Violência policial é ignorada em mais de 45% das audiências de custódia

    Ponte antecipa dados do Instituto de Defesa do Direito a Defesa que serão divulgados hoje sobre a experiência dos dez primeiros meses das audiências em São Paulo

    Cela superlotada de prisão em Vila Velha (ES), em 2009. Foto: Wilson Dias/Abr
    Cela superlotada de prisão em Vila Velha (ES), em 2009. Foto: Wilson Dias/Abr

    Negros, com idade entre 18 e 25 anos, com residência declarada, mas sem trabalho formal, ganhando entre um e dois salários-mínimos e acusados predominantemente de roubo. Esse é o perfil das pessoas presas em flagrante na cidade de São Paulo, onde a cada 15 minutos uma prisão é realizada. Além disso, em 45,32% das vezes juízes, promotores e até defensores públicos não deram a devida importância a evidência de tortura e agressão contra o detido em flagrante.

    Essas são algumas das conclusões que estão no “Monitoramento das audiências de custódia em São Paulo”, feito pelo Instituto de Defesa do Direito a Defesa e antecipado com exclusividade pela Ponte Jornalismo. No documento, o IDDD reúne dados dos dez meses do Projeto Audiência de Custódia em São Paulo, idealizado e implementado pelo Conselho Nacional de Justiça com a colaboração do Tribunal de Justiça de São Paulo, e de todos os Tribunais de Justiça do país.

    A proposta exige que o preso em flagrante seja levado ao juiz em até 24 horas para que a autoridade decida se ele deve ir para a prisão ou ter alguma outra medida punitiva. O projeto segue determinação da Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, e está previsto em decreto no Brasil assinado em 1992, mas até o momento muito longe de ser uma realidade.

    Entre fevereiro de 2015 e março deste ano, quase 20 mil audiências de custódia foram realizadas e o Instituto acompanhou 588 casos, entrevistando juízes, promotores de justiça e defensores públicos que participaram da experiência. Segundo o IDDD, na análise das decisões judiciais dos casos acompanhados, 61% foram convertidos em prisão provisória após a audiência de custódia, 27% receberam liberdade provisória sem fiança e alguma medida cautelar, 6% das prisões foram relaxadas, 5% receberam a liberdade provisória com fiança e apenas 1% foi liberado sem qualquer medida adicional.

    Um dos resultados que chama bastante atenção se refere à violência no momento do flagrante. Em 45,23% dos casos, o custodiado não foi questionado e não teve a chance de dizer se sofreu maus tratos. O relatório mostra que apenas 1,36% dos promotores se interessaram pelo assunto, o que demonstra um desinteresse do MP, que é constitucionalmente o órgão que deve fazer o controle externo da atividade policial.

    Ficou evidente uma diferença entre o que consta no boletim de ocorrência – realizado pela autoridade policial – e o testemunho do custodiado. No relatório, as pesquisadoras chamam atenção para dois casos que ilustram isso: “em um deles, o custodiado havia sido agredido de forma brutal e estava com os braços queimados e o pé esfolado”.

    Ele narrou ter sido arrastado pela polícia para entrar na viatura e, na descrição do Boletim de Ocorrência, os policiais mencionaram que o custodiado estava resistindo à prisão e que foi aplicada a ele medida proporcional de contenção. Em outro caso, uma mulher de aproximadamente 30 anos disse que a polícia entrou sua casa e fez roleta-russa com ela e sua companheira. Ela narrou detalhadamente as horas de pânico que passou, até ser conduzida à delegacia por tráfico de drogas.

    Dos 59 que declaram terem sofrido algum tipo de agressão, 40 disseram que foram policiais militares e 47 afirmam que aconteceu no momento do flagrante. Além disso, o IDDD considerou grave o fato de que, dos 141 casos em que o custodiado afirmou ter sofrido algum tipo de violência, apenas em 91 houve providência. Nos outros 50, nenhuma atitude foi tomada.

    Outro grande problema é a presença da Polícia Militar não só durante a entrevista reservada com a defesa como também sua permanência na sala de audiências. Defensores públicos afirmam que o detido diz que sofreu violência policial, mas prefere não tocar no assunto com o juiz por medo de retaliação.

    Uma chance ao flagrado

    Apesar dos números que indicam as conversões de flagrantes em prisão preventiva, o documento mostra um aumento nos relaxamentos, que pode representar a redução da possibilidade de encarceramento, caso isso se mostre desnecessário.

    De acordo com a estatística do Tribunal de Justiça sobre todas as audiências realizadas no período entre fevereiro de 2015 e março de 2016, houve um total de 53% de decretações de prisão preventiva e 47% das pessoas foram postas em liberdade, seja pela concessão de liberdade provisória, seja pelo relaxamento de flagrante.

    Ao mesmo tempo ficou comprovado um gradual aumento no número de decisões de relaxamento do flagrante, que passou de 2,4% no primeiro mês do projeto para 4,8% nos seis primeiros meses e 6,3% no primeiro ano do projeto.

    Os atores do flagrante

    Um dos capítulos do relatório traça um perfil sobre quem são as pessoas envolvidas em um flagrante. Segundo o IDDD, um dos pontos a serem observados é que, dos 151 casos em que somente policiais forneceram uma narrativa, não havendo outros depoentes, em 95 o crime pelo qual a pessoa custodiada era acusada era o tráfico de drogas.

    Nesse sentido, dos 127 casos de tráfico acompanhados pela pesquisa, em 74,8% os únicos depoentes do flagrante eram os próprios policiais que efetuaram a prisão. Esse cenário evidencia que a justiça tende a valorizar muito mais a palavra do policial sem muitas vezes exigir provas para configurar um crime.

    Outro dado é que menos de 5% dos detidos em flagrante teve acompanhamento de um advogado na delegacia no momento do registro da ocorrência.

    Roubou para pagar fiança

    Um dos temas abordados no relatório é a concessão de liberdade provisória mediante pagamento de fiança. Os casos em que o juiz tomou essa decisão somam 49 casos. Nas entrevistas realizadas pelo IDDD com juízes, promotores e defensores, apareceu uma história curiosa de um rapaz que foi liberado e teve o prazo de 3 dias para realizar o pagamento de fiança.

    Sem recursos, acabou sendo levado para a audiência de custódia novamente porque havia se envolvido em outro roubo. Ao chegar na frente no magistrado disse que estava roubando para conseguir pagar a fiança.

    Juiz pesa mais a mão em casos de roubo

    Cerca de 90% dos flagrantes convertidos em prisão preventiva foram para reincidentes. Outro aspecto levado é a gravidade do delito, sendo os considerados os mais graves pelos magistrados o roubo e o tráfico de drogas. Os números do relatório são os seguintes: 87,9% das pessoas acusadas de roubo tiveram sua prisão imposta; 67,7% por tráfico de drogas; 33,3% por furto e 19,5% por receptação.

    A cor da pele ainda influencia as decisões dos juízes. Os dados mostram, por exemplo, que em um universo de 79 negros, 55 tiveram a prisão preventiva decretada, ou seja, 69% dos casos. Ao mesmo tempo, das 228 pessoas brancas apresentadas, essa taxa cai para 55% de aprisionamento. A falta de endereço fixo também pesa contra. Dos 49 moradores de rua identificados, 30 deles tiveram a prisão convertida em preventiva, 13 receberam liberdade provisória com medida cautelar e 6 tiveram o flagrante relaxado.

    Juízes e promotores concordam que a tornozeleira eletrônica daria mais tranquilidade para concessão de liberdade provisória, porque o suspeito estaria sob controle sem ser necessário o encarceramento. Há pouco meses o ex-secretário da Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes – atual ministro da Justiça – chegou a dizer que havia 20 mil tornozeleiras disponíveis para uso no estado, mas foi desmentido pelo governador Geraldo Alckmin.

    Na conclusão do documento, que será divulgado nesta segunda-feira, o IDDD afirma que o Projeto Audiência de Custódia representa um importante passo em direção a um sistema de justiça comprometido com os direitos humanos e com a realização da justiça, mas que ajustes são necessários. Ao mesmo tempo, o relatório evidencia o abismo que existe entre aqueles julgados pelo sistema de justiça e aqueles que operam a justiça.

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