Vídeo contradiz versão da PM para prisão ’em flagrante’ de 6 jovens por roubo de carga

Juíza determinou a prisão dos seis jovens, alegando que a PM os deteve em flagrante pelo roubo a um caminhão. Vídeo obtido pela Ponte mostra cabeleireiro trabalhando e conversando com clientes por 25 minutos antes da polícia aparecer

Amigos Athyson, Isaac, Rogério (em cima), José Humberto, Marcos Vinícius e Heberson (em baixo) foram presos no Jardim d’Abril, zona oeste de SP | Foto: Montagem/Redes sociais

Policiais militares prenderam “em flagrante” o cabeleireiro José Humberto da Conceição, 28 anos, no salão em que ele trabalhava, no Jardim D’Abril, zona oeste da cidade de São Paulo, junto com mais cinco amigos e clientes dele, alegando que os seis haviam acabado de roubar um caminhão, na tarde de 30 de novembro. Um vídeo obtido pela Ponte, contudo, desmente a acusação.

O vídeo, gravado por uma câmera no interior do salão de José, na Praça Tomás Coelho de Almeida, mostra o cabeleireiro trabalhando no corte de um cliente e, em seguida, conversando com amigos na entrada do estabelecimento, ao longo de 25 minutos. É quando um grupo de PMs aparece, aponta suas armas para os jovens e passa a revistá-los aos gritos, mandando “calar a boca” e “olhar para a frente”. Veja a versão integral.

Ao final da abordagem mostrada no vídeo, o cabeleireiro foi preso em flagrante por roubo, juntamente com outros cinco jovens que estavam na entrada do salão, clientes e amigos dele: o marceneiro Isaac Conceição dos Santos, 21 anos, o copeiro Marcos Vinícius Pereira, 23, o auxiliar de limpeza Rogério Ribeiro dos Santos, 27, o estudante Athyson Felipe Lima da Silva, 19, e o autônomo Heberson da Silva Nogueira Bernal, 32.

Na versão policial, aceita pela juíza Adriana Barrea, que converteu a prisão em flagrante dos jovens em preventiva (sem prazo definido), os seis estariam envolvidos no roubo a um caminhão ocorrido minutos antes. As 32 caixas com produtos roubadas foram encontradas em uma casa vizinha ao salão de beleza.

Uns reconhecidos, outros não: todos presos

Os jovens afirmam que são inocentes. De acordo com a cuidadora Jacilene da Conceição, mãe de um dos acusados, no momento do roubo os seis estavam no salão e, mesmo com a chegada da polícia ao local, o grupo permaneceu, enquanto os supostos responsáveis pelo crime fugiram.

Segundo ela, seu filho, Isaac, estava sentado na porta do salão do cabeleireiro José, que fica em frente à casa onde mora, aguardando a chegada de um outro rapaz para fazer uma hidratação no cabelo. Enquanto esperavam, seguiram batendo papo com outros quatro amigos. 

Nesse tempo de espera, outro grupo de jovens chegou com um caminhão para descarregar cargas roubadas em uma casa vizinha ao salão. Foi quando policiais militares da 2ª Companhia do 16º Batalhão da Polícia Militar chegaram no local. Os responsáveis pelo roubo conseguiram fugir. Os PMs, então, foram para diante do salão e abordaram os seis amigos. 

Jacilene conta que os policiais começaram a questionar os jovens e os moradores que presenciaram a ação sobre quem eram os assaltantes que haviam fugido. Ninguém respondeu e, então, os PMs decidiram responsabilizar os seis amigos pelo roubo da carga.

No 89º DP (Portal do Morumbi), os soldados da PM Michel Vaz Coelho e Marcos Alves Correia contaram que a PM foi acionada para o bairro para atender a um roubo de carga no qual duas vítimas seguiam com os criminosos. Segundo a versão policial, quando os PMs chegaram ao bairro, três rapazes saíram correndo em direção a uma viela, avisando que a polícia havia chegado. Os policais seguiram para a rua e viram o caminhão e o casal que havia sido vítima do roubo. Voltaram para a praça de onde os jovens teriam corrido, quando viram os seis rapazes sentados em frente ao salão. 

Ainda segundo os PMs, um dos rapazes estava com uma camiseta roxa, que seria a mesma cor da usada por um dos que fugiram, e isso seria um indicativo que se tratava da mesma pessoa. Os policiais militares, então, passaram a tratar os seis como suspeitos pelo roubo e decidiram levá-los à delegacia. 

No depoimento do casal vítima do roubo, os dois disseram que dois rapazes em bicicletas abordaram o caminhão, o conduziram para uma rua onde deixariam a carga, e “aproximadamente mais sete” pessoas ajudaram a descarregar o veículo. 

As vítimas disseram ainda que só conseguiriam descrever os dois suspeitos que ficaram mais tempo com eles na abordagem. Um deles é “um moreno, blusa roxa, tatuagem no pescoço e boné preto”, e o outro é “rapaz branco, olho puxado para o claro, magro, boné azul para trás”. 

Na delegacia, a delegada da Polícia Civil, Sabryna de Souza Freitas, separou os amigos em dois grupos para que as vítimas fizessem o reconhecimento. Ao colocar todos os suspeitos para serem reconhecidos, contrariou o artigo 226 do Código de Processo Penal, que explica que a pessoa a ser reconhecida “será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.

As duas vítimas disseram ter reconhecido “com certeza” José Humberto e Athyson como os rapazes da bicicleta, que conduziram o assalto. Sobre os outros quatro, as vítimas apontaram ter “quase certeza” de que seriam os criminosos que ajudaram a descarregar o caminhão. 

A delegada Sabryna de Souza Freitas disse, que diante da “dúvida razoável”, era correto enquadrar os jovens como responsáveis pelo crime. Na prática, ela mostrou os seis suspeitos para as vítimas e decretou a prisão em flagrante de todos, tendo sido ou não reconhecidos.

“Agora, desde quando meu filho foi preso, eu não consigo dormir porque só fico pensando nele lá dentro, naquelas paredes geladas. Um menino que nunca foi preso, e agora ficamos nessa preocupação, pensando um monte de coisa, o tempo inteiro esperando notícias. Não está sendo fácil”, conta Jacilene. As famílias estão recebendo apoio jurídico e psicológico da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio.

“Desassossego à sociedade brasileira”

Para Guilherme Fernandes de Lima, advogado de um dos réus que anexou aos autos trechos do vídeo que mostra o grupo antes da detenção, “a prisão foi ilegal”, já que os réus “estavam em local distinto, dentro do salão de cabelereiros”.

A juíza Adriana Barrea, no entanto, considerou que “da análise dos vídeos, não há, por ora, de se excluir a participaçãodos autuados na empreitada criminosa”. Segundo a magistrada, “de fato, os autuados foram flagrados, logo após a prática do delito,em situação que presume serem os autores da infração”. Para fundamentar sua decisão, ela fez um copia-e-cola, na sua decisão, de quase todo o histórico do boletim de ocorrência da Polícia Civil.

Na sua decisão, a magistrada disse que os réus são suspeitos de “crime extremamente grave, praticado mediante violência ou grave ameaça à pessoa, que vem trazendo enorme desassossego à sociedade brasileira”, e ressaltou que “praticaram a presente conduta em pleno estado de pandemia por qual passa o mundo e , não obstante as recomendações das autoridades para quefiquem em suas casas, os indiciados saíram às ruas com o objetivo único de cometer crimes, o que denota a periculosidade concreta de suas condutas”.

Essas alegações serviram de base para a juíza determinar que os réus não poderiam responder ao processo em liberdade, mesmo que quatro deles não tivessem antecedentes criminais e todos declarassem residência fixa. Na decisão, a juíza também levou em conta os antecedentes de dois dos acusados, inclusive os atos infracionais atribuídos a um deles quando era adolescente.

A pedido da Ponte, a advogada criminalista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) Débora Nachmanowicz analisou o processo que levou os seis rapazes à prisão. Para ela, a forma como eles foram reconhecidos pelas vítimas não foi adequada. “Temos ali alguma irregularidade no reconhecimento, por não terem sido colocados outros indivíduos além dos presos e também porque não temos certeza do que foi informado pelos policiais às vitimas”.

Outra questão pontuada por Nachmanowicz é em relação ao vídeo onde é mostrado a hora em que o grupo está reunido na barbearia. Na opinião da advogada, o material é de grande valia para a defesa. “É preciso pegar toda a sequencia de vídeos da barbearia e exigir que o judiciário faça a pericia, comprovando que não há cortes, que está sequenciado, e identificando os sujeitos no vídeo. Os horários da gravações são um pouco confusos, e não fica claro o que é antes e depois, mas é, sem duvida, uma prova muito importante”.

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Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo sobre as prisões. Não houve retorno até a publicação desta reportagem. 

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