Relatório alertava governo de SP sobre tortura em manicômio que teve motim e fuga

    Análise do Mecanismo Combate à Tortura apontou “indícios de tortura, bem como de tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes” em Hospital Penitenciário de Franco da Rocha, que teve motim e fuga de 55 internos

    Há exatamente um ano, uma equipe do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura) analisou o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha, o antigo Manicômio Judiciário da Grande São Paulo, que teve motim e fuga de 55 internos na tarde da última segunda-feira (17). Até a divulgação desta reportagem, 51 haviam sido encontrados e internados novamente. Desde o ano passado, a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) tem ciência de que foi relatado indícios de tortura, bem como de tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes” no local, recebendo diversas recomendações para melhora do ambiente.

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    A visita teve caráter sigiloso, de modo que nem a direção, nem as pessoas privadas de liberdade sabiam que membros do MNPCT iriam ao local. A equipe foi recebida pelo diretor da unidade, Luiz Henrique Negrão, que não colocou nenhum obstáculo no trabalho do mecanismo.

    O relatório aponta que a unidade foi escolhida para ser analisada “pelo histórico de denúncias de agressões e maus-tratos acumulado”, além da “importância de ser abordada a problemática da aplicação de medidas de segurança, especialmente nos chamados manicômios judiciários”.

    Durante a visita, os internos permaneciam nos pátios das colônias conversando, limpando os quartos, organizando seus pertences, lavando louça ou roupa, entre outras atividades. Para os membros do MNPCT, isso revelou, de cara, “uma rotina sem atividades terapêuticas coletivas, de lazer e voltadas para o meio externo à instituição. O aspecto asilar e mortificador do espaço físico atinge os pacientes, cronificando-as(os) pela ausência de perspectiva de tratamento e de desinstitucionalização“.

    Segundo os registros da unidade, os trabalhos desenvolvidos pelos setores de psicologia e assistência social da instituição não se articulam com serviços da rede pública existentes e nem apontam para a construção de um projeto terapêutico vinculado aos interesses dos pacientes em relação à sua vida depois da internação. “O acompanhamento técnico é notavelmente insuficiente diante das necessidades das pessoas internadas. Os profissionais de saúde concentravam-se, sobretudo, nas “clínicas”, mesmo local onde anteriormente se localizavam as “salas de isolamento”, conforme informado pela direção”, relata a análise.

    “Embora tenhamos conhecido as salas de acompanhamento psicológico, social e de terapia ocupacional, notamos que nenhum atendimento estava sendo realizado durante a visita”, complementa. A este respeito, a própria direção da unidade assumiu a necessidade de que fossem contratados mais terapeutas ocupacionais para compor a equipe técnica da instituição.

    Também durante a visita, foi possível observar a presença de Agentes de Segurança Penitenciária (ASP) no convívio com os pacientes a todo o momento, seja no pátio ou nos pavilhões que servem de dormitório.

    “Ainda que alguns profissionais de segurança se empenhem em tratar os pacientes com dignidade, falta-lhes formação e experiência técnica para desempenhar um papel que fosse efetivamente terapêutico. A presença dos ASPs em todos os espaços da unidade revela a dimensão disciplinadora no cotidiano da instituição”, aponta o relatório.

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    De acordo com a análise, o “carácter disciplinador hegemônico” do local “contraria a definição legal de que a pessoa com transtorno mental seja tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade”.

    O MNPCT afirma, ainda, que recebeu inúmeros relatos de agressões cometidas por funcionários da instituição, tanto os ligados à segurança da unidade quanto os da área de saúde. “Agressões verbais, humilhações, espancamentos, uso da contenção como punição e como rotina institucional fazem parte do tratamento violador dispensado aos pacientes”.

    As considerações finais da visita ao Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico é de que “os aspectos observados dialogam com o que há muito é apontado por diversas organizações, entidades e movimentos de saúde mental e direitos humanos sobre os chamados manicômios judiciários. Tais instituições, longe de oferecem tratamento a pessoas com transtorno metal que se envolveram em situações criminais, são marcadamente manicomiais, desrespeitando a legislação vigente e as diretrizes da saúde mental. Sobretudo, são instituições que violam sistematicamente os direitos humanos das pessoas internadas, sendo, inclusive, palcos freqüentes de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. As condições institucionais, nesse sentido, implicam na destituição de qualquer possibilidade terapêutica”.

    Assim, a sugestão é de que sejam oferecidas “condições de respeito aos direitos e à dignidade das pessoas internadas na unidade, construir um serviço de atendimento à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei de acordo com a legislação vigente e com as normativas internacionais, prevenir os maus tratos e a tortura, bem como oferecer condições de desinstitucionalização e retorno ao convívio livre e coletivo para aqueles que estão institucionalizados”.

    Catarina Pedroso, perita do MNPCT e que participou da visita técnica, afirmou à Ponte Jornalismo que percebeu que a situação do local “é de violação dos direitos das pessoas privadas de liberdade”: “As pessoas encontram-se sem o devido acompanhamento terapêutico e, ao mesmo tempo, submetidas à lógica da disciplina prisional, o que agrava sua condição de sofrimento psíquico”, disse.

    A perita afirmou que foi possível “observar as práticas institucionais, que incluíam o uso rotineiro de contenção mecânica e química, inclusive como forma de punição, e agressões às pessoas privadas de liberdade”. Ainda de acordo com ela, “na unidade, o que se vê são vidas impedidas de serem desfrutadas, pela institucionalização e pelas violações que lhes são impostas. O ambiente é mortífero, pois, de fato, não há possibilidade de se levar uma vida com dignidade em um espaço prisional e manicomial”.

    De acordo com a legislação e as normativas nacionais e internacionais, as pessoas com transtorno mental devem ser tratadas com dignidade e acompanhadas em serviços da Rede de Atenção Psicossocial. “No entanto, o que encontramos foi um ambiente asilar, extremamente degradante, em que as pessoas não tinham uma perspectiva de desinstitucionalização, que deveria acontecer através do contato com familiares e com os serviços da rede de saúde mental da região”, complementa Catarina.

    O local

    O HCTP (Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico “Professor André Teixeira Lima”) é uma instituição voltada ao cumprimento de medidas de segurança para pessoas que, a despeito de terem cometido algum crime, foram consideradas inimputáveis por apresentarem transtorno mental no momento do ato ilícito. A unidade é, portanto, vinculada à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do Estado de São Paulo, apesar de um de seus objetivos centrais ser a promoção de tratamento para as pessoas privadas de sua liberdade

    Construído no início do século XX, o local localiza-se na borda da região metropolitana de São Paulo e que guarda as características de um manicômio tradicional. “É importante destacar que o município de Franco da Rocha é marcado pela presença histórica de instituições de privação de liberdade: além de dois HCTPs, há ainda outras cinco unidades prisionais, uma unidade da Fundação Casa e o Hospital Psiquiátrico Juqueri, inaugurado no final do século XIX, abrigando uma enorme quantidade de pessoas”, afirma o relatório.

    De acordo com o “Censo” populacional realizado pela própria instituição sobre as pessoas internadas no HCTP até dezembro de 2014 (foram analisadas 401 pessoas das S72 que lá estavam):

    • 62% tinham entre 18 e 40 anos, 33% entre 41 e 59 anos e 5%, acima de 60 anos, configurando um público majoritário relativamente jovem;

    • 75% estavam internados entre zero e cinco anos na unidade, 21% entre cinco e dez anos, 2% estavam na unidade entre 10 e 15 anos e, por fim, aproximadamente 1% há mais de 15 anos.

    • quase a metade (45%) tem respaldo familiar presente, enquanto 33% têm respaldo relativo e 22% ausente.

    • a maior parte (54%) tem vínculos familiares no interior, enquanto 7% têm vínculos em outros estados. No entanto, 38% têm vínculos na grande São Paulo.

    De acordo com a análise, os perfis mostram que, dentre os pacientes, muitos poderiam manter contato permanente com seus familiares, assim como poderiam utilizar serviços públicos próximos a suas regiões de origem. “Ademais, o fato de a população ter majoritariamente entre 18 e 40 anos aponta uma perspectiva importante de construção de projetos de vida após a desinstitucionalização”.

    Outro lado

    O governador Geraldo Alckmin (PSDB) afirmou em coletiva de imprensa que a rebelião ocorreu porque os internos souberam que cinco pessoas do local seriam transferidas para outros presídios.

    Procurada desde a tarde desta terça-feira (18/10), a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) não se posicionou sobre o relatório até a divulgação desta reportagem.

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