Usina Teles Pires: Justiça ordena parar e governo federal libera operação, com base em suspensão de segurança

    Sentença judicial dá vitória ao Ministério Público Federal, mas governo concede a licença definitiva uma semana depois, amparado por instituto jurídico da ditadura que invalida processo até o trânsito em julgado

    Por Helena Palmquist*, especial para Ponte

    Construção de hidrelétrica ameaça direitos indígenas, desrespeita seus lugares sagrados e suas terras | Foto: Helena Palmquist
    Construção de hidrelétrica ameaça direitos indígenas, desrespeita seus lugares sagrados e suas terras | Foto: Helena Palmquist

    O Ministério Público Federal obteve importante vitória na Justiça Federal de Cuiabá, com sentença judicial que ordena a paralisação do licenciamento ambiental da usina hidrelétrica de Teles Pires, no rio de mesmo nome, na divisa dos estados do Pará e Mato Grosso por ausência da consulta prévia aos povos Kayabi, Munduruku e Apiaká, impactados pelo empreendimento. Mas, em vez de serem consultados, os indígenas vão ver o início do funcionamento das turbinas da usina. A decisão é datada do dia 12 de novembro e, uma semana depois, em 19 de novembro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente concedeu a licença de operação da usina, a definitiva.

    Isso foi possível por causa do instituto da suspensão de segurança, um instrumento jurídico criado durante a ditadura militar que invalida todo o processo judicial até o trânsito em julgado (decisões de mérito em todas as instâncias), tornando nulos na prática os direitos protegidos pela legislação ambiental. O instituto carrega o autoritarismo do regime que o concebeu: é concedido pela presidência de um tribunal e não precisa se debruçar sobre o mérito da questão, bastando mencionar razões de ordem pública, economia ou segurança nacional. Pela frequência com que vem utilizando esse expediente nos processos judiciais, o governo federal já conseguiu fazer da teoria do fato consumado a regra principal para o licenciamento de usinas hidrelétricas na Amazônia. Em Belo Monte foram cinco suspensões e nas usinas do complexo Tapajós-Teles Pires já são 12 suspensões de segurança.

    Com esse método de atuação jurídica, o governo brasileiro avança no licenciamento e construção de quatro usinas que afetam diretamente povos indígenas sem nunca respeitar os direitos protegidos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e pela própria Constituição Federal. Foram as suspensões de segurança que permitiram as obras de Belo Monte e Teles Pires e o licenciamento de São Manoel e São Luiz do Tapajós sem que a consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção ou a oitiva prevista na Constituição fossem até hoje aplicadas, apesar de decisões judiciais em todos os casos reconhecendo a obrigação de consultar.

    Para o juiz Marcel Queiroz Linhares, responsável pela sentença judicial que ordena a paralisação da usina Teles Pires, o empreendimento violou o direito à consulta prévia e à oitiva constitucional, violou o direito à autodeterminação dos povos e ao pluralismo e, ao promover a destruição do salto Sete Quedas, sagrado para a cultura dos Kayabi, Munduruku e Apiaká, violou a liberdade de consciência e crença também asseguradas pela Constituição brasileira.

    “O estado laico tem a obrigação de não interferir no livre exercício dos cultos religiosos, de não lhes embaraçar o funcionamento, ao mesmo tempo em que deve cumprir a obrigação de garantir proteção aos locais de culto e a suas liturgias. E assim o é porque a República Federativa do Brasil se constituiu como um estado laico: nem confessional nem ateu”, afirma na sentença.

    “Entenda-se pluralismo nos termos em que a Constituição o erigiu como fundamento da República: “um direito fundamental à diferença em todos os âmbitos e expressões da convivência humana – tanto nas escolhas de natureza política quanto das de caráter religioso, econômico, social e cultural”, diz ainda. “E, por autodeterminação, deve-se compreender, no presente contexto, não um direito dos povos de se constituírem em Estados, mas, sim, autodeterminação baseada na auto-estima de um povo, como o direito de um povo à autodeterminação sem desejar constituir-se em Estado”, prossegue.

    “É importante salientar que o elemento nuclear dessa consulta reside na busca pelo consentimento dos povos indígenas afetados, e por consentimento deve-se entender tanto o poder de concordar como o de discordar do empreendimento proposto”, assegura a sentença judicial. Em contrassenso aos direitos afirmados pela Justiça, a licença de operação nº 1272/2014, assinada pelo presidente do Ibama Volney Zanardi Júnior, permite o enchimento do reservatório da usina e a operação das turbinas sem que o consentimento dos Kayabi, Munduruku e Apiaká tenha sido ao menos buscado.

    Em carta que é citada na sentença do juiz Marcel Queiroz Linhares, os indígenas descreveram assim o licenciamento da usina Teles Pires: “A construção desta hidrelétrica, afogando as cachoeiras de Sete Quedas, poluindo as águas e secando o Teles Pires rio abaixo, acabaria com os peixes que são a base de nossa alimentação. Além disso, Sete Quedas é um lugar sagrado para nós, onde vive a Mãe dos Peixes e outros espíritos de nossos antepassados – um lugar onde não se deve mexer. Tudo isso já está sendo destruído com as explosões de dinamite sem qualquer processo de consulta livre, prévia e informada junto às comunidades indígenas, desrespeitando nossos direitos assegurados pelo artigo 231 da Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT (…). Agora, o governo nos convida para participar de reuniões sobre o PBA [Plano Básico Ambiental], mas como vamos discutir mitigações e compensações de um projeto cujos impactos sobre nossas comunidades nem foram estudados e discutidos, e que foi licenciado ilegalmente?”

    A sentença sobre a consulta de Teles Pires se soma à sentença do processo da consulta prévia da usina de Belo Monte no rol das decisões de mérito favoráveis aos indígenas que não tem validade, porque os direitos que buscam proteger já foram demolidos tanto por obras civis quanto por suspensões de segurança despachadas das presidências dos tribunais.

    No caso de Belo Monte, em que o MPF foi vitorioso, o processo aguarda a palavra final do Supremo Tribunal Federal, bloqueado que está por uma suspensão de segurança. Mas está parado desde abril de 2013 no Tribunal Regional Federal da 1a Região, em Brasília, que costuma ser bem mais rápido que isso quando se trata de conceder suspensões ao governo contra direitos de minorias.

     

    *Helena Palmquist é jornalista e acompanha licenciamentos de hidrelétricas na Amazônia desde 2005.

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