Sem direitos: 28,2% da população não têm acesso à educação

    Neste grupo, estão analfabetos, crianças de 6 a 14 anos que não frequentaram a escola e pessoas de 15 anos ou mais que não têm o fundamental completo

    Este texto começa em um dos pontos mais altos da Rocinha – a Rua 1. Sob o vaivém dos becos, é este um dos locais mais movimentados da favela, que tem cerca de cem mil moradores. E é numa espécie de ‘’expedição’’ que vamos à casa de um deles: Pedro de Sousa, senhor de 87 anos e pertencente a um dos quadros mais tristes da pesquisa do IBGE: os sem direito à educação.

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    Para o instituto, enquadram-se neste perfil os analfabetos, crianças e adolescentes de 6 a 14 anos que não frequentam a escola, bem como pessoas de 16 anos ou mais que não completaram o Ensino Fundamental. Pedro Leôncio ou Seu Pedro, como é carinhosamente chamado, preenche todos os requisitos: a última vez que colocou os pés dentro da sala de aula foi há 78 anos, quando era apenas um menino de nove. Menino que, naquela idade, já desempenhava atribuições de gente grande. ‘’Tinha muito serviço para fazer’’, relembra ele, remontando à outra ‘’escola’’: a do machado e da enxada.

    De origem pobre, Seu Pedro é cearense do interior de Sobral. Nasceu justamente na cidade que hoje figura em primeiro lugar no ranking do Ideb nos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental. Entretanto, o município é exceção à regra. Pelos dados do IBGE, a região Nordeste é onde o acesso à educação é o mais restrito, com 34,7% da população excluídas deste direito, seguida das regiões Sul, Norte, Centro-Oeste e Sudeste (24,1%). Apesar de ter frequentado a escola por breves períodos, Seu Pedro não sabe ler nem escrever.
    Assessor da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar (OMEP), Vital Didonet aponta que, de todo contingente populacional dos sem acesso à educação, os analfabetos são o grupo mais vulnerável. “O analfabetismo repercute na educação dos filhos e é prejudicial ao próprio analfabeto, que fica com sua auto-imagem abalada e não consegue emprego”, sustenta. “Pais mais instruídos mantêm os filhos na escola por mais tempo porque perceberam que a educação fez diferença em suas vidas”, afirma Didonet “Uma criança de 6 anos ainda tem toda uma vida pela frente. O analfabeto já sofreu com o analfabetismo durante 40, 50 anos de sua vida”, compara.

    Durante a conversa com Seu Pedro, deu para perceber a lacuna que a falta de ensino deixou em sua vida. Junto com os irmãos – eram 16 e hoje são 12 – sua batalha era para colocar comida na mesa. Toda a renda adquirida por seus serviços em obras ia para ajudar em casa. ‘’Eu, às vezes, tinha até muita inteligência’’, brinca o senhor. Naquela época, ele intercalava a rotina de trabalho com a dos estudos e aponta que, nas ocasiões em que podia ir ao colégio, a memória não ajudava. ‘’Quando ia, já tinha esquecido tudo’’.

    Morador da Rocinha, Pedro de Sousa, de 87 anos, não sabe ler nem escrever/ Foto Yuri Fernandes/Projeto #Colabora

    Apesar de a educação ser garantida pela Constituição de 1988, tal direito é negado por conta de diferentes fatores de vulnerabilidade social, alerta a professora Maria da Glória Calado, psicóloga e doutora em Educação pela USP, onde leciona nos cursos de especialização em Cultura, Educação e Relações Étnico Raciais. Nas regiões mais pobres do país, muitas vezes, crianças e adolescentes precisam trabalhar para contribuir com o sustento familiar, como Seu Pedro. “Mesmo em metrópoles como São Paulo, não é raro encontrar casos de estudantes que vão à escola com o intuito principal de se alimentar com a merenda servida”, lamenta. “As condições de moradia também influenciam diretamente no desempenho escolar do educando, por conta da estrutura para a realização de lições de casa, por exemplo. Por vezes, o acesso à escola também é um obstáculo para o estudante, que precisa caminhar por longas distâncias para chegar à instituição de ensino”, completa.

    Se já são desoladores, os números do IBGE poderiam ser ainda mais alarmantes se incluíssem os sem direito à pré-escola, alerta Didonet, que coordenou o Movimento Nacional Criança Constituinte para garantir os direitos das crianças à época da Assembleia Nacional Constituinte. “Ainda existem 8,3% de crianças de 4 e 5 anos com o direito à pré-escola negado”, adverte ele. O acesso às crianças de 0 a 3 anos também precisa avançar. Somente 32,7% das crianças desta faixa etária frequentam creches. A meta do Plano Nacional de Educação prevê que o número chegue a 50% até 2024. Pela lei de Diretrizes e Bases da Educação, a matrícula de crianças só é obrigatória a partir de 4 anos. Mas a creche é um dever dos municípios, com a ajuda dos estados. “É a fase mais determinante para o desenvolvimento do pensamento”, sustenta Didonet, que é especialista em educação infantil.

    No caso de Seu Pedro, a escola virou as costas para ele desde muito cedo, incluindo castigos corporais. Ao ser convidado pelo professor à frente da turma para soletrar uma palavra, não conseguiu responder ao que havia sido perguntado. Suas mãos ficaram marcadas por ‘’seis bolos de palmatória’’, instrumento usado à época pelos mestres em sala de aula como forma de castigo. Dali em diante, a escola, que já era um lugar pouco frequentado, passou a ser um local recheado de situações que o afastavam. ‘’Não tinha condições de voltar’’.

    Apesar de não ter recebido instrução formal, ainda jovem ele exerceu funções que exigem muitas habilidades, como aplicar injeções. Ele o fazia no dono da mercearia que ficava perto de sua casa. Aprendeu só de observar os enfermeiros quando ia ao hospital. ‘’Eu prestava atenção em tudo e me ofereci. Se você quiser, eu aplico’’, contou ele, reproduzindo o diálogo com o dono da mercearia. ‘’Se eu fosse enfermeiro, eu teria muita força de vontade”, acredita. “Não sabia ler, mas fiz muita coisa. Minha mãe dizia: mais vale bem corrido do que bem lido’’.

    Depois de se mudar para o Rio, Seu Pedro foi encarregado de obras e presidente da Associação de Moradores na Rocinha. Sobre essas passagens de sua vida, aponta que chegou a sofrer preconceito por parte daqueles que disputavam espaços e cargos com ele. ‘’Como é que você não coloca um de nós e coloca ele, que não sabe ler?’’, ouviu de um amigo, dirigindo-se a um chefe. A resposta que recebeu foi clara: ‘’Ele tem força de vontade’’.

    Dona Teresinha e Seu Pedro: casal está junto há 40 anos e têm orgulho dos netos na escola. Foto: Yuri Fernandes/Projeto #Colabora

    Força essa que permanece até hoje, apesar dos problemas de saúde o fazeremm levar uma vida mais devagar e com algumas impossibilidades. Mesmo assim, não deixa de conquistar o carinho de muitos vizinhos e moradores da região. Com a inseparável Dona Teresinha, que o acompanha há mais de 40 anos, teve 9 filhos, sendo 8 mulheres e um homem. A conta não pode ser fechada ainda, pois falta incluir na matemática os 14 netos, que ele estampa na camisa que veste: “São todos bem estudiosos, graças a Deus’’.

    O entusiasmo pela educação dos netos revela alguns aspectos positivos de nossas estatísticas. Didonet enumera que 98% das crianças estão matriculadas no Ensino Fundamental. O professor também chama a atenção para a pouca desigualdade entre brancos e negros no acesso à educação – é a menor entre todos os outros indicadores dos sem direitos no Brasil. Para ele, a explicação reside no fato de o ensino ser obrigatório. “isso forçou o Estado a atender os negros”. Outro ponto positivo é que não há diferença de frequência entre meninos e meninas. “Em outros países da América Latina, a desproporção ainda é grande porque parte-se do princípio ainda machista que o menino precisa frequentar a escola porque será o provedor”.

    Ainda que haja menor desigualdade na educação entre brancos e pretos em relação aos demais direitos, a professora Maria da Glória Calado, que leciona nos cursos de especialização em Cultura, Educação e Relações Étnico Raciais na USP, adverte que ela precisa ser atacada. “Para garantir a permanência de alunos pretos e pardos, faz-se necessário lutar contra o silenciamento e reprodução do racismo nas escolas, modificar os currículos eurocêntricos por meio da valorização das contribuições da história dos africanos, afro-brasileiros e indígenas”, defende.

    Ela lembra que as leis 10.639/03 e 11.645/08, que obrigam o ensino de História da África, Cultura Afrobrasileira e Indígena nos estabelecimentos de ensino públicos e particulares, pode contribuir para o enfrentamento do preconceito se aplicadas de forma efetiva. “Ambas ajudam a visibilizar as contribuições de povos que, historicamente, foram silenciadas na formação da cultura brasileira”. Entretanto, elas enfrentam resistências.

    Mesmo entre as famílias que não vivenciam tantas situações de vulnerabilidade, o sistema escolar também favorece a evasão por não se apresentar como interessante para os educandos, afirma a professora Maria da Glória. Ela aponta que crianças e adolescentes sentem dificuldade de encontrar sentido para ir à escola e consideram que estão “perdendo tempo”. “Muitas das metodologias utilizadas são ainda obsoletas. Para completar, a estrutura de algumas escolas tem semelhança com presídios, com muitas grades, por exemplo”.

    Um dos netos de Seu Pedro parece ter encontrado um espaço na escola propício à construção de conhecimentos, como defende a professora Maria a Glória. Ele chega exatamente no fim de nossa conversa. Aos 12 anos, sonha ser jornalista, sob o olhar orgulhoso do avô. Tudo é grande, simples e bonito na família onde os maiores ensinamentos do patriarca foram aprendidos com a vida. O personagem que, por uma série de razões não pôde ser aluno, acabou virando professor.

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