PerifaCon: ‘Estamos conseguindo o que queríamos: construir pontes’

    Evento reuniu mais de 4 mil pessoas em 9 horas de programação para mostrar que a cultura nerd está além de espaços brancos e elitizados dos centros urbanos

    Evento reuniu mais de 4 mil pessoas no Capão Redondo, zona sul de SP | Foto: Márcio Schimming

    A cultura nerd chegou aos espaços periféricos na primeira edição do PerifaCon, a Comic Con da Favela, como chamam os seus organizadores. Com o objetivo de levar a temática geek (termo criado para retirar o teor pejorativo do termo nerd, que se refere a pessoas excêntricas que curtem tecnologia e jogos eletrônicos), os quadrinhos e os super-heróis para a periferia, o evento aconteceu na Fábrica de Cultura do Capão Redondo, extremo sul da cidade de São Paulo. Mais de 4 mil participantes rodaram pelos sete andares do prédio nas nove horas de programação, feita com artistas fora do padrão branco e elitizado que normalmente circulam no espaço nerd (termo que se refere a pessoas peculiares ou excêntricas, fãs de tecnologia, eletrônica, jogos eletrônicos ou de tabuleiro, histórias em quadrinhos, livros, filmes e séries).

    A radialista Patrícia Norica, 25 anos, decidiu ir para o evento com um cosplay (atividade que consiste em se fantasiar, com acessórios e outros artigos, representando um determinado personagem) de Super Choque, uma das poucas referências de super-heróis negros dos anos 2000. “O Super Choque marcou muito a minha infância, foi um dos personagens negros que foram apresentados para mim. Tinha a Tempestade, do X-Men, então além de marcar minha infância é de suma importância ter um personagem que te representa e o Super Choque era quem me representava”, explica.

    Público teve acesso aos artistas, como desenhistas | Foto: Márcio Schimming

    Para Patrícia, o evento mostra o quanto a periferia também consome esse tipo de conteúdo. “O evento está incrível. Introduzir a cultura nerd na periferia é de suma importância, porque tem muitos artistas e muitas pessoas que gostam desse universo e que não tem as condições de ir em outros eventos maiores. Trazer essa primeira edição gratuita é incrível. Estou aqui esperando para ter mais edições e cada vez mais expandir isso”, defende.

    Patrícia Norica foi ao evento como cosplay do Super Choque | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Muitos artistas e visitantes compararam o evento à CCXP (Comic Con Experience), maior evento nerd do mundo que, em 2018, oferecia ingressos que iam de R$ 89,99 a R$ 429,99 para quem quisesse acompanhar os quatro dias de evento. Para a auxiliar de enfermagem Luciana Moreira, 34, que foi ao evento com a família, espaços do universo nerd não são acessíveis para pessoas das periferias, principalmente por causa dos valores altos. “Curtimos essas coisas desde que a gente formou a nossa família, mas vemos que os outros eventos, que são promovidos nesse universo, não são acessíveis, são muito caros. Não são eventos feitos para todo mundo”, conta.

    Luciana e a família foram vestidos de “Os Incríveis”, família de super-heróis da Pixar | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Para ela, o evento do PerifaCon a fez se sentir a vontade. “É muito legal a gente vir em um evento e saber que tem pessoas de todo o tipo e não um evento de elite, que são em certo ponto arrogantes, com muitas coisas em outra língua. Aqui é muito voltado para gente entender o que está acontecendo e para divulgar essa cultura para outras pessoas, porque é algo divertido e acessível, não só para as crianças, mas para adultos, e podemos partilhar como família. Muitas vezes a gente fica de fora desses espaços por causa do valor ou pelo evento não ser tão divulgado. É muito bom trazer a família toda e encontrar outras pessoas que gostam da mesma coisa que a gente”.

    Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    O produtor Rodrigo Portela, 30 anos, saiu da zona leste da cidade para levar seu filho Zion, 9, para o evento. “Mostra que, além da gente conseguir produzir muita coisa dentro da periferia, tem a questão de conseguir acessar esse conteúdo. Temos outros eventos, como a Comic Con, só que a gente sabe que o valor que ela coloca já acaba limitando o acesso, principalmente da galera da periferia. Trouxe meu filho porque sabemos que é um assunto que está efervescente hoje e é necessário acessar a fonte dele. Isso desperta muitas coisas em uma criança e o evento mostra que a periferia não é mais o quadro ruim que pintavam, pelo contrário, a gente produz muita coisa e tem conseguido mostrar isso”, comenta.

    Rodrigo levou o filho Zion para conhecer o universo nerd da periferia | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Entre os artistas que tiveram seus trabalhos expostos no evento circularam pessoas novatas e nomes consagrados do universo nerd. A dupla que criou e deu vida ao “Rap em quadrinhos”, Load Comics e Wagner Loud, que ilustrou grandes nomes do movimento hip hop (como Negra Li, Eduardo, KL Jay, Emicida, Criolo, Mano Brown, Drik Barbosa entre outros) conversou com a Ponte para contar como foi estar em um evento na periferia.

    Encontro também contou com debates | Foto: Márcio Schimming

    “Quando a gente chega na periferia e tem um evento desse tamanho, que normalmente acontece só no centro e locais de muito fácil acesso para a elite, é muito louco checar aqui no Capão e ver tanta molecada fantasiada e famílias querendo trocar ideia sobre quadrinhos, coisas que a gente sempre fez na periferia, mas nunca teve espaço de expor em casa”, conta Load, 27 anos, idealizador dos quadrinhos.

    Sessão de autógrafos do “Rap em quadrinhos” | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Para Loud, 28, ilustrador do “Rap em quadrinhos”, a PerifaCon ajuda a inserir crianças e jovens da periferia no mundo nerd. “Nerd existe em todo meio, não dá para achar que só porque o cara é de periferia que ele não consome esse tipo de cultura, desde novo a gente assiste muitas animações e sente a carência de ter eventos como esse. Aqui da PerifaCon podem sair moleques para ser quadrinistas e MC’s ou o que eles se sentirem à vontade. Elitizar espaços, como fizeram lá no [shopping] JK, em que não deixaram as crianças entraram na exposição, é algo muito ruim, pois aquelas crianças já estão enfrentando o racismo estrutural e o preconceito social de cara. Um evento desse é importante por isso, aqui ninguém vai barrar você”, defende.

    Dupla Load (à esq.) e Loud (à dir.), criadores do “Rap em quadrinhos” | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Um dos artistas novos que pode expor seu trabalho foi o ilustrador Lucas Lima, de 25 anos. “É importante criar esses espaços de conversa e de troca com as pessoas da periferia, descentralizar essa questão e de colocar sempre a cultura a favor de uma elite branca. Essa é uma forma de artistas como eu, que sou periférico, de mostrar para pessoas periféricas o que eu produzo. É criar outros lugares de diálogo, de comunicação, de fazer o trabalho rodar nas mãos das pessoas. Não é só levar para o centro, é levar para o seu vizinho que mora no Capão”, conta o artista que produz ilustrações de pessoas negras e periféricas.

    Lucas Lima expôs o seu trabalho na ‘Sala dos artistas’ | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Para a artista plástica Nina Satie, 23 anos, a PerifaCon foi um espaço para conhecer outros artistas emergentes como ela. “É muito revigorante expor meu trabalho nesse evento. Há um tempo eu achava que o meu espaço enquanto artista e mulher negra era muito limitado e estereotipado, eram espaços que eu não alcançaria se não através de uma arte marginal. Essa iniciativa, além de ser incrível, é muito importante nesse sentido, para dar visibilidade para artistas que já estão consolidados na cultura negra e para artistas emergentes que é o meu caso. A gente tá podendo trocar contato, a grande maioria desses artistas eu não tinha conhecimento do trampo e são trabalhos que mostram narrativas únicas que o mundo não está tendo acesso”, disse a artista, que faz trabalhos artísticos para quebrar o estereótipo da mulher negra na sociedade.

    A aristas plástica Nina Satie com seu trabalho | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Já Gabrielly Oliveira, uma das organizadoras do PerifaCon, explica que a ideia agora é ter mais edições do evento. “Está sendo muito mágico ver crianças fantasiadas, ver adultos de cosplay, salas de jogos, expositores, tudo rolando ao mesmo tempo e saber que eu fiz parte disso, de 7 andares de programação. A gente se esforçou muito, conjuntamente, para fazer tudo isso acontecer. Todos da equipe trabalham e estudam, estamos lutando pra sobreviver, então não foi fácil. Realmente, estamos conseguindo o que queríamos, que era construir pontes. Queremos muito fazer segundas, terceiras e quartas edições”, explica.

    Cosplays ao lado dos visitantes durante evento | Foto: Rosa Caldeira/Ponte Jornalismo

    Gabrielly conta que organizar o evento a fez perceber que também é uma nerd. “Para mim, foi um processo de me reconhecer como nerd. Eu sempre fui, mas não me reconheci nesse lugar porque as representações que eu tinha era sempre de algo distante, um lugar que eu nunca estava de corpo presente, era sempre alguma fotografia em algum site ou na televisão”.

    Cosplays chamaram a atenção do público | Foto: Márcio Schimming

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