Transcidadania: um pequeno passo de um longo caminho a percorrer

    Prefeitura de São Paulo inicia o Transcidadania, programa que oferece bolsas de estudos para travestis e mulheres transexuais em situação de rua, pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, em parceria com outras secretarias. As participantes poderão usar nome social nas matrículas e frequentar o banheiro que preferirem

    Por Leo Moreira Sá, especial para a Ponte

    Depois de ter criado o Centro de Acolhida Zaki Narchi e ter dado prioridade no programa “Minha Casa, Minha Vida” a travestis e transexuais em situação de rua, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, assinou o programa Transcidadania, que oferecerá bolsas de estudos no valor de R$ 840 mensais a 100 travestis e mulheres transexuais em situação de rua.

    Com uma carga horária semanal de 30hs, as bolsistas serão colocadas em duas escolas: EMEF Celso Leite e CIEJA Cambuci e serão matriculadas com seus nome sociais nos registros escolares. Elas poderão também frequentar o banheiro de sua preferência.

    O programa foi assinado no último dia 29 de janeiro, Dia da Visibilidade de Travestis e Transexuais no Brasil, em cerimônia na biblioteca municipal Mario de Andrade.

    Coordenado pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o programa envolve parcerias entre as secretarias municipais da Saúde, do Trabalho, da Educação, e da Mulher, buscando dar um suporte maior à bolsista. Assistência à saúde e hormonização serão feitas em UBS (Unidade Básica de Saúde). Vítimas de violência doméstica terão atendimento no Centro de Referência da Mulher.

    A maior limitação do Transcidadania é que não existe nenhum comprometimento com a colocação dessas pessoas no mercado formal de trabalho depois de concluídos os estudos. O fato é que, mesmo com ensino superior completo, a maior parte de travestis e transexuais de ambos os sexos, não consegue emprego.

    Seria necessário estabelecer parceria com o Fórum de Empresas e Direitos LGBT, que reúne grandes empresas comprometidas com os direitos humanos da diversidade, preocupadas não só em inclusão profissional mas em um ambiente acolhedor para orientação sexual e identidade de gênero divergente. Integram esse fórum gigantes como Carrefour, IBM, P&G, Accenture, Basf, Caixa, HSBC, GE, DuPont, Dow, PWC, Pfizer, Whilpool e Monsanto.

    Vi nas redes sociais pessoas criticando o programa com argumentos tão toscos que não vale a pena divulgar. Mas acho que esses ‘críticos’ deveriam se perguntar quantas pessoas travestis ou transexuais estudam na mesma escola que eles ou quantas trabalham na mesma empresa e, ainda, quantas frequentam o mesmo espaço de lazer. Com certeza nenhuma.

    Muitas estão nas ruas expostas à violência, saindo de casa sem ter certeza se irão voltar. Aplicações abusivas de hormônios, além do uso de silicone industrial encurtam a vida profissional das pessoas Ts. E o avanço da idade só complica mais a situação. Sem trabalho na prostituição, a única alternativa de sobrevivência passa a ser o emprego em um salão de beleza, o único mercado que tem alguma abertura para essa população. É daí para a situação de rua, em total desamparo.

    Em consequência da vulnerabilidade social a que estão expostas, boa parte da população T se entrega às drogas e acaba se envolvendo em atividades ilícitas, como aconteceu comigo. Passei 10 anos usando muita cocaína. Logo veio o tráfico de drogas. Fui preso e, depois de cinco anos, saí –sem eira nem beira–, sem família pra me amparar.

    Não fosse uma bolsa do POT (Programa Operação Trabalho), que disponibilizava uma cota para travestis e transexuais, meu recomeço seria muito difícil. O Transcidadania incorpora o conceito do POT mas a partir de uma perspectiva mais abrangente.

    Dentro da minha carga horária de cursos da contrapartida, me inscrevi em um curso de teatro e acabei me profissionalizando nessa área. Foi uma reviravolta na minha vida.

    Claro que tive a sorte de conhecer pessoas incríveis que me deram preciosas oportunidades, mas o começo da reconstrução da minha vida profissional eu devo a essa bolsa. Eu sou o exemplo vivo de que esse tipo de política pública pode devolver a cidadania e até mesmo salvar muitas vidas da minha comunidade.

    O programa Transcidadania vai atender em primeira instância as pessoas Ts que estão em situação de rua, o que é extremamente necessário e humano.

    As 100 pessoas contempladas pelo programa representam uma pequena parcela da população T que, mesmo com qualificação profissional, não consegue emprego.

    Homens trans não são contemplados, embora muitos estejam vivendo na invisibilidade de algum subemprego.

    Mesmo assim, o programa Transcidadania é um grande passo dado na direção certa de um caminho longo para chegar à plena inclusão social e respeito aos nossos direitos civis. Promover a igualdade de oportunidades a uma população estigmatizada, que sofre cotidianamente com a violência dos crimes de ódio, é dever de toda administração pública preocupada com a defesa dos direitos humanos.

    Léo Moreira Sá é ator e militante pelos direitos Trans

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