Tiro que matou jovem em baile funk veio da PM, dizem testemunhas

    Lucas Miranda da Silva morreu após ser baleado durante ação policial na zona norte de SP; enterro na Favela do Moinho foi marcado por revolta

    Na humilde capela localizada na rua principal da Favela do Moinho, no centro de São Paulo, a via crucis exibida na parede se materializava aos olhos da comunidade. “Verônica enxuga o rosto de Jesus” dizia a frase da sexta passagem da imolação de Cristo, que termina com a crucificação. Na passagem bíblica, esse gesto faria com que Jesus conseguisse ganhar forças para seguir até o calvário. Contudo, as lágrimas de Rosimeire Elias Miranda, que na comunidade é conhecida como Fernanda, de 38 anos, mãe de Lucas, nem Verônica iria conseguir secar.

    “Você viu a faixa que eu peguei para ele? É bonita, né? Eu que escolhi essa frase: ‘Aquele que crê no salvador nunca morrerá’. Ele nunca morrerá para ninguém. Ele sempre estará vivo, ele sempre estará aqui com a gente”, disse Fernanda. “Um dia a gente vai se encontrar, filho”, dizia, passando os dedos no caixão fechado, onde, apenas pelo pequeno quadrado de um vidro, era possível ver o rosto rechonchudo de Lucas. “Ele era meu gordinho. Acho que por isso que não conseguiu correr o suficiente da polícia”, lamenta.

    De acordo com o boletim de ocorrência feito no 72º DP (Vila Penteado), onde constam como testemunhas apenas policiais militares,  houve um chamado na Rua Aurélio Brasil Ribeiro, no Jardim Carombe, região da Brasilândia (zona norte de São Paulo), por causa da realização de um baile funk. O local é conhecido como Iraque. Ainda, segundo os PMs, eles se aproximaram do “fluxo” com sinais sonoros e luminosos com o intuito de dispersar o grupo. Neste momento, um rapaz teria saído pedindo ajuda aos policiais, porque Lucas já estaria baleado e caído no chão.

    Fernanda, mãe de Lucas, é amparada diante do caixão | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    A versão das testemunhas, os amigos que estavam junto com a vítima, é diferente. Um deles, F., de 17 anos, afirma que a Polícia Militar chegou jogando bomba na multidão. “Começou o corre-corre, parecia um formigueiro, porque nesse beco só tem uma saída. O pessoal ficou desesperado. Cada um correu para um lugar e gente perdeu o Lucas de vista. De repente, vi um cara no chão com a cara toda ensanguentada. Demorei a perceber que era meu parceiro”, explica. “Ele tentava levantar o rosto, mas tinha muito sangue. Tinham uns sete policiais perto dele, dois sentados e cinco em pé. Eu vi que ele tava respirando e eu corri e pedi para ajudar a tirar ele de lá. Os policiais falaram que não podiam fazer nada e que ‘já era’. Fizeram a gente descer a ladeira com o corpo”, relata.

    Quando chegaram ao Pronto Socorro de Pirituba, também na zona norte, Lucas não resistiu e morreu. No atestado de óbito, consta que a vítima morreu por causa de uma “hemorragia interna aguda traumática causada por agente perfurador contundente”. O amigo de Lucas diz que se sente culpado: “Era só amizade verdadeira naquele momento. A gente tava muito feliz. Eu me sinto, sim, um pouco culpado, porque sinto que poderia ter tentado salvar meu parceiro”.

    Lucas ajudava os pais em um bar e e era muito conhecido na comunidade. Aos 21 anos, deixa órfão Bryan Lucca, de 10 meses. “A gente estava junto ia fazer 4 anos. A gente se dava muito bem. Namoramos um ano e pouco e depois eu descobri que estava grávida. A maior alegria dele foi quando nasceu nosso filho. Trocamos mensagens por volta da meia-noite, ele estava com os amigos, mas disse que logo ia dormir. Agora ele tá dormindo para sempre, agora ele não volta mais”, disse a mulher dele, Luana, de apenas 19 anos.

    Uma lamentável ironia pinta com cores mais tristes ainda a história: há dois meses, Leandro de Souza Santos, de 18 anos, foi assassinado por policiais militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), grupo de elite da PM, dentro da favela do Moinho em uma ação de repressão ao tráfico de drogas. A mãe de Leandro, Odete, foi ao velório de Lucas prestar solidariedade à Fernanda. “Eu tô sentindo a dor que ela tá sentindo. É a mesma for que eu senti. Não é justo a políia tirar a vida de um ser humano, de um jovem. Até hoje eu choro muito pela vida do meu filho. É a mesma coisa da Fernanda. Tem a justiça de Deus mas tem a justiça da terra e ela tem que correr atrás. Tem que denunciar, sim. Eu ainda não tive um retorno disso. A morte do Leandro bem dizer está impune. Mas eu não vou desistir”, desabafa Odete.

    Apesar de muito abalada, Fernanda diz que quer justiça e não vai descansar enquanto os culpados não forem punidos. “Mais uma mãe perdendo um filho, isso não pode acontecer. Isso tem que ter punição. Eu não quero mais que outra mãe chore por causa disso. Faz alguma coisa gente. Eles tiraram minha vida, eu quero meu Lucas de volta, pai. Eu quero justiça”.

    Outro lado

    Atualizado às 17h09 do dia 29 de agosto de 2017 – A Ponte Jornalismo enviou um e-mail para as assessorias da Polícia Militar e da Secretaria da Segurança Pública, gerida pela empresa privada CDN Comunicação, questionando a versão do boletim de ocorrência e recebeu a seguinte nota: “A Polícia Civil informa que a ocorrência é investigada pelo 74º DP por meio de inquérito policial para apurar a autoria do crime. Foram solicitados exames periciais e a autoridade aguarda os laudos. A PM apura como foi desenvolvida a ação na noite de domingo.”

     

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