Uma pessoa trans foi morta no Brasil a cada 3 dias

Levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais aponta 131 vítimas em 2022; apesar de redução tímida do índice, perfil reflete falta de políticas públicas, segundo entidade

Verônica Martinelly, mulher transexual amazonense foi morta em SP e sonhava em se dedicar ao samba | Foto: Arquivo Pessoal

A proximidade do Carnaval não causa mais orgulho e felicidade para a comerciante Marilene da Silva Espindola, 52. “A última vez que eu falei com ela foi quando ela ganhou o concurso de Princesa do Carnaval, estava muito feliz… Eu lembrei nesses dias, chorei muito”, diz, às lágrimas. Há quase um ano, a cabeleireira Verônica Martinelly, 30, foi morta a facadas em Santana de Parnaíba, na Grande São Paulo. O suspeito é o namorado dela, Kevin Barkley Muniz dos Santos, que teve mandado de prisão expedido, mas até hoje a família não teve notícias sobre o paradeiro dele. “O caso parece que foi dado como esquecido”, diz.

O assassinato de Veronica aconteceu poucos dias depois de ter sido coroada a 1° Princesa Trans do Carnaval de São Paulo, pela escola Unidos de Vila Maria. Nascida em Manaus (AM), estava em São Paulo desde os 18 anos a trabalho. “Ela desfilou em várias escolas aqui de Manaus, umas escolas aqui homenagearam ela, era como se eu visse ela desfilando. O sonho dela era ganhar o carnaval de São Paulo”, lamenta.

Verônica é uma das 131 pessoas trans que foram mortas no Brasil em 2022, segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), lançado nesta quinta-feira (26/1) no Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, em Brasília. O número representa uma queda de 6% em relação ao ano anterior, quando foram contabilizadas 140 vítimas. Em âmbito global, de acordo com o projeto Trans Murder Monitoring, o Brasil é o país que mais reporta mortes de pessoas trans: são 1.741 vítimas de um total de 4.639 assassinatos catalogados pela organização desde 2008. Atrás estão México (649) e Estados Unidos (375).

Os dados da Antra demonstram que uma pessoa trans foi morta a cada três dias no país em 2002 e que os elementos que levam aos assassinatos permanecem: em quase 80% dos casos as vítimas são mulheres trans ou travestis, com até 35 anos de idade, negras e em situação de vulnerabilidade social, ou seja, em 54% as vítimas eram profissionais do sexo e os crimes aconteceram em via pública (61%).

A vítima mais nova computada em 2022 foi uma travesti de 15 anos encontrada morta na zona norte de Natal, capital do Rio Grande do Norte, sem a cabeça e o dedo mindinho esquerdo. Esses sinais de requintes de crueldade foram identificados nos casos levantados pela entidade, bem como a influência do acesso às armas, já que em 41% das ocorrências as vítimas foram mortas a tiros, 24% a facadas, 16% por estrangulamento ou espancamento e 10% com outros métodos.

Para Bruna Benevides, secretária de Articulação Política da Antra e coordenadora do estudo, a maneira como as pessoas trans são assassinadas reflete que a motivação dos crimes se dá pelo ódio à identidade de gênero das vítimas, ou seja, a transfobia, e que o Estado precisa reconhecer esse agravante e investir em políticas públicas para proteger essa população.

“As informações apresentadas nessa pesquisa, além de denunciarem a violência, explicitam a necessidade de políticas públicas focadas na redução de homicídios e da violência contra pessoas trans, traçando um perfil sobre quem seria estas pessoas que estão sendo assassinadas a partir dos marcadores de idade, classe e contexto social, raça, gênero, métodos utilizados, além de outros fatores que colocam essa população como o principal grupo vitimado pelas mortes violentas intencionais no Brasil”, escreveu.

Entre os estados, Pernambuco (13), Ceará (11), São Paulo (11) e Minas Gerais (9) lideraram o ranking de mortes em 2022. Contudo, na série histórica desde 2017, São Paulo (116), Ceará (84) e Bahia (79) estão no pódio de assassinatos.

Além disso, se houve uma pequena redução nos homicídios, os casos de violência que não consumaram um assassinato vêm crescendo constantemente. Em 2022, foram 84 ocorrências. Em 2017, quando a Antra passou a realizar os levantamentos, eram 58.

A Antra também identificou 142 casos de violações de direitos humanos, que vão desde impedir uma pessoa trans a usar o banheiro conforme o gênero que se identifica a agressões verbais e físicas. “É super comum relatarem que não usam espaços públicos por medo, chegando a segurar a vontade de fazer xixi ou mesmo deixam de frequentar clubes, academia e até mesmo a escola diante desse tipo de situação e pela falta de segurança nos espaços”, exemplifica Benevides no documento.

Um dos problemas elencados pela Antra é a ausência de dados públicos qualificados para monitorar as estatísticas criminais que têm as pessoas trans como vítimas, o que fez associações realizarem os próprios levantamentos e expõe um apagamento institucional. A entidade leva em consideração casos reportados pela imprensa, mídias sociais e relatos testemunhais, que são cruzados. No entanto, a imprensa também acaba reproduzindo uma forma de violência que é não respeitar o uso de nome social e expor o nome de registro das vítimas, o que aconteceu em 42% das notícias que reportaram os assassinatos.

Outro problema é a investigação dos casos de violência. No ano passado, a Ponte revelou que todo o processo judicial que apurava o assassinato da jovem transexual Chiara Duarte Pereira, 28, que foi morta a facadas e jogada de um prédio no centro de São Paulo em 2020 não respeitou sua identidade de gênero, nome social nem tratou o caso como feminicídio.

Um exemplo citado no relatório é o espancamento de uma mulher trans após ter sido chamada de “aberração” em Belo Horizonte, em dezembro do ano passado, e o caso ter sido registrado pela Polícia Civil como injúria. “Em muitos casos, movimentos sociais têm que fazer diversas mobilizações e denúncias para que o caso seja devidamente lavrado como homicídio tentado”, aponta Bruna Benevides.

As violências sofridas pela população trans também causam sofrimento emocional. A Antra contabilizou 20 suicídios em 2022. No ano anterior, foram 12. O caso mais recente e que teve repercussão foi do policial civil e influencer Paulo Vaz, em março de 2022.

Benevides aponta que vários fatores estão envolvidos, como “exclusão familiar ou permanência em ambientes familiares tóxicos e/ou transfóbicos, o abuso físico ou sexual, o alto índice de rejeição no mercado formal de trabalho, a extrema violência em suas mais diversas nuances e formas, o racismo, o cissexismo, a ausência de esperança, o estresse de minorias, o transtorno de ansiedade generalizada, depressão, humilhação, baixa autoestima, são alguns dos principais fatores que podem agravar a saúde mental de pessoas trans e levar ao suicídio, exatamente por serem contextos específicos em que apenas pessoas trans podem se deparar”.

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Além do dossiê entregue a Silvio Almeida, ministro de Direitos Humanos, a Antra havia encaminhado um documento com recomendações de políticas públicas para a população trans durante a transição de governo. Um dos acenos positivos foi a nomeação inédita da jornalista Symmy Larrat como secretária Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+.

O que diz o MDH

A Ponte procurou o Ministério da Cidadania e dos Direitos Humanos sobre as propostas da entidade e quais medidas serão adotadas pelo governo federal com vista à população trans.

A assessoria da pasta encaminhou release publicado no site oficial sobre a divulgação do dossiê em que o ministro Silvio Almeida e a secretária Symmy Larrat disseram que os dados “vão reger a criação das nossas políticas públicas”.

O que diz a polícia de SP

A reportagem também questionou o andamento da investigação do assassinato de Veronica Martinelly e a Polícia Civil informou que representou pela prisão do suspeito, mas ele ainda não foi localizado. A Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, também encaminhou a seguinte nota:

A SSP segue intensificando as ações de combate à violência de gênero e intolerância. Todos os homicídios, incluindo aqueles cujas vítimas pertencem à população LGBTQIA+ são investigados com rigor, pelo Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), na Capital, pelos Setores de Homicídios das Seccionais na região metropolitana, e pelas Divisões Especializadas de Investigações Criminais (Deics) e Delegacias de Investigação Geral (DIG) no interior. O DHPP também conta com a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), que atua na investigação e repressão aos crimes de intolerância relacionados à religião, raça, cor, etnia, procedência nacional, identidade de gênero, orientação sexual, dentre outros. A Decradi apresenta parecer consultivo em casos de eventuais alterações legislativas referentes à população LGBTQIA+, sempre fornecendo sugestões e ideias para melhorar o atendimento às vítimas.

Todos os policiais civis e militares passam por disciplinas que abordam as legislações vigentes relacionados aos crimes contra a população LGBTQIA+. A Polícia Civil, por exemplo, implantou, por meio da Portaria 113/2021, o Programa de Pesquisa e Capacitação Continuada dos Policiais Civis do Estado de São Paulo na disciplina Sistema de Justiça Criminal sob a ótica de Gênero e Orientação Sexual. A Polícia Militar também aborda temas como transfobia, respeito à diversidade e discriminação de pessoas transexuais em todos seus cursos, por meio de diversas matérias como Direitos Humanos, Direito Constitucional, Direito Penal, Direito Civil e Polícia Comunitária. Além das matérias, a Polícia Militar aborda, constantemente, o tema nas preleções e nos estágios de atualização profissional.

Reportagem atualizada às 10h, de 31/1/2023, para incluir respostas da SSP e MDH.

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