Travesti agredida por PMs em SP morreu em consequência de traumatismo craniano

    Laudo necroscópico também revelou que tiro que a atingiu no braço foi disparado de baixo para cima, o que indica a possibilidade de Laura Vermont, 18 anos, ter sido baleada quando estava rendida, já com as mãos levantadas
    Laura Vermont
    Laura Vermont, 18 anos, foi morta no sábado (20/06)

    A jovem travesti Laura Vermont, 18 anos, morreu em consequência de traumatismo cranioencefálico e insuficiência respiratória, segundo o laudo necroscópico do IML (Instituto Médico Legal), obtido pela Ponte Jornalismo. Laura morreu no fim da madrugada de sábado (20/06), na zona leste de São Paulo.

     

    Assinado pelo médico legista Daniel Lopes Marques Júnior, o laudo sobre a morte de Laura também aponta que ela tinha uma marca de tiro no braço esquerdo. O tiro foi disparado por um policial militar que tinha ido prestar socorro à jovem, mas também se envolveu em uma briga com ela após Laura tentar fugir no carro da polícia e batê-lo contra um muro.

    Um detalhe chamou a atenção do legista e dos investigadores da Polícia Civil e da Corregedoria da PM que investigam a morte de Laura: a trajetória do tiro no braço esquerdo da jovem foi de baixo para cima, da direita (parte interna) para a esquerda e da frente pra trás. Isso indica a possibilidade de Laura estar rendida, já com as mãos levantadas, quando foi baleada.

     

    Laudo 3
    Trecho do laudo necroscópico sobre a morte de Laura de Vermont, 18 anos

    Os investigadores também trabalham para tentar determinar quando Laura sofreu as lesões na cabeça que causaram a sua morte. Por volta das 4h, Laura foi espancada por desconhecidos, até agora não identificados. Enquanto escapava a pé pela avenida Nordestina, ela foi filmada. Estava ensanguentada e repetia palavras desconexas.

    Chamada para prestar socorro à jovem, a Polícia Militar encontrou Laura caminhando pela mesma avenida. Enquanto os dois PMs desceram do carro da PM para tentar parar Laura, ela assumiu o controle do carro e dirigiu por alguns metros, parando somente quando bateu contra o muro de um condomínio residencial. A família de Laura diz que ela não sabia dirigir.

    Nesse momento, os PMs agrediram Laura e um deles, Ailton de Jesus, 43 anos, atirou contra a jovem. Mais tarde as agressões e o tiro levaram os dois policias para a prisão, pois ambos tentaram enganar a Polícia Civil e falaram que não haviam batido ou atirado contra Laura.

    Presos no sábado, os PMs foram soltos quarta-feira (24/06), por ordem do juiz Antonio Maria Patiño Zorz. Ailton e Diego Clemente Mendes, 22, do 39º Batalhão, foram libertados após o pagamento de um salário mínimo cada um e com o compromisso de não chegar perto das testemunhas da morte de Laura. 

    O ataque contra Laura

    Há uma semana, em 19/06, Laura saiu de casa, no bairro do Vila Nova Curuça, onde vivia com pai, mãe e irmã, para participar de uma festa com amigos na avenida Nordestina, uma das mais movimentadas da periferia da zona leste de São Paulo.

    Por volta das 4h do sábado (20/06), Laura foi vista caminhando desesperada pela avenida Nordestina, ensanguentada e desorientada. Avisada sobre a situação da jovem por uma ligação para 190, a Polícia Militar mandou um carro para socorrê-la. Um homem chegou a gravar imagens de Laura no momento de pânico.

    Na versão dos PMs, quando eles chegaram à avenida, Laura estava extremamente agitada e, sem que os dois militares percebessem,a jovem travesti assumiu o volante do carro da PM e partiu em alta velocidade, vindo a perder o controle e bater contra o muro de um condomínio poucos metros depois.

    Inicialmente, o PM Mendes afirmou que chegou a se pendurar no carro da polícia para tentar impedir que Laura fugisse com o carro, foi arrastado e sofreu alguns ferimentos.

    Mendes e Ailton disseram também que Laura, após bater o carro da PM contra o muro de um condomínio residencial, desceu do veículo e continuou a correr pela avenida Nordestina, sendo atingida na cabeça por um ônibus, que não parou. Ainda desnorteada, a travesti seguiu sua tentativa de fuga e bateu novamente a cabeça, dessa vez contra um poste. Foi quando ela caiu e ficou à espera de socorro.

    Os PMs disseram ter socorrido Laura e a levado para o pronto-socorro do Hospital Municipal Professor Waldomiro de Paula, mas a família da jovem os desmente. “Fomos nós, a família, que levamos minha irmã para o hospital”, disse Rejane Laurentino de Araújo Neves, 32 anos, irmã de Laura.

    Pouco tempo depois de chegar ao pronto-socorro, Laura morreu e os PMs foram para o 63º Distrito Policial (Vila Jacuí) relatar à Polícia Civil a versão deles para a morte da jovem. Foi quando apresentaram um relato de 18 linhas sobre o caso.

    Cerca de duas horas após o registro do primeiro boletim de ocorrência sobre a morte de Laura, os PMs retornaram ao 63º DP e, dessa vez, traziam junto um rapaz de 19 anos, apresentado pelos militares como “testemunha” do caso.

    À delegada Ivna Schelble, do 63º DP, o jovem de 19 anos contou que bebia com amigos em um posto de gasolina quando Laura chegou desorientada, ensanguentada e pedindo ajuda. Disse também que, após 20 minutos, um carro da PM chegou à avenida para socorrer Laura e que viu quando a jovem assumiu o controle do veículo, fugindo, sem ser contida pelo PM Mendes, que se pendurou na porta.

    Dois detalhes sobre a “testemunha” apresentada pelos PMs chamaram a atenção da delegada e dos investigadores do 63º DP: o jovem fez questão de enfatizar que não havia ouvido nenhum disparo de arma de fogo quando os policiais tentavam impedir Laura de assumir o controle do carro da PM. O rapaz também ficou cerca de meia hora conversando com os dois PMs, perto do 63º DP, sem que a delegada fosse informada se tratar de uma testemunha presencial.

    Desconfiados da riqueza de detalhes da versão narrada pela “testemunha” apresentada pelos dois PMs, os policiais civis do 63º DP resolveram ir aos locais por onde Laura passou e encontraram manchas de sangue em locais não citados pelos policiais militares.

    Imagens de câmeras de segurança também foram apreendidas e, após analisá-las, os investigadores e a delegada Ivna descobriram que os PMs e a “testemunha” apresentada por eles haviam mentido ao dizer que nenhum tiro foi disparado pelos militares contra Laura. Antes de ser baleada, Laura foi chutada por um dos PMs, logo após descer do carro da polícia já batido.

    Ao analisar o corpo de Laura no IML (Instituto Médico Legal), os policiais civis descobriram que a jovem tinha lesões no rosto, tronco e nas pernas. A marca do disparo dos PMs estava em seu braço esquerdo.

    Quando voltaram para o 63º DP, os policiais civis pressionaram os PMs e sua “testemunha” e todos resolveram contar a verdade. O PM Ailton assumiu ter atirado contra Laura “porque ela havia apresentado resistência e porque os meios menos letais mostraram-se ineficazes para vencer a resistência e a iminência de injusta agressão”.

    Ao ser questionado sobre a mentira nos dois boletins de ocorrência registrados antes pela morte de Laura, o PM Ailton disse à Polícia Civil “ter receio de se prejudicar e sofrer represálias da lei”.

    Já o PM Mendes disse à Polícia Civil que “foi instruído por [o PM] Ailton a não relatar a verdade dos fatos, mas se manter em silêncio e apenas aquiescer com o que ele fosse narrar”. Mendes disse ter medo de sofrer represálias por parte de Ailton, com quem trabalhava apenas pela quinta vez. Mendes afirmou também que procurou seus superiores na PM para informar sobre a farsa com a qual havia colaborado.

    O jovem de 19 anos, a “testemunha” dos PMs, confirmou ter sido orientado pelo PM Ailton a mentir. O PM chegou a entregar um pedaço de papel a ele para que a versão fantasiosa sobre a morte de Laura fosse narrada à Polícia Civil. “Ele pediu para que eu treinasse a fala para que toda a história fosse coerente”.

    Os PMs Ailton e Mendes foram presos em flagrante por falso testemunho e fraude processual. Ambos também são investigados por homicídio contra Laura, de acordo com a Polícia Civil.

    Na tarde de sábado (20/06), a assessoria de imprensa da Polícia Militar de São Paulo afirmou que não havia nenhuma prisão de militares pela morte de Laura, o que não era real.

    Leia mais:

    Ouvidoria da Polícia começa a investigar morte de jovem travesti em SP

     Laudo sobre a morte de Laura de Vermont:

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