é como se fôssemos apenas mão de obra barata para o governo e nada mais que isso”, aponta.

    Thames: “Nos esforçamos para não precisarmos desistir de um sonho” | Foto: arquivo pessoal

    Sem salário, ela conta que o apoio dos colegas tem sido fundamental: “Nos esforçamos para não precisarmos desistir de um sonho”. Ela questiona: “Vale a pena me submeter a um regime de trabalho tão árduo, em meio a uma pandemia e não receber o mínimo de respeito possível, que seria o meu salário?”.

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    Estar dentro do hospital, lidando ou não com pessoas infectadas, lembra Thames, é se expor ao risco. Ela lamenta a irresponsabilidade de quem não faz o isolamento social. “Se existisse um reality em que as pessoas pudessem ver o que está acontecendo nos hospitais, ficariam em casa”.  

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    Para Cirley Novais Valente Junior, 25 anos, o sonho da residência médica em um dos hospitais mais renomados do país se tornou angustiante. Ele é natural de Minas Gerais e mora na cidade de São Paulo por conta do curso. “Tento viver um dia por vez para não adoecer por medo ou incerteza”, expressa o jovem médico.

    Os problemas não param por aí. Manter-se em São Paulo tem sido o maior obstáculo de Cirley, que começou a residência médica de fonoaudiologia no Hospital das Clínicas em março. Até agora, ele só recebeu o valor de uma bolsa. “Me sinto desvalorizado”, define.

    Cirley: “Tenho medo de precisar desistir da residência por causa de dinheiro” | Foto: arquivo pessoal

    “São Paulo é uma cidade muito cara e tenho medo de precisar desistir da residência por causa de dinheiro”, desabafa. Ele conta que tem recebido ajuda financeira da família, mas o dinheiro está acabando. “O meu propósito com a residência era poder ajudá-los também e está sendo o contrário. Eles estão com dívidas por minha causa”, desabafa.

    A rotina no Hospital das Clínicas, conta Cirley, mudou muito por conta da pandemia do coronavírus. Ele ainda não foi destinado para atender exclusivamente pacientes infectados pela Covid-19, mas está exposto ao vírus, como todos. Com isso, o cuidado com a higiene aumentou.

    “O meu medo é pelos outros, principalmente os meus amigos que estão em isolamento e dividem apartamento comigo, a aproximação é inevitável. Não consigo seguir em frente sozinho trancado dentro do quarto”, explica.

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    Uma das residentes do Hospital Universitário, que ainda não recebeu nenhum valor do governo e prefere não se identificar, conta que sua rotina virou “um grande misto de emoções e preocupações”. Por um lado, conta a residente, há gratidão por exercer sua profissão nesse momento delicado. Por outro, há a preocupação constante de adoecer ou contaminar algum familiar. Nisso, a falta de pagamento vira uma preocupação a mais.

    Assim como os colegas de residência, o sentimento é de desvalorização. “É bastante desanimador, pra dizer o mínimo. Frente aos esforços que estamos fazendo, recebemos falta de transparência e respostas não concretas em relação aos pagamentos”.

    O que diz o governo

    Questionado, o Ministério da Saúde ainda não explicou o atraso no pagamento das bolsas.

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