Homenagem | Adeus, mestre ou Pé de Pai

    Marco Antonio Iadocicco, o Pezão, morreu aos 68 anos em decorrência de um câncer neste domingo (13/10) e deixou um vazio na quebrada da zona sul de SP

    Marco Pezão declama seus versos no Sarau da Dalva, em 2014, no interior de São Paulo | Foto: Lucas Amaral

    Quando recebi a notícia da passagem do Pezão [fotógrafo, jornalista, escritor e poeta], neste domingo (13/1), eu tomava um vinho por ocasião do meu aniversário de 34 anos. Ando comovido feito o dito cujo. Pé e eu tínhamos uma parte muito em comum da raiz: a coisa italiana operária maloqueira, aquele bafo macarrônico. Eu sou tão sem lugar que me descobri corintiano no meio de um Palmeiras e Santo André, quando criança. Mas, enfim, isso é outro aspecto da história. Em Campinas, sempre gostei da Ponte Preta, nome que um time da várzea em Taboão da Serra, terra do Pezão, empunhou, sem nem desconfiar que, assim, a equipe ajeitava a bola para o mestre marcar o seu maior golaço em poesia, seu lance de letra, o verso de placa:

    “Nóis é ponte e atravessa qualquer rio”.

    Com Pezão, eu passei a amar muito mais a várzea. Hoje torço mais pro cafezinho aqui na quebrada, que por qualquer outra esquadra no “futibas” de primeiras divisões e etc. Fui com ele ao Taboão, certa vez, ver a grande final do ano: Ponte Preta X Bola +1. O simpático time com as cores do reggae venceu a macaca e – nem ali – foi possível ver um título da Ponte, infelizmente.

    Mas, deixa eu voltar pro começo. Fazer literatura no mundo não é fácil. Principalmente fora dos burgos intelectualóides que existem pingados por aí. Fazer poesia, menos ainda. Lidar com a cultura, no Brasil, vixe! E nisso, fui num evento do Sesc Campinas, faz tempo, ver meu querido Marcelino Freire mediar o papo entre dois escritores. Até ali, nós nunca tínhamos nos encontrado. E foram eles três no palco. E apenas dois, na plateia. Eu e mais um – que depois, descobri ser sobrinho de Marcelino, ou seja, quase que fui o único público do papo, aquela noite. Por causa desta triste realidade, acabei tendo a sorte de tomar uma, e começar de repente uma amizade, com Marcelino, que voltava na semana seguinte, dessa vez com o Pezão e a Ivana Arruda Leite juntos. Teve mais gente no papo da trinca. Não foi tão íntimo. Mas eu fui além: peguei o cometa com eles pra São Paulo na “caruda”. Dei um tchauzinho pra Ivana, que ia pra casa descansar, de dentro do metrô, assim, como se fôssemos chegados. Achei a cena inusitada, bonita. E, Pé e eu, fomos parar no Planeta’s, ali no Baixo Augusta, esperando o Marcelino inquieto fazer ainda um ensaio aquela noite. Ficamos tomando vodka e, quando Marcelino finalmente retornou, tomamos mais. Obviamente, esse encontro acabou depois do horário do metrô. Levei o Pé pra Vergueiro, para dormirmos na casa da Maria Teresa Cruz. Lembro ele todo desconsertado, de cueca, temendo parecer um jovem inconsequente de cabeça branca, dando um boa noite tímido com a voz de trovão embargada. E, de lá pra cá, foram muitas coisas. Pezão era meu amigo, meu irmão e, ao mesmo tempo, era como um pai. Quase um vô. Um mestre. Amávamos futebol, poesia e a quebrada. As artes integradas. E tínhamos isso, de sermos poetas e cronistas.

    Eu sentia o Pezão como um injustiçado em sua história periférica, artística e literária, e sofria com isso. Me sentia injustiçado também, em muitas coisas. Meio invisível, meio ansioso, meio sem chance. Mas eu era um moleque apenas. E o Pé não. O Pé era um senhor que merecia mais da história, com a sua história. Comecei o Sarau da Dalva muito motivado por ele. Inspiração mesmo. Essa foto que ilustra essa minha homenagem é do Lucas Amaral e mostra ele trovejando no segundo Dalva da vida, em 2014. “Nóis é ponte e atravessa qualquer rio” sendo pronunciado ali, pra comunidade que compus – e que me compôs – na beira de um rio anhumas apodrecido pelos dejetos químicos ilegais da fábrica de produtos de limpeza. Passei muitas noites no colchãozinho da sala, naquela sua casa que parece um trem no Campo Limpo. Vi o “I love laje” nascer aos poucos, numa longa gestação de utopia e sonho.

    Nisso, Otília era já minha mãe também. Uma bruxa da madeira portuguesa da melhor linhagem. Eu ia com ela pro terreiro aos sábados, ao invés do sarau, aprendia da ilha, de angola, do bantu, das plantas. Fazia os rolês com ela. Minha família, pai e mãe. Amei muito a história dos dois [Otília e Pezão] juntos, do encontro. Recontava isso aos outros, misturando suas personas nas mitologias populares que recrio. E um dia, quando encostei na casa, vi que o “I love laje” – nome batizado pelo gigante Miró da Muribeca – tinha ganhado um segundo nome, conforme a vontade do próprio Pezão: Poesia Futebol Clube.

    O nome era meu. Era como se eu batizasse aquele espaço importantíssimo junto do Miró. E àquela altura nem sabia o que fazer com tanta honra. O Pé me disse: “Pô, Rafa, nem perguntei se podia, mas achei que você ia gostar”. Claro que eu gostei, Pé.

    Claro que eu gostei.

    Só o que não foi tão claro, foi este fim. Fazia um tempo que não nos falávamos muito, não conversamos direito. A vida veio, com seus atropelos e eu, que já não sou mais tão moleque, que aprendi nos últimos anos o tamanho das desgraças que podemos causar enquanto homens, que sofri por constatar alguns dos meus enganos, eu que amo meus pais de sangue, que vi minha mãe perdendo sempre nos processos, até que um dia resolvi que era importante priorizar o lado dela, sem abandonar meu pai nas tretas que viveram. Que minha mãe precisava mais de mim, porque tinha perdido muito mais também. Eu que depois entendi que mesmo as perdas de meu pai, tinham muito a ver com as perdas de minha vó, a Dalva, sua mãe, antes dele. Eu, que percebi a nossa dívida, assim, sem julgamentos, acabei trazendo Otília pra casa, em Campinas, num momento chave de tudo, tentando esse acolhimento e sofrendo com ela alguns desfechos de vocês, mais do que eu fiz aos 18 anos, nos desfechos de meus pais, com minha mãe. Curando um pouco dos meus próprios desfechos pela vida e, sem abandonar você, fiquei mais com ela. Éramos dois homens. Dois homens no mundo de hoje, com suas crônicas e poemas. Com suas dores crônicas e poéticas. Éramos dois homens num tempo em que os homens se perdem, de vez, pra quem sabe em breve nos acharmos finalmente. Depois desses séculos todos.

    Talvez tenhamos nos estranhado por isso, Pé, mas eu sempre lhe amei. Sempre. Você me ajudou a atravessar muitos rios até aqui e eu sei que ainda vai me ajudar muito mais. Eu tive chance de dizer que lhe amo, com você no hospital. Você não disse nada, mas, em todas as vezes que você disse: “nóis é ponte”, eu acreditei. Eu ainda acredito, Pé. Pai. Nem tudo ficou claro entre a gente. Por isso eu quero acender uma vela para que ela ilumine essas travessias de agora. E que, pelo lado de cá, dos que seguem no jogo: que sua luz nos ajude a vencer e com classe. Do mesmo jeito que a sua fotografia deixava cada um daqueles gols muito mais bonitos.

    Gol é gol, Pé. Você me ensinou. Mas você me ensinou também a importância de jogar pelo belo e, mesmo assim, sem perder a meta. Você me ensinou a responsa real de um camisa 10. Coisa que hoje quase não se vê num campo de futebol – e nem em outros campos da vida – muito facilmente. Você me ensinou o jogo limpo: a ser leal. E ainda que nem tudo tenha ficado claro, Pé, uma coisa ficou:

    “Nóis é singular. Sim. Memo. E não há nada de errado nisso”.

    Agora cê tá na laje-mor, pai. Dê um salve na galera daí. O Solano Trindade, em especial, que eu sei que tá curtindo. Organiza o sarauê aí de cima, mestre. Trovejai por nóis. E pra sempre cá: sarauvá, poeta.

    (*) Rafa Carvalho é poeta e amava (ama) o Pezão. Mais do artista no Instagram @poetante.

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