Prefeitura de SP alegou que perder pai assassinado não dói

    Filha de Leandro Machado tinha 2 anos quando o pai foi morto por GCMs, em 2003. Prefeitura de SP afirmou que ela não sofreu dano porque era nova demais para entender

    Tem horas que o Estado parece não saber o que é gente. É o que se imagina ao saber que a prefeitura de São Paulo alegou, em 2009, que perder o pai assassinado não gera dano se a criança for muito nova.

    Na época, durante a gestão Gilberto Kassab, a prefeitura se defendia de uma ação movida pela família do líder comunitário Leandro Machado, jovem negro morto aos 23 anos por guardas civis municipais no Grajaú, zona sul de São Paulo, em 2003, durante a gestão Marta Suplicy.

    A defesa do Município, assinada pelo procurador do Município Augusto Módulo de Paula, alegou que a filha de Leandro, Shelzeer, não teria sofrido dano moral por ter quatro anos na época em que o pai foi assassinado.

    “Em que pese a ferida eterna de ter pedido o pai em tenra idade, não se pode dizer que ela tenha sofrido um dano pelo evento, pois sequer tem conhecimento do evento ou conviveu de forma suficiente com o pai”, escreveu o procurador.

    A Procuradoria do Município certamente não conhece a filha de Leandro. Em abril deste ano, a reportagem da Ponte foi até a casa dos avós de Shelzeer, onde ela mora, no Grajaú, e teve muita dificuldade em conversar com ela sobre o pai. Foi falar em Leandro para a menina, hoje com 16 anos, começar a chorar. Choro volumoso e alto, choro de criança machucada.

    Maria Aparecida, mãe de Leandro, espera há 14 anos por Justiça | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Quando conseguiu respirar e os soluços deram lugar às primeiras palavras, Shelzeer explicou que a dor toda que ela sentia vinha justamente de terem lhe roubado o pai tão nova e, por isso, não terem lhe permitido guardar qualquer lembrança dele. “É difícil para mim ver a foto dele e não poder lembrar de nada”, resumiu.

    Passados 14 anos da morte de Leandro, é como se o Estado – tanto o Executivo municipal, responsável pela morte do jovem, como o Judiciário, que deveria trazer justiça aos que ficaram – tivesse feito tudo o que podia para aumentar ainda mais a ferida aberta pela morte de Leandro, deixando-a cada vez mais viva, mais exposta e derramando, como o choro de Sheelzer.

    Na Justiça criminal, os guardas civis metropolitanos que mataram Leandro, Orlando Sérgio dos Santos, 61 anos, e José Donizeti de Freitas, 53, não foram julgados até hoje, embora a Justiça tenha acolhido, em 2009, uma denúncia  do Ministério Público contra ambos por homicídio doloso (com intenção de matar).

    Na área cível, o processo movido pela família conseguiu uma vitória em 2014. O argumento usado pela prefeitura de que perder o pai assassinado não dói não convenceu o Tribunal de Justiça de São Paulo, que, numa decisão em segunda instância, condenou o município a indenizar os parentes de Leandro em R$ 200 mil. Até hoje, contudo, a família não recebeu um centavo. É que, desde então, o processo está suspenso, aguardando a conclusão de um debate nas cortes superiores a respeito do pagamento de juros devidos pelo governo.

    Cor negra, imagem do inimigo

    Na noite de 3 de novembro de 2003, o pai que Sheelzer queria tanto ter conhecido saiu de casa para buscar a mamadeira dela, que havia esquecido na casa de um amigo. Levava com ele um ofício que pretendia entregar à base comunitária da Guarda Civil Metropolitana do bairro, na Rua São Caetano do Sul, pedindo o apoio dos guardas para um evento de esporte e música que ele pretendia realizar dali a duas semanas, numa quadra esportiva ao lado do bairro.

    Oséias, irmão de Leandro, o pai, José e a mãe, Maria, mostram faixa feita por amigos | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Apesar de levar “comunitária” no nome, a base da GCM era mal vista pela comunidade, por causa da violência com que os guardas tratavam os moradores. Uma denúncia relatada à Ponte por quatro pessoas diferentes do bairro conta que, um ano antes da morte de Leandro, guardas já haviam torturado até a morte um adolescente dentro da mesma base. “Essa base, que era para trazer segurança, só trouxe desgraça para nós”, conta o analista financeiro Dener da Silva Bezerra, 41 anos.

    Mas Leandro acreditava que a GCM podia ser parceira na sua luta para melhorar as condições de vida de bairro. No evento que pretendia realizar em 16 de novembro, no qual também aproveitaria para celebrar o aniversário de dois anos da filha, Leandro queria reunir os jovens do bairro para um encontro com hip hop, música gospel e esportes, e gostaria que os guardas o ajudassem a garantir a ordem na festa e evitar o consumo de álcool.

    “Leandro era um moleque da hora, um líder comunitário que estava surgindo naquela época. Quando morreu, desabou o mundo”, recorda o rapper Eduardo Righetti, o Mano Duda, 41 anos, sempre presente nos eventos do amigo. Eram chamados de LDK, pois Leandro queria melhorar a vida das pessoas que viviam “do lado de cá”, na quebrada onde moravam. “Ele queria colocar o Grajaú no mapa como um lugar que tem bons exemplos, tanto de esporte como de música”.

    Quadra de basquete cuidada por Leandro, hoje abandonada | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Na noite em que Leandro foi morto, o líder comunitário chegou a passar na base da GCM, por volta das 19h, para entregar um ofício pedindo a participação dos guardas no próximo evento LDK que estava preparando, mas um dos guardas lhe informou que o expediente havia acabado e ele deveria voltar mais tarde. Leandro saiu de lá e foi até a casa de um amigo, onde esqueceu a mamadeira da filha. Voltou para buscá-la e, no caminho para casa,  por volta das 22h30, passou de novo em frente à base dos guardas. Foi a última coisa que fez.

    Naqueles dias, as forças de segurança de São Paulo viviam o pânico provocado pela primeira série de ataques deflagradas pela facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), que contabilizou 44 atentados contra delegacias e bases da PM. Policiais e guardas estavam assustados e reagiam com violência diante de qualquer pessoa tida como suspeita. E, embora estivesse apenas passando diante da base dos guardas, levando no bolso a mamadeira da filha, Leandro se tornou um elemento suspeito por causa da cor de sua pele.

    “O referido elemento era de cor negra e estava com uma touca que chegava até a altura das sobrancelhas, mostrando-se suspeito, vez que ficava olhando o tempo todo para os lados”, destacou em depoimento o guarda Orlando, um dos que atirou em Leandro.

    Testemunhas afirmam que Leandro foi baleado na rua pelos guardas e depois arrastado para dentro da base. Já os GCMs dizem que atiraram no jovem negro após ele pular o muro da base, com cerca de dois metros de altura. Leandro foi morto com um tiro no lado esquerdo do peito e outro na parte de trás da cabeça.

    Apesar da localização dos disparos no corpo, típica de execuções, os guardas alegaram que mataram Leandro numa troca de tiros e, no 101º DP (Jardim das Imbuias), apresentaram a arma que ele teria usado: uma garrucha, arma de cano curto que costuma ser vendida como antiguidade.

    Maria Aparecida, mãe de Leandro; ao fundo, José, que sofre de Alzheimer | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Para Mano Duda, que fez um rap sobre a morte do amigo, Tributo LDK , só o racismo explica terem atirado em Leandro. “O cara, por ser negro e humilde, é a imagem do inimigo para eles”, diz.

    Justiça arrastada

    Uma reconstituição feita no local do crime pela Polícia Civil concluiu que a versão dos guardas era verdadeira. O laudo assinado pelo perito Lucivaldo Napoli concluiu que, sim, era possível que Leandro houvesse trocado tiros de frente com os GCMs e mesmo assim ser baleado por trás, graças à “flexibilidade e mobilidade do corpo humano”.

    O Ministério Público não teve uma visão tão flexível da realidade. Em 2008, o promotor de Justiça Virgílio Antônio Ferraz do Amaral denunciou os guardas Orlando e Donizeti por homicídio doloso. Uma colega da dupla, Andréa Alves dos Santos, foi denunciada por falso testemunho, acusada de mentir para acobertar o assassinato de Leandro. No ano seguinte, a juíza Liza Livingston aceitou a denúncia e pronunciou os réus.

    Até hoje, os três aguardam um julgamento no Tribunal de Júri. Perguntada pela Ponte Jornalismo a respeito da demora em julgar os acusados, a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo respondeu que “essa longevidade do processo se dá principalmente pelos seguidos recursos impetrados pela defesa dos acusados”.

    A demora na Justiça criminal ajudou a vida de Orlando, Donizete e Andréia. Os três continuam até hoje trabalhando normalmente como guardas civis metropolitanos. Estão apenas afastados das ruas, atuando em funções administrativas. A assessoria de imprensa da Prefeitura de São Paulo afirma que a Corregedoria da GCM espera a conclusão do processo criminal para decidir o que fazer com eles. Sobre a afirmação feita em 2009 de que perder o pai assassinado não seria um dano, a assessoria diz que  hoje “não questiona a existência do dano moral – questão já superada nos autos, portanto – mas sim os valores das indenizações, bem como critérios de correção monetária e juros”.

    Oséias na quadra de basquete cuidada por seu irmão, hoje abandonada | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Enquanto a Justiça criminal demora para julgar os culpados pela morte do Leandro, a civil falha em tentar reparar parte dos estragos que o assassinato provocou na vida dos seus parentes. Depois de muita espera, os parentes de Leandro imaginaram ter chegado a um final feliz no final de 2014, quando uma decisão em segunda instância Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o Município a pagar R$ 200 mil para a família.

    Pela decisão, o prefeitura pagaria R$ 50 mil aos pais de Leandro, Maria Aparecida Bernardes Machado e José Carlos Machado, para a mãe de sua filha, Mabatha Carlos Lucio, e a própria filha do casal, Shelzeer.

    acórdão (decisão de órgão colegiado), assinado pelos desembargadores Reinaldo Miluzzi, Maria Olívia Alves e Evaristo dos Santos, também estabelecia que a filha de Leandro deveria receber o equivalente a um salário mínimo por mês durante 22 anos, contando a partir da morte do pai, quando ela tinha dois anos, até quando ela completasse 25, “data presumível em que completará estudos universitários e poderá manter-se com seu trabalho”.

    A reportagem conversou com os familiares de Leandro após a decisão e os encontrou muito felizes.  “Foi o melhor presente de Natal que eu poderia ter recebido: a Justiça começou a limpar o nome do meu irmão”, saudou Oséias Machado, 48 anos, na época.

    A Ponte voltou a falar com a família no mês passado e descobriu que, em dois anos e meio, os sorrisos deram lugar a caras de desalento. “Não entendo a Justiça demorar tanto”, reclama Oséias.

    Não é fácil entender, mesmo. Ninguém consegue entender, por exemplo, porque Maria Aparecida precisa sofrer tanto para cuidar de Shelzeer e dos outros netos que moram ela, com dificuldade até para comprar o material escolar da menina, depois que as palavras no papel dos homens da Justiça lhe garantiram que a menina receberia um salário mínimo mensal para ajudá-la nos estudos.

    “Sobre o dinheiro, eu não penso muito em mim, penso mais na minha avó. Ela sempre cuidou de mim e das minhas primas”, afirma Shelzeer. “Quero dar o melhor para ela, porque ela já viveu muito por mim, e agora é minha vez de viver por ela.”

    Oséias, irmão de Leandro | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    A advogada Renata Seriacopi Rabaça, representante da família, explica que, após a decisão do TJ-SP, entrou com um recurso especial pedindo que os juros e correção monetária referentes à indenização da família fossem contados a partir da morte de Leandro, em 2003, e não da decisão judicial, de 2014. “São mais de dez anos de juros. A diferença para a família é de R$ 400 mil”, explica.

    A Seção de Direito Público do TJ-SP, contudo, suspendeu o andamento do processo da família de Leandro para aguardar o resultado de um outro processo, o Tema 905, em andamento no Superior Tribunal de Justiça, que também trata de condenações impostas à Fazenda pública. É o chamado tema repetitivo: um processo que, uma vez analisado pelas cortes superiores, se torna um parâmetro a ser seguido em todas as decisões das instâncias inferiores relacionadas ao mesmo assunto.

    Para complicar ainda mais, a própria análise do Tema 905 no STJ aguarda uma decisão a respeito de outro processo, o Tema 810, que está sendo analisado pelo Supremo Tribunal de Justiça (STF). “Infelizmente, enquanto esse recurso não é julgado, estamos de mãos atadas”, lamenta a advogada.

    Enquanto a família de Leandro espera por justiça, o mato vai tomando da calçada em redor da antiga base comunitária da GCM, tão odiada e temida pela comunidade que deveria proteger. O local fechou as portas há mais de dez anos. Desde então, está abandonado. Aos poucos os moradores tentam se apropriar do local, pelo menos de seus muros, onde a molecada deixa suas marcas com pichações, grafites e mensagens cristãs. Uma delas, rabiscada naquele antigo território da lei e do medo, é um versículo do Evangelho de Mateus. Pede a todos para serem perfeitos em amor.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte

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