Lula precisa enfrentar a violência policial, afirma Human Rights Watch

Em relatório, entidade internacional destaca que segurança pública não foi prioridade do primeiro ano do terceiro mandato do presidente

Intervenção artística em que manifestantes simulam corpos de pessoas negras mortas pela polícia durante 16º edição do Cordão da Mentira, em que movimentos cobraram fim da violência estatal, em 1/4/2023, na cidade de São Paulo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Apesar de alguns avanços na proteção da Amazônia e dos direitos das mulheres, o primeiro ano sob a gestão do presidente Lula (PT) não enfrentou a violência policial e não priorizou no campo da segurança pública a defesa dos direitos humanos. Essa é a avaliação da organização Human Rights Watch (HRW) na 34ª edição do relatório anual que avalia a situação de direitos humanos em quase 100 países.

Diretor do escritório no Brasil da entidade, César Muñoz pondera que o cenário é melhor do que o governo de Jair Bolsonaro, mas que o presidente perdeu a oportunidade de mexer em um “problema crônico”, que é letalidade policial. “Essa área realmente é um ponto onde o governo deveria tomar mais medidas. E o que vimos foi, por exemplo, que o número de mortes continua no mesmo patamar basicamente que o ano passado”, avalia.

De acordo com dados preliminares levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a letalidade policial aumentou em 16 estados no primeiro semestre de 2023. Um dos destaques foi o estado de São Paulo, que até 2022 tinha alcançado reduções históricas nesse indicador, especialmente com o programa de câmeras nas fardas.

“Tivemos várias operações muito letais no país, inclusive a Operação Escudo em São Paulo, que matou 28 pessoas na Baixada Santista, e com os mesmos problemas que vimos no passado”, criticou Muñoz.

Ele se refere à operação sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), deflagrada um dia após o assassinato do soldado Patrick Reis, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força especial da Polícia Militar paulista, em 27 de julho. Em 40 dias, foram 28 mortos e uma série de denúncias de violações de direitos humanos que chamaram atenção até da comunidade internacional, especialmente pelas declarações por parte do governador e do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite que minimizaram as mortes e chamavam as denúncias de “narrativas”.

Ainda em novembro, a HRW divulgou um relatório em que indicou que a Polícia Civil de São Paulo cometeu “falhas graves” na apuração inicial dos casos, com base em 26 boletins de ocorrência e 15 laudos necroscópicos das vítimas analisados por peritos forenses internacionais que atestaram que os exames “são ineficazes e não cumprem os padrões mínimos aceitáveis na investigação de mortes relacionadas com armas de fogo no contexto da ação policial”.

“Obviamente são os governadores que são os responsáveis diretos pela direção das polícias no âmbito estadual, mas o governo federal tem autoridade para coordenar os esforços de agências, dos estados e dos municípios para desenvolver políticas nacionais”, aponta o diretor da HRW. “E não tem feito isso. Há uma ausência enorme de coordenação e de pensar em uma política de segurança pública que aborde os problemas estruturais do Brasil.”

Um desses problemas criticados pela organização foi a aprovação da Lei Orgânica das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, sancionada pelo presidente em dezembro, que não teve participação da sociedade civil no processo de discussão. “Foi uma oportunidade perdida [de se discutir a reforma das polícias]. Os vetos foram claramente muito importantes, mas a Lei Orgânica das PMs não muda em nada as PMs, faz uma consolidação jurídica do que existe agora. E o que existe não está funcionando. Temos todo ano mais de seis mil mortes pela polícia. É um número enorme, se você comparar esse número com qualquer outro país do mundo”, critica. “Uma política de segurança pública que estimula o confronto é prejudicial para a segurança pública e prejudicial para os próprios policiais.”

Outro ponto que Muñoz destaca é o controle externo da atividade policial que, constitucionalmente, é atribuição dos Ministérios Públicos e o que Ministério Público Federal (MPF) poderia pautar o assunto para servir de exemplo. Para ele, contudo, a forma como Lula escolheu o novo Procurador-Geral da República (PGR), indicando Paulo Gonet, uma pessoa fora da lista tríplice, gera desconfiança sobre a independência da atuação e chega a ser contraditório, já que a obrigatoriedade de o presidente indicar um nome da lista foi implementada em 2003, no primeiro mandato dele.

“No Brasil, o sistema que tradicionalmente foi usado foi a lista tríplice que começou com o governo de Lula. O governo Bolsonaro rejeitou esse sistema. Escolheu o PGR que ele quis. E essa pessoa foi amplamente criticada porque foi vista como uma pessoa que estava protegendo ou beneficiando o Bolsonaro”, explica. “A decisão do presidente Lula de seguir o exemplo do Bolsonaro é ruim porque a experiência com o PGR anterior não foi boa. Eu não estou criticando o atual PGR. Não é uma questão pessoal. É uma questão do sistema e como foi escolhido.”

Muñoz afirma que é urgente que os Ministérios Públicos tomem a frente de investigações de mortes praticadas por policiais, tendo em vista que ainda está em discussão no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) um projeto de resolução que regula a atuação do órgão “na investigação de morte, violência sexual, tortura, desaparecimento forçado de pessoas e outros crimes ocorridos em decorrência ou no contexto de intervenções dos órgãos de segurança pública.”

“Não faz sentido a própria polícia investigar a polícia. Isso não funcionou, não está funcionando. E tem uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Favela Nova Brasília, que obriga o Brasil realmente a ter essa investigação independente dos órgãos policiais”, explica.

Um exemplo da falta de regulação que ele aponta é o do Rio de Janeiro. “No estado do Rio, o Ministério Público só tem conhecimento de uma morte causada pela polícia quando o delegado manda o inquérito para o MP. Então são uns 30 dias até o delegado comunicar o Ministério Público. É uma situação absurda. É ridículo que o promotor, ou o Ministério Público como instituição, só saiba que a polícia matou alguém 30 dias depois”, pontua.

Além disso, o governo federal havia lançado em outubro de 2023 o Programa de Ação de Segurança (PAS), que engloba um plano nacional de combate ao crime considerado por especialistas como “genérico, improvisado e bilionário” e sem discussão da questão da letalidade policial, e o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) 2. Na ocasião, o então ministro da Justiça e Segurança Pública Flavio Dino, que assumirá uma cadeira no Supremo Tribunal Federal em fevereiro, havia prometido que a proposta seria revista em até 60 dias. O texto, cujo prazo expirou em dezembro, ainda não foi relançado.

César Muñoz aponta que é necessário o plano incluir “metas e medidas concretas para reduzir a letalidade policial” e políticas para combater a corrupção policial, o que, para ele, são questões intrinsicamente relacionadas, além de protocolos claros para incentivar perícias independentes, uso de câmeras corporais, dentre outros pontos – esta última, que está sob consulta pública desde agosto do ano passado.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública havia anunciado a doação de 400 câmeras corporais por parte da Embaixada dos Estados Unidos à Polícia Rodoviária Federal (PRF) e à PM da Bahia, mas sem expor maiores detalhes. Além disso, Dino voltou atrás na promessa de condicionar repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) aos estados que implementassem o equipamento em 2023 e 2024 e incluiu o aparelho como item financiável de forma facultativa.

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“A câmera corporal não vai resolver todos os problemas de segurança pública do Brasil. E um elemento muito importante que deve ser incluído nos projetos são os protocolos de uso e de acesso às imagens das câmeras corporais. Isso tem que ficar muito claro porque se você não tiver os protocolos claros, o impacto dessas câmeras pode ser muito baixo ou nenhum”, diz Muñoz.

O que diz o governo federal

A Ponte procurou a assessoria da Presidência e o Ministério da Justiça e Segurança Pública sobre o relatório da Human Rights Watch. A pasta enviou a seguinte nota:

O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) na atual gestão tem priorizado o desenvolvimento de políticas públicas visando a redução da violência institucional e apoio, bem como a reparação das famílias vítimas de violência advindas das forças de segurança.

Plano Nacional de Segurança
Dentre as ações, destacamos a condução do MJSP na revisão do Plano Nacional de Segurança Pública de forma conjunta com diferentes atores institucionais e da sociedade civil. Entre as alterações consolidadas no Plano estão a previsão de metas específicas relacionadas à redução da letalidade policial e dos feminicídios.

Essa inclusão reconhece a necessidade de o Estado brasileiro priorizar temas centrais para uma política nacional de segurança pública baseada em evidências. O ciclo de revisão do Plano está em fase avançada e, conforme previsto no Decreto 10.822/21, será disponibilizado para consulta pública, que deve começar em fevereiro.

Redução da letalidade policial
Ressalta-se, contudo, que as medidas relacionadas à redução da letalidade policial não se limitam às alterações do Plano Nacional. Além da reformulação, o MJSP publicou a Portaria nº 439/2023, que estabelece as áreas de temáticas para repasses dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública. Com distribuição de 80% dos recursos, a área temática redução das mortes violentas intencionais prevê expressa e concretamente o repasse de recursos para ações de redução da letalidade e da vitimização de policiais, com diferentes medidas possíveis, dentre elas, a implantação de câmeras corporais
.

A Polícia Rodoviária Federal foi a corporação piloto para iniciar os estudos de implementação das câmeras corporais a nível federal, com o “Projeto Estratégico Bodycams”. O estado da Bahia foi escolhido para receber o projeto piloto do Governo Federal para a implementação do projeto Bodycams.

No dia 1º de novembro, o MJSP e a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil formalizaram  a  doação de 400 câmeras corporais, destinadas à Polícia Militar da Bahia e Polícia Rodoviária Federal do Estado do Rio de Janeiro. A entrega das câmeras já ocorreu em dezembro.

Vale destacar, também, que a Senasp iniciou o processo de revisão e regulamentação de normativos que tratam sobre o uso da força em nível nacional. A Portaria Interministerial 4.226/2010, que estabelece diretrizes sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública, será revisada, assim como a regulamentação da Lei nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014, que disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, em todo o território nacional.

Reparação de violência institucional e apoio
O acolhimento de mães e familiares de vítimas de violência institucional é um dos eixos prioritários da Saju. Nesse sentido, foi firmado parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro para a Ampliação da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (Raave), foram destinados mais de R$3,5 milhões para o suporte psicossocial e jurídico a familiares, principalmente mães, afetadas pela violência de Estado.  

Destaca-se também a parceria com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e a Defensoria Pública de São Paulo, no qual foram destinados R$4 milhões para a implementação de projeto de acolhimento de mães vítimas de violência institucional. O Projeto deve atender mães dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Minas Gerais.

Reportagem atualizada às 19h06, de 11/1/2024, para incluir resposta do governo federal.

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