Negro e músico, Hélder não correu da polícia porque ‘não devia’. Acabou preso

    Jovem conta que foi detido pela PM quando comprava maconha no centro de São Paulo. A polícia o autuou como tráficante por causa das drogas achadas em uma mochila que não estava com ele

    Hélder, o Space Boy, numa entrevista para o Sesc sobre seu grupo de trap, o True Mob, em julho | Foto: Reprodução

    O músico Hélder Gleydison Gomes do Nascimento, 19 anos, o Space Boy, cantor do grupo de trap True Mob, não correu quando viu duas motos com policiais militares da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) entrarem na rua Barra do Tibagi, na Favela do Gato, no bairro do Bom Retiro, na região central da cidade de São Paulo, na tarde desta sexta-feira (13). “Não corri porque não devia”, diria, mais tarde, em depoimento à Polícia Civil. Mesmo não devendo, como afirma, acabou preso por tráfico de drogas. A principal prova é uma mochila com drogas que nem foi achada com ele.

    Ao ver os PMs da Rocam, um outro homem que estava com Space Boy fugiu. Mesmo afirmando que estava ali para comprar drogas para consumo próprio, o músico foi detido pelos PMs Éder Luis de Oliveira e Guilherme Sim’es Nunes e levado ao 2º DP (Bom Retiro), onde foi autuado por tráfico de drogas. Neste sábado (14/8), a Justiça concedeu liberdade provisória (direito de responder a um processo em liberdade) ao jovem. No início da noite, ele pode voltar para casa.

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    Em seu depoimento registrado no boletim de ocorrência, Hélder disse que, ao ser abordado pelos PMs, contou que morava na Favela do Moinho, também na região central. Os PMs, então, teriam dito que precisavam “vender cadeia” e exigiram que o músico dissesse nomes e locais de quem vendia droga na sua comunidade. Quando Hélder respondeu que não sabia, os policiais teriam tido “perdeu, você está preso” e forjado o flagrande tráfico contra ele.

    Autoridades confusas

    Já a dupla de PMs afirma que abordou Hélder e um outro jovem, que teria fugido. Com o músico, os policiais teriam encontrado uma pochete contendo 12 porções de maconha e 54 de cocaína. Na versão da dupla, o jovem teria não só contado que era traficante como ainda indicado onde poderiam apreender mais drogas, levando os PMs até uma mochila escondida embaixo de uma escadaria. Dentro da mochila, havia 138 porções de cocaína e 349 de maconha. Hélder afirma que não estava com a pochete e que não sabe onde os policiais encontraram as drogas.

    Helder como cantor de trap da True Mob | Imagem: Reprodução

    No 2º DP, o delegado Kaue Danillo Granatta levou em conta apenas a versão dos policiais e autuou Hélder por tráfico de drogas. No histórico do boletim de ocorrência, que aparenta ter sido copiada de outro documento, o delegado se confundiu e mencionou a autuação não de de Hélder, mas de Juliana Cristina Constantino, um nome sem quaquer relação com a ocorrência.

    Procurada pela Ponte a respeito de Hélber, a assessoria de imprensa da Secreteria da Segurança Pública, do governo João Doria (PSDB), também se mostrou confusa. Inicialmente, a assessoria respondeu por e-mail que o delegado “representou pela conversão do flagrante em prisão preventiva, que foi acatado pela Justiça” — uma informação falsa, já que a Justiça negou esse pedido e decidiu pela soltura do jovem. Após novo questionamente por e-mail, a assessoria ligou para a reportagem e disse que havia se confundido e enviado informações sobre uma prisão ocorrida em março.

    Liberdade provisória

    Na madrugada de sexta para sábado, Hélder foi levado para o 77º DP (Santa Cecília) para aguardar a decisão judicial sobre o seu caso. O promotor Joel Carlos Moreira da Silveira, do Ministério Público Estadual de São Paulo, concordou com o pedido do delegado de converter a prisão em flagrante do músico em preventiva (sem prazo). Entre suas alegações, destacou que o caso envolvia “grande quantidade de substância entorpecente”, uma indicação “de traficância não esporádica ou eventual e da gravidade concreta da infração penal”.

    Helder com amigos na praia | Foto: Reprodução

    Por outro lado, a defensora pública Camila Ungar João pediu a liberdade de Hélder por, entre outros motivos, evitar o aumento da aglomeração nas prisões considerando a situação emergencial da pandemia de Covid-19, atendendo à recomendação do Conselho Nacional de Justiça de “reduzir ao máximo os riscos advindos de uma possível contaminação por coronavírus, principalmente dos sujeitos ainda protegidos pela presunção de inocência”. 

    O juiz Renan Oliveira Zanetti, da vara de plantão do Tribunal de Justiça de São Paulo, decidiu conceder a liberdade provisória do jovem. Na sua decisão, disse que levava em consideração que Hélder não tem antecedentes criminais e que os indícios apresentados pelos policiais não eram “substanciosos o bastante” para uma prisão cautelar (sem condenação).

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    “Com efeito, o autuado não foi visto comercializando entorpecentes com terceiros. Na posse dele, não foram encontrados petrechos ou anotações relacionados ao tráfico. Além disso, a quantia de drogas efetivamente apreendida em seu poder é compatível com a sua versão de que é mero usuário”, escreveu o juiz, ressaltando que não procurava “de forma alguma, desmerecer o trabalho policial, na cotidiana batalha contra a criminalidade”.

    Músico, reservado e braço direito da mãe

    A prisão de Hélder causou perplexidade no Moinho. Tido como rapaz pacato, tímido e muito querido entre os vizinhos, é na música que ele se expressa. A mãe dele, Giannini Gomes, relata que o filho é o seu braço direito nos afazeres de casa: “Ele é muito quieto, passa o dia em casa na frente do computador fazendo música. Todos os dias, no final da tarde, ele sai para buscar a irmã mais nova. É o menino que eu pedi a Deus”.

    Imagem de Helder nas redes sociais | Foto: Reprodução

    Giannini soube no final da tarde da sexta, através de vizinhos, sobre a prisão do filho e custou a acreditar no que tinha ouvido. “Eu fiquei arrasada, sem chão. Ele é um menino sossegado, que nunca se meteu em briga ou coisa errada. Ele é usuário de maconha, mas nunca se envolveu com tráfico.”

    Segundo a mãe do músico, o grupo True Mob acabou de gravar um clipe. O grupo de trap, formado há menos de dois anos por garotos do Moinho, vem obtendo reconhecimento no meio musical e na comunidade. No mês passado, o grupo foi destaque do projeto Jovens Artistas do Centro, promovido pelo Sesc Bom Retiro.

    https://www.facebook.com/watch/?v=3278371839056274

    “A leitura do processo mostra o problema da seletividade penal, como a polícia age nos territórios da periferia contra jovens pobres negros, violando a presunção de inocência deles, assumindo que alguém com esse perfil só pode ser criminoso”, afirma Fernanda Peron Geraldini, advogada criminalista e integrante do apoio jurídico da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que acompanhou a Defensoria na defesa de Hélder. “Uma prisão como essa não costuma acontecer com jovens brancos e de classes sociais mais ricas, que também consomem entorpecentes e quase nunca são objeto de persecução pela polícia”, afirma.

    Protesto da Rede de Resistência e Proteção Contra o Genocídio e do Rosa Negra Ação Direta e Futebol

    Representante da Rede no Moinho, Soraia Costa participou da mobilização pela libertação de Hélder. Ela também faz parte do coletivo Rosa Negra Ação Direta e Futebol, que faz um trabalho social dentro do Moinho através do esporte. Por meio de nota, o coletivo se manifestou sobre o caso:

    “Primeiro que essas ações policiais nem deveriam existir. Nada disso é pensando na segurança de ninguém, mas sim em perseguição, parte do projeto genocida constante e contínuo de opressão e encarceramento da população pobre. A gente sabe que não é exceção, que não é um ‘desvio’ do policial que forjou Helder. A policía foi criada pra proteger a propriedade privada de senhores de escravizados e continua agindo contra um inimigo, negro e pobre. Raros os casos em que a lei não legitima sistematicamente essas ações. Como acabou de acontecer com o Galo, e também sem nenhuma prova, ele ia ficar detido para ver se dava nomes de traficantes do Moinho. Deter alguém até delatar tem nome, e é tortura. Além de associar todos os jovens negros e toda comunidade ao crime. Um ato racista, elitista e inadmissível”.

    Atualização em 15/8, às 9h30, para informar que Hélder havia sido libertado

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