‘Tropa de choque dos presídios’ de SP vai ter que usar câmeras em uniformes, decide TJ

Tribunal atendeu a parte de pedidos de ação civil pública movida pela Promotoria de Direitos Humanos e Defensoria; além de aparelhos, agentes do GIR terão de usar identificação com nome e avisar incursões com antecedência

GIR foi institucionalizado em 2004 como a tropa de elite da Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo | Foto: Divulgação/SAP-SP

O Grupo de Intervenção Rápida (GIR), conhecida como “tropa de choque” formada por policiais penais, terá de usar câmeras nos uniformes e dispor de identificação com nome e sobrenome quando realizar ações em unidades prisionais paulistas. Essas são duas de 11 determinações proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 14 de julho, que acatou parcialmente os pedidos feitos pela Promotoria de Justiça de Direitos Humanos que havia entrado com uma ação civil pública em 2018 para regulamentar a atuação do grupo após uma série de denúncias de tortura. Cabe recurso à decisão.

O juiz Antonio Augusto Galvão de França, da 4ª Vara da Fazenda Pública, argumentou que, apesar de o GIR estar vinculado à Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), requer regulação pois “exerce uma função tipicamente policial, principalmente aquela característica dos batalhões de choque, e como tal está sujeito a eventuais excessos ou abusos por parte de seus agentes, o que, por melhor que seja o treinamento e a formação pessoal, diz respeito a eventos que invariavelmente ocorrem em qualquer corporação que atua na Segurança Pública”. Com isso, estabeleceu as seguintes medidas, que foram solicitadas pelo Ministério Público Estadual (MPSP):

  • Identificação dos agentes do GIR com o nome completo, em local visível e em suporte resistente que não possa ser retirado;
  • Os agentes devem usar máscara ou outro aparato para proteção do rosto que seja transparente ou translúcida para que seja possível visualizá-lo e identificá-lo;
  • Realizar gravações de todas as incursões do GIR, a partir de câmeras fixadas nos coletes dos agentes;
  • Criptografar a gravação dessas operações, impedindo qualquer tipo de edição;
  • Encaminhar os vídeos imediatamente à Secretaria da Administração Penitenciária, à Vara da Execução Penal do Tribunal de Justiça responsável pelo estabelecimento e ao órgão do Ministério Público responsável pelas Execuções Criminais, para mera preservação e armazenamento, assegurando acesso posterior, em caso de investigação;
  • Utilizar os cães exclusivamente para o encontro de entorpecentes, diante de fundada suspeita da existência de drogas em cela a ser revistada e, quando estritamente necessário, para a imobilização de aprisionados que estejam praticando condutas violentas ou na aparente iminência de praticá-las e mediante justificada impossibilidade de emprego outros meios menos gravosos;
  • Estabelecer processo seletivo específico para recrutamento dos agentes do GIR, apurando-se, dentre os agentes penitenciários, aqueles que detenham perfil psicológico mais adequado para as situações de estresse e tensão inerentes às funções daquela força, para que saibam evitar reações violentas e criminosas contra as pessoas que lhes incumbe proteger;
  • Estabelecer, no curso de formação de agentes do GIR na Escola de Administração Penitenciária, amplo conteúdo de direitos humanos, que se desdobre em módulos e meios didáticos que assegurem reflexão profunda acerca dos direitos fundamentais das pessoas presas;
  • Os encarregados de deslocamento, que são uma das 13 atribuições específicas para determinados agentes, cumpram de forma irrestrita a Norma Geral de Ação (NGA) que prevê apenas “apoiar a revista pessoal, que deverá ser realizada nos presos e em seus pertences, a ser realizada pelos Agentes de Segurança Penitenciária na galeria central ou em outro local previamente definido”, já que as denúncias apontavam destruição de pertences durante revistas.
  • Comunicar as incursões e operações do GIR com antecedência mínima de 24 horas ou em prazo menor se houver motivo para tanto, devidamente justificado ao Juízo da Execução Criminal, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e ao Conselho da Comunidade. Se essa comunicação não for possível, deve remeter relatório da ocorrência à essas entidades, já que antes era uma documentação interna sem permissão de acesso;
  • Os agentes do GIR estão impedidos de fazer revista pessoal de familiares e demais visitantes dos aprisionados e ostentar armas de forma intimidativa contra eles.

O GIR foi idealizado em 2002 pelo então diretor do Centro de Detenção Provisória (CDP) de Sorocaba, Márcio Coutinho, para atuar naquela unidade e depois foi expandido e formalizado via resolução administrativa da SAP em 2004. De lá para cá, passou por algumas modificações como inclusão de células menores vinculadas a esse grupo (CIR), e tem como função, de acordo com a norma, “realizar revistas especiais em celas e demais dependências para localização de armas de fogo, aparelhos de telefonia móvel celular, drogas, outros objetos não permitidos e túneis; combate a movimentos de indisciplina, revoltas, motins, rebeliões e tentativas de fugas; remoção interna de presos e demais atividades dessa natureza”. A ação do GIR só pode ocorrer mediante autorização da Coordenadoria Regional dos Presídios e da CIR pela direção da unidade prisional. Antes, a Polícia Militar que era acionada nesses casos.

A ação que o Ministério Público Estadual impetrou se baseou em um conjunto de denúncias de práticas de tortura contra pessoas presas em São Paulo. Os promotores Eduardo Valério e Bruno Simonetti citaram relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) de 2015 a respeito de visitas feitas na Penitenciária Feminina de Santana — que motivou a abertura de inquérito civil pelo MPSP —, de 29 inspeções realizadas entre 2015 e 2016 pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Nesc), além de audiência pública em 2018, que a Ponte cobriu, na qual entidades, movimentos sociais e familiares e amigos de detentos relataram abusos sistemáticos praticados pelo GIR.

Na ocasião, parentes e egressos do sistema prisional elencaram destruição de pertences, revista vexatória, intimidação com uso de cães, presos que tinham que ficar horas abaixados com a mão na cabeça sem acesso a alimento e água, agressões físicas e verbais e uso de armas menos letais contra presos desarmados, dentre outras violações. Também foi exibido um vídeo obtido pelo SBT, de 2014, em que o grupo aparece arremessando bomba de gás dentro de uma cela com presos dentro da penitenciária de segurança máxima de Presidente Venceslau, dando início a um incêndio, além de o uso de gás em ambiente fechado não ser recomendado pelo risco de asfixia. As imagens mostram, ainda, agentes do GIR agredindo com cassetetes detentos deitados e rendidos, que não ofereciam nenhum tipo de resistência.

Em 2018, um levantamento do Nesc feito a partir de inspeções em 57 unidades prisionais e publicado pela Ponte apontou que 45% dos presos relataram terem sido agredidos durante atuação do GIR.

Fonte: Nesc/Defensoria Pública do Estado de São Paulo

O juiz Galvão de França, no entanto, negou a solicitação de se usar armas menos letais apenas em ambientes externos das unidades prisionais por entender que “é questão atinente ao mérito do ato administrativo e os agentes poderão ser eventualmente responsabilizados por potenciais abusos” e que “merece um estudo mais aprofundado e dinâmico” porque uma restrição, segundo ele, poderia causar “uma maior letalidade ensejada pelo abuso de outros meios ou até mesmo a necessidade de utilização de armas letais”.

O magistrado também rejeitou um pedido da Defensoria Pública, que ingressou depois como parte autora da ação civil pública, para que o GIR fosse extinto. Ele justificou que é uma questão “administrativa” e que não é inconstitucional porque “atendeu a necessidade de criação de órgão interno à Administração Penitenciária capaz de atuação em situações limite, sem a necessidade de acionamento de órgãos externos de segurança, notadamente a tropa de choque da Polícia Militar”.

A Defensoria argumenta que a existência do grupo é inconstitucional por não estar disposta como força de segurança no artigo 144 da Constituição de 1988 e por ter atribuição semelhante às das polícias militares, colocando o GIR como um novo agrupamento policial que, inclusive, é treinado pela corporação e atua de forma militarizada. O Nesc entrou com embargos de declaração, um recurso jurídico para pedir esclarecimentos sobre a decisão, em 26 de julho, que ainda não foram avaliados pelo juiz.

Esse entendimento é compartilhado pela pesquisadora do programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e vice-presidenta do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura Sofia Fromer Manzalli. “Por um lado, a crítica que pode ser feita é de alguma forma [a decisão] regulamentar algo que é inconstitucional, mas, por outro, o GIR existe e vai continuar existindo e torturando as pessoas que estão presas”, pondera.

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Contudo, ela também aponta que a decisão é um reconhecimento importante sobre as violações. “A gente viu no estado de São Paulo que a Polícia Militar está com câmeras no colete e, se já fez uma diferença no número de mortes, imagine internamente no sistema prisional que não há nenhum tipo de vigilância externa. Essas violações [da PM] acontecem nos bairros periféricos, mas hoje em dia as pessoas conseguem, de certo modo, publicizar com seus celulares, mas dentro do sistema prisional isso é muito diferente, não existe nenhuma regulamentação dessas incursões”, explica. “Isso [as câmeras], pensando por exemplo nas unidades femininas, faz com que agentes masculinos sejam impedidos de fazer revistas vexatórias nessas mulheres, que elas fiquem despidas na presença de agentes masculinos, para ter algum tipo de garantia de que essas incursões, que seriam excepcionais mas na prática acontecem muito, tenham regulamentação”.

O que diz a Secretaria da Administração Penitenciária

Questionada sobre a decisão e as violações elencadas na ação civil pública, a assessoria da pasta encaminhou a seguinte nota:

A Secretaria da Administração Penitenciária informa que o caso está em análise pela Procuradoria Geral do Estado. Informamos que o Grupo de Intervenção Rápida é formado por policiais penais especialmente treinados. Sua atuação pauta-se pelo uso escalonado da força, de maneira estritamente não letal, com técnicas de contenção controlada de distúrbios e equipamentos destinados especificamente para esse fim. Atualmente são 10 GIRs atuando em todo o estado de São Paulo. Referência nacional, seus membros são convidados para ministrar cursos e trocar experiências com outras forças de segurança.

Além de controlar tumultos, auxiliam em procedimentos de revistas e prestam suporte aos demais servidores que atuam nas unidades prisionais do estado de São Paulo. Graças à atuação do Grupo de Intervenção Rápida, combinada ao uso de tecnologia como a abertura e fechamento automatizado de porta de celas, as unidades prisionais do estado de São Paulo operam dentro dos padrões de segurança e disciplina.

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