PEC das Drogas deve criminalizar ainda mais a população pobre e preta, apontam especialistas

Resposta do Senado a discussão no STF não aprimora Lei de Drogas e torna critérios para diferenciar usuários de traficantes ainda mais vagos: “descolado da realidade”, diz diretor de entidade

Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo
Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

Em antagonismo ao Supremo Tribunal Federal (STF), o Senado aprovou na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) a Proposta de Emenda Costitucional (PEC) das Drogas na última quarta-feira (13/3). A proposta foi apresentada pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), após o início do julgamento sobre a descriminalização da maconha na Corte Suprema. A medida coloca na Constituição Federal a proibição do porte e da posse de todas as drogas. Para especialistas ouvidos pela Ponte, a aprovação do texto deve agravar a criminalização da população pobre, preta e periférica.

Dudu Ribeiro, co-fundador e diretor-executivo da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, diz que a PEC é uma afronta à Constituição. Em sua análise, há um descompasso em atrelar a rigidez da proposta ao artigo 5.º — que trata da inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.

“A possibilidade da aprovação dessa PEC reforça um processo que vai à contramão de grandes países de mudar a sua perspectiva em relação ao tratamento, ao comércio e ao consumo de substâncias. Nós vamos fortalecer a guerra às drogas nesse sentido, e isso vai reforçar o estímulo contra as pessoas usuárias, vai fortalecer discursos conservadores que intensifiquem a lógica do confronto e pode reforçar também o que nós já vivemos de um altíssimo potencial letal da guerra às drogas. É uma PEC que pode trazer o Brasil algumas casas para trás no debate global sobre a mudança da política de drogas”, afirma.

O texto da PEC é simples e repete muito do já disposto na Lei de Drogas (11.343/2006), inclusive a falta de critérios claros de como seria feita a diferenciação. 

“A lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins, sem autorização ou em desacordo com determinação legal, ou regulamentar, observada a distinção entre traficante e usuário por todas as circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”, diz o texto.

Ao falar de quantidade, a PEC passa uma mensagem direta ao STF. Uma ação sobre o tema é analisada na Suprema Corte desde 2015, mas ganhou fôlego no ano passado. Ela gira em torno da constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas, que fala do transporte e armazenamento para uso pessoal. Os magistrados focam a discussão em torno da maconha e também discutem uma quantidade que possa ser critério para distinguir usuários de traficantes.

Essa problemática deriva da Lei de Drogas, que não estabeleceu critérios objetivos para distinção, apesar de não punir com prisão os usuários. A discricionariedade fica nas mãos da polícia e do sistema de justiça, o que acarreta a criminalização da juventude preta.

Enquanto negros compõem 57% da população brasileira, eles são 68% dos processados por tráfico de drogas, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicados no ano passado. 

Para Dudu Ribeiro, a aprovação da PEC vai acentuar esse cenário. O texto adiciona que a distinção entre usuários e traficantes se dará “por todas as circunstâncias fáticas do caso concreto”, o que segue deixando vago quais são os critérios. “Podemos, inclusive, assistir, após a aprovação dessa PEC, um recrudescimento da política de guerra às drogas e uma ampliação do encarceramento já existente sobre a população negra”, diz.

Gabriel Sampaio, diretor de Litigância e Incidência da Conectas Direitos Humanos, concorda. “A consideração enquanto usuário ou enquanto traficante de uma pessoa negra, pobre e periférica acaba sendo bastante diferente em relação a pessoas de outras classes sociais e de outros fenótipos. Trazer para a Constituição um problema que já está na lei é agravar a consequência que já é sentida hoje no sistema de justiça criminal”.

Para ele, os parlamentares adotam uma estratégia equivocada ao analisar o julgamento no STF pelo âmbito moral. A questão, defende Sampaio, atinge uma população historicamente marginalizada e que vai continuar sofrendo caso a PEC seja aprovada.

“Na falta de critérios objetivos para determinar o que seria considerada uma quantidade para porte ou para tráfico, as incidências do racismo estrutural e de outras desigualdades estruturais no país acabam gerando graves injustiças e consequências para pessoas pobres e periféricas”, fala Gabriel Sampaio. 

Dudu vai além. Ele analisa que um resultado positivo no STF pode abrir caminho para uma discussão em torno de uma nova política de drogas. Contudo, é necessária uma mudança na cultura da polícia e do sistema judiciário para evitar condenações baseadas apenas na palavra dos agentes. 

“Ainda que se coloque critérios objetivos, se não mudarmos a lógica de atuação da polícia e como o sistema de justiça recebe e processa esses casos, não tem um grande impacto pelo não encarceramento das pessoas, sobretudo das pessoas negras, porque os processos podem continuar sendo baseados quase que exclusivamente na fala dos policiais. Se nós temos uma forma de condenação que não privilegia ou que não contém, na verdade, a perícia da prova da substância como parte fundamental do processo, é uma criminalização antecipada. Antes mesmo, no contato sobretudo das pessoas negras e periféricas com as drogas, seja utilizando ou comercializando, elas já são criminalizadas e os territórios que elas habitam também”, diz Dudu.

No STF, o julgamento foi novamente suspenso em 6 de março após pedido de vista (mais tempo para analisar o caso) do ministro Dias Toffoli. O placar até aqui é de 5 votos a 3 pela descriminalização. Além de Toffoli, faltam votar os ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia. 

Reação ao STF

Um dia após a suspensão do julgamento, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, falou em invasão de competência ao mencionar o STF. “O que se estará fazendo é a descriminalização da conduta numa invasão de competência do Congresso Nacional.”

“Significa que alguém que estiver portando droga para consumo próprio não terá consequência alguma àquele fato, sequer a droga vai poder ser apreendida, e muito menos o autor será autuado, classificado, até para fins de estatística. Então, seria um nada de coisa alguma, como consequência jurídica, esse fato”, disse Pacheco em sessão do Plenário do Senado. 

Pacheco, no entanto, admitiu que cabe à Justiça definir a quantidade de drogas para diferenciar usuários de traficantes. 

Durante sessão na CCJ, o senador Sérgio Moro (União Brasil-PR) atrelou a questão da quantidade a uma nova modalidade de tráfico. Para Moro, a liberação de uma quantidade fortaleceria o tráfico de pequeno porte.

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Para Dudu Ribeiro, a fala de Moro não encontra respaldo no mundo concreto. “A maioria das pessoas que estão sendo presas está sendo presa com pouquíssima quantidade de droga. A condição de estabelecer um critério objetivo pouco vai mudar o que já acontece hoje no mercado ilícito. É uma fala descolada da realidade”, afirma.

A PEC foi aprovada na CCJ em votação simbólica, quando não há registro nominal de votos. Apesar disso, os governistas Jaques Wagner (PT-BA), Fabiano Contarato (PT-ES), Humberto Costa (PT-CE) e Marcelo Castro (MDB-PI) registraram seus votos contrários. 

A proposta agora vai para o plenário do Senado, mas ainda não há data para a votação. 

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