Quadrinhos relatam resistência dos Tupinambá contra a violência do Estado no sul da Bahia

    Os Donos da Terra traz sete episódios cobrindo o passado e o presenta da luta dos Tupinambá por autonomia e reconhecimento

    Arte: Vitor Flynn

    Há mais de 16 anos, indígenas Tupinambá lutam e resistem na aldeia Serra do Padeiro, na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. Constantemente ameaçados de morte e com seus direitos violados pelo Estado brasileiro, agora eles viraram história em quadrinhos.

    Lançada no começo de setembro, a HQ Os Donos da Terra traz a coautoria de Daniela Fernandes Alarcon, doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora do livro O Retorno da Terra, Glicéria Jesus da Silva, liderança Tupinambá e professora no CEITSP (Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro), e Vitor Flynn Paciornik, quadrinista e ilustrador.

    Os donos da terra - indígenas tupinambá
    HQ Os Donos da Terra conta a história dos povos Tupinambá | Arte: Vitor Flynn

    Feito de forma coletiva, o livro é uma pesquisa antropológica feita por Daniela, em parceria com Glicéria, nos últimos 10 anos. Em sete narrativas, a obra aborda episódios do passado e do presente da luta dos Tupinambá pela retomada dos territórios ancestrais. Os quadrinhos também mostram as operações da Polícia Federal e ações paramilitares na região, que resultaram nas prisões de lideranças e muita violência.

    Em entrevista à Ponte, Daniela conta que a produção da HQ durou quatro anos, mas ficou mais intensa no último ano. A escolha pelo formato de quadrinhos foi feita em conjunto. “Pensamos em HQ porque sempre gostarmos de ler HQ. A Glicéria tem um olhar muito visual, gosta muito de arte e lembra de ler muito gibi quando era criança, então tem essa coisa da memória afetiva para muita gente”, explica.

    O processo da produção foi coletivo porque, de certa forma, toda a aldeia ajudou. “Quando eu comecei a fazer pesquisa em 2010, várias áreas [da aldeia] não tinham eletricidade. A Glicéria foi presa na luta para fazer o ‘Luz para Todos’ [programa do governo federal] chegar na aldeia. Quando eu ia para lá, às vezes trabalhávamos à luz de velas. Hoje a aldeia está toda eletrificada por conta da luta deles, não é algo que o Estado pegou e levou”.

    Foi via WhatsApp que Daniela e Vitor conseguiam dialogar em tempo real com Glicéria, que conversava com toda a aldeia para fechar as páginas da HQ. “Por exemplo, eu estava aqui montando um roteiro e surgia a ideia de ter uma brincadeira de criança, que hoje não existe mais, que era uma zarabatana que se fazia com o caule do mamão, para jogar bolinhas na cabeça dos primos. Eu nunca tinha visto esse brinquedo, então mandava um WhatsApp pedindo pra Glicéria me descrever”, detalha Daniela.

    “No dia seguinte, ela foi no pé de mamão, tirou o caule e fez fotos e vídeos dos filhos dela brincando com a zarabatana. A gente conseguia pensar em personagens e rever o roteiro em tempo real por causa do WhatsApp. Também íamos mandando as páginas prontas para as pessoas irem olhando e comentarem”, conta.

    O quadrinista Vitor Flynn vai além e afirma que essa história não poderia ser contada sem os Tupinambá. “Não poderia ser de outra forma, é a história deles, então é a voz deles que tem de ser contada, não a minha como autor. Foi o caso de me colocar a serviço de uma fala que é invisibilidade na nossa sociedade”.

    Em 2016, Vitor lançou a HQ Xondaro, sobre a luta dos Guarani Mbya pela demarcação de suas terras dentro dos limites da maior cidade da América do Sul. À Ponte, ele explica as diferentes experiências que teve nos dois quadrinhos. “Eu já tinha contato com as lutas por interesse próprio, por ser alguém de esquerda que respeita os direitos indígenas, que acredita que sem esse respeito não temos a menor chance de ser uma sociedade mais igualitária, além da minha formação em Ciências Sociais”.

    “Nessa nova HQ, a Glicéria fez a pesquisa e a Daniela fez o roteiro. O Xondaro é mais curto, Os Donos da Terra tinha uma proposta de ser algo com mais fôlego. Se eu fosse escrever eu não daria conta de fazer, porque eu não tenho o conhecimento e a relação com os Tupinambá que a Dani tem. É mais do que natural que fosse ela a responsável por escrever”, aponta Vitor.

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    “Por um lado, foi um processo bem complicado, porque havia a responsabilidade de lidar com pessoas reais envolvidas em um processo de violência muito grande, em que eu tive que tomar muito cuidado, mas, ao mesmo tempo, foi uma satisfação muito grande de poder assumir essa responsabilidade”, completa o quadrinista.

    Outro cuidado do trio, principalmente de Daniela que cuidou do roteiro da obra, foi preservar a oralidade dos Tupinambá. “Você ouvir uma história Tupinambá é muito cativante, porque a face da pessoa se transforma, ela faz as vozes dos personagens. A gente tentou trazer isso e, na minha percepção, a HQ tem uma aquarela belíssima e uma fala muito forte. As duas coisas tão conversando bem”.

    Resistência Tupinambá: uma história de luta

    Glicéria é personificação da luta dos Tupinambá. Sua família é liderança na aldeia Serra do Padeiro e vive sob constante ameaças de morte. Em junho de 2010, ela foi presa por sua atuação na luta pela terra, com o seu primeiro filho no colo. Foram os dois meses mais difíceis e longos de sua vida dentro do Conjunto Penal de Jequié, no sudoeste da Bahia.

    “O mundo cai quando nos colocam algemas, que apertam os seus punhos, porque não são os punhos que apertam, é a cabeça, são os pensamentos, seus sonhos e ideais. Além de dar a nossa vida e nosso sangue, ainda temos que nos dar até a alma”, critica.

    A liderança foi presa após uma audiência com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante uma reunião do Conselho Nacional de Política Indigenista. “Fui falar da violência que o meu povo estava sofrendo, da polícia à paisana, armada e colocando armas na cabeça das crianças. A gente tava sem poder produzir e já tinha mais de vinte mandados de prisão de pessoas das comunidade que estavam simplesmente lutando por um direito que tem na Constituição”.

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    No cárcere, ela conheceu a pior face do Estado. “Aqui fora as pessoas são ruins, mas lá elas são piores. Eu adoeci dentro do presídio. As outras detentas cuidaram muito de mim e do meu filho, eu tive muita febre e estava amamentando. Quando fui levada para o hospital foi uma situação muito difícil, estávamos em uma sardinha, presa, algemada, escoltada e com um monte de arma voltada para mim. Parecia aqueles filmes, que eu era terrorista”, detalha em entrevista à Ponte.

    Apesar disso, ela não parou de lutar. Em 2019, participou da 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, denunciando as violações de direitos contra povos indígenas pelo Estado brasileiro. “A gente nunca abaixou a cabeça porque sabemos que essa violência não é só com os povos indígenas, vemos que os ribeirinhos e quilombolas também vivem isso. Vários povos sofrem muito essa discriminação e a pressão do Estado contra eles. A pressão é do Estado”.

    “Vivemos em uma sociedade perversa que para as comunidades indígenas se torna duas mil vezes mais perversa. Vivemos em uma comunidade de aldeia que o território nos é tirado, a violência é constante, os fazendeiros nos ameaçam de morte e somos culpados por toda essa situação”, brada Glicéria.

    Nos quadrinhos, a prisão das lideranças é ilustrada pela prisão de Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau. “Depois que eu fui presa, eles deram sumiço no cacique. Ele foi levado para Mossoró [no Rio Grande do Norte], daí tiraram de lá, deram sumiço no sistema e depois ele apareceu novamente no sistema quando estavam dando 500 mil reais pela nossa cabeça”, detalha Glicéria.

    “Quem conta primeiro a história de criminalização é a mídia, que se junta com o poder político e jurídico. Os espaços que temos de denúncia são esses, por isso esse quadrinho mostra o quanto sofremos de preconceito e de violência”. 

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    Para Daniela, a violência do Estado sempre esta presente na aldeia. “Há um pico de visibilidade nas reintegrações, mas antes da reintegração você tem um processo de criminalização. Ela tá presente porque o Estado não cumpre as suas responsabilidades e não demarca essas áreas, não finaliza esses processos, não retira os ocupantes não indígenas”, aponta a pesquisadora.

    Por isso, quem deve ser combatido, explica Glicéria, não é o homem branco, mas o sistema. “Sempre me perguntam sobre o homem branco, mas eu sempre questiono que branco é esse. O branco que a gente vem sofrendo é essa violência, de um formato de capitalismo que é perverso”.

    “Não é a pessoa branca, mas esse branco que tem uma raiz de muitos anos que tem esse pensamento de perseguir as comunidades. Temos muitas pessoas brancas nas universidades lutando e enfrentando, temos pessoas brancas aqui com a gente como aliadas. O branco não é a cor da pele, mas a violência que massacra a sociedade”.

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    Daniela é um dos exemplos dessa aliança, aponta Glicéria. Para a liderança, a pesquisadora fez algo que ninguém havia feito pelos Tupinambá: “A gente sempre tá participando, orientando, acompanhando as pessoas, mas fazer o quadrinho foi bem diferencial porque a gente, além de ajudar e falar as ideias, foi muito rico assinar como coautora. A gente sempre dá o suporte, mas ficamos de fora. Ficamos felizes, mas nunca fazemos parte”, conta.

    “Daniela sempre faz essas surpresas. Ela me convidou para fazer o prefácio do outro livro dela [O Retorno da Terra, lançado em setembro de 2019 pela Elefante editora] e agora me convidou para fazer esse trabalho junto. É de uma sensibilidade e uma humildade reconhecer o trabalho do outro. A gente vem trabalhando, mas nunca faz parte, é sempre a sombra. A gente não tinha noção que a nossa história poderia virar história em quadrinho”, completa Glicéria.

    Mensalmente, os Tupinambá precisam pagar advogados e tem os seus processos rituais e diários interrompidos. “É muito caro ficar aqui na aldeia, porque nunca podemos parar de pagar advogados para nos proteger. Agora na pandemia, somos monitorados por drones, que tem uma luz muito forte, sempre que ele chega a internet cai. Colocamos câmeras de segurança aqui na região para provar que estão querendo nos matar”, conta Glicéria.

    “A gente simplesmente queria ter a nossa terra para fazer os nossos rituais e cultivar as nossas coisas. O que estamos vivendo hoje, que a natureza está nos mostrando na aldeia, é que estamos pelo caminho certo. Mas, ao mesmo tempo, vemos a natureza ser destruída em outros cantos. Se a gente não lutasse antes, estaríamos vivendo coisa pior”, aponta.

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    Essas ameaças, explica Glicéria, faz com que os indígenas Tupinambá não possam ter uma rotina. “Para sair, temos que avisar outras pessoas, não podemos ir no cinema, no mercado na hora que quiser. Não podemos ter rotina porque estamos sendo vigiados. É um Big Brother que vigia para nos matar”.

    Apesar disso, Glicéria frequenta o IFBA (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia) para cursar Licenciatura Intercultural Indígena. “Um dia a professora me cobrou e eu perguntei se ela já tinha sido ameaçada de morte. Para mim é muito mais difícil ter uma vida normal porque a minha vida é para viver dentro da comunidade, mas mesmo assim quero estudar e construir coisas”.

    Com o atual governo federal, do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a tensão na aldeia piorou. “O governo Bolsonaro tem dois inimigos: o meio ambiente e os povos indígenas. Ele precisa exterminar esses dois inimigos”, afirma a liderança Tupinambá.

    “Da eleição do Bolsonaro para cá o que a gente enxerga muito claramente é a agudização do conflito. No primeiro mês do mandato dele vem à tona um plano para assassinar quatro lideranças Tupinambá. Tem uma série de ameaças”, completa Daniela.

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    Um dos principais motivos para os conflitos, argumenta Daniela, é a ausência de demarcação das terras indígenas. “Não se cria uma terra indígena, se reconhece uma terra indígena. Se entende que essa terra pré existe a ocupação colonial”, crava.

    “O que se discute na Antropologia e na História, e que os povos indígenas falam com muita ênfase, é que a condição de possibilidade para esses modos de vida poderem expressar suas identidades é o território. O território é a base pra existência dessas coletividades. Então, quando se demarca uma terra indígena não é simplesmente uma questão de cumprir a lei, mas é criar condições de futuro para essas coletividades”, aponta.

    Serviço

    Para garantir o seu exemplar da HQ, acesse o site da Elefante editora. E não perca o bate-papo com os autores, na próxima quarta-feira (30/9) às 19h, nas redes da livraria Tapera Taperá.

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