Podcast investiga como jornalistas e policiais perseguiram cultos de matriz africana no Paraná

‘Caso Athanásio’, do Podcast Rádio Parágrafo 2, analisa como a imprensa cobriu a prisão de um babalorixá, em 1984, com manchetes que diziam ‘Descoberto o templo do diabo’ e ‘Valia de tudo na seita do demônio’

Rádio Parágrafo 2 aborda a relação da imprensa com cultos de Matriz Africana ao longo da história.
Rádio Parágrafo 2 aborda a relação da imprensa com cultos de Matriz Africana ao longo da história | Foto: Arquivo Rádio Parágrafo 2.

“A relação da imprensa com os cultos de matriz africana foi a pior possível desde sempre”: a constatação é de José Pires, editor chefe do Parágrafo 2, veículo de jornalismo independente que desde 2015 cobre temas ligados aos direitos humanos. Pires é um dos idealizadores e diretores de Caso Athanásio, uma série do programa Podcast Rádio Parágrafo 2, que estreou nesta semana. O programa explora a relação da imprensa brasileira com o racismo e a intolerância religiosa contra cultos de matriz africana, a partir da prisão de um babalorixá ocorrida no Paraná em junho de 1984.

O babalorixá Athanásio de Souza Bueno foi preso na cidade de Piraquara, na região metropolitana de Curitiba, no Paraná. Nos jornais da época, Athanásio era comparado ao demônio: “Descoberto o templo do diabo” e “Valia de tudo na seita do demônio” diziam as manchetes, que o acusavam de promover orgias, incesto e violência sexual.

O podcast ouviu jornalistas que cobriram o caso, personagens que vivenciaram a história e pesquisadores, entre outras fontes. Serão cinco episódios, dos quais o primeiro já está disponível no Spotify, na Deezer e na Amazon Music. A direção é de Rafael Pires de Melo, professor de história e filosofia da rede estadual do Paraná. 

“O caso Athanásio é um exemplo emblemático de como a imprensa foi extremamente intolerante e racista”, explica José Pires, que também explorou fragilidades nas acusações publicadas pelos jornais da época. “Não se sabia o endereço correto onde Athanásio foi preso. O endereço que os jornais divulgavam ficava a mais ou menos 10 quilômetros de distância de onde o pai de santo foi realmente preso. Isso significa que a polícia passou esse endereço para os jornalistas e ninguém checou, simplesmente reproduziram. Se eles não checaram nem o endereço, imagina as outras acusações.”

Sangue de animais usado para sacrifícios, além de objetos sexuais supostamente usados nas mulheres, revistas pornográficas e meio quilo de maconha foram as evidências encontradas pela polícia para justificar a prisão de Athanázio, explica Pires. “A imprensa era uma espécie de assessoria de imprensa da Polícia Civil e da Polícia Militar, os jornalistas eram muito amigos dos delegados e dos policiais”, afirma. 

Pires entrevistou jornalistas da época, que alegaram que a polícia pagava a repórteres para que algumas histórias fossem publicadas. “Isso promovia as delegacias e os jornalistas que se negavam a aceitar esse suborno eram muito mal vistos entre os policiais e entre os colegas da imprensa.” 

Num cenário em que a formação em jornalismo ainda era muito limitada, muitos desses profissionais eram ex-policiais. “Existiam apenas duas universidades que ofereciam um curso de jornalismo, a PUC [Pontifícia Universidade Católica] e a Universidade Federal do Paraná. Entrar no curso de jornalismo era mais concorrido do que ser aprovado no curso de medicina, então pouquíssimos jornalistas tinham formação profissional com acesso a disciplinas, a textos e a livros de sociologia, de filosofia e de antropologia.”

Nesse sentido, as histórias sobre os cultos de matriz africana eram um banquete para a imprensa da época. “Os jornalistas seguiam uma cartilha de colaboração com a polícia e uma cartilha comercial, que era orientação dos empresários donos dos jornais. A imprensa refletia uma visão moral da sociedade, principalmente no caso do Athanázio a sociedade consumia aquilo para satisfazer os seus preconceitos”, aponta Pires.

O Estado, por sua vez, tinha uma tradição de opressão contra os praticantes de cultos de matriz africana. O podcast aborda que mulheres negras foram condenadas por supostas práticas de feitiçaria ainda no século XVI. “Mulheres escravizadas, ou que tinham ganhado alforria e estavam tentando sobreviver de alguma maneira, eram perseguidas e condenadas”, afirma.

Na primeira metade do século XX, Curitiba vivia um cenário ambíguo com relação a essas religiões, analisa José Pires. Por um lado havia a perseguição da polícia, da imprensa e de outros setores da sociedade, mas ao mesmo tempo muitos políticos buscavam atendimento e ajuda espiritual. 

Temendo represálias, alguns pais e mães de santo utilizaram diversas estratégias para conseguir manter os seus terreiros abertos, nas décadas de 1950 e 1960. “Existiam algumas operações chamadas ‘Fura Tambor’, nelas a polícia da ditadura militar invadia os terreiros, parava os trabalhos e cobrava propina para que esses cultos pudessem manter essas casas de rezas. Quem não pagasse esse suborno estaria fadado a ter o seu terreiro fechado.”

Dentre os exemplos de veículos que incentivaram a visão racista e intolerante sobre a umbanda e o candomblé, Pires destaca a atuação do jornal Diário da Tarde, sediado em São Paulo e que também circulava em Curitiba, e que promoveu, no começo do século passado, o que o jornalista considera “uma verdadeira cruzada contra os cultos de matriz africana”.

“Tem por exemplo, matéria do Diário da Tarde, de 1931, que traz uma suposta reportagem investigativa sobre ‘macumba’ e ‘feitiçaria’. O título era mais ou menos assim: ‘O mal de todos os tempos aumenta assustadoramente’. O texto destacava que Curitiba estava ‘infestada’ de ‘macumbeiros’”, relata. “O texto pedia o combate e a repressão sobre os cultos, já que as famílias curitibanas estavam assustadas e oprimidas pela ‘feitiçaria’.”

Mesmo hoje, Pires avalia que a cobertura midiática sobre as religiões de matriz africana está longe de ser a adequada, exemplo disso é o tratamento jornalístico ao caso Lázaro Barbosa, um assassino procurado pela polícia em 2021, em Goiás. “Tem um episódio bem marcante que é quando um jornalista visita uma casa onde Lázaro teria morado, isso enquanto ele era caçado pela polícia, e lá esse jornalista encontra alguns assentamentos de Exu, uma simbologia do candomblé, e isso foi divulgado como satanismo.”

Como resultado disso, terreiros de umbanda e candomblé foram invadidos pela polícia, recorda o jornalista. “Os policiais agrediram pais e mães de santo, tem diversos relatos. Isso é reflexo puro da atuação desastrosa e preconceituosa da imprensa.”

A atuação do apresentador Sikear Jr, também é lembrada por Pires. “Ele faz chacota com pontos que são considerados sagrados na umbanda, ele dança e dá risada, com certeza a gente não vai ver ele fazendo chacota com pastor evangélico ou com padre, por exemplo. Ele é um reflexo de tudo isso que a imprensa trouxe e até hoje está ali, discreto, incrustado, mas vivo.”

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“O que fez o Estado mudar a sua postura foi uma mudança gradual na sociedade, o acesso das pessoas à educação e ao desenvolvimento do pensamento crítico, e a criação de políticas como as cotas raciais e sociais, assim como o endurecimento e criação de leis que garantem a liberdade religiosa”, afirma o criador do podcast. “Hoje existem mecanismos legais para reprimir e punir quem pratica intolerância religiosa, mas ela ainda é muito grande, o caminho é muito longo.”

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