‘Virei um fantasma’, diz morador de favela destruída pela enchente em SP

    Favela do Sapo possui quase duas centenas de palafitas, que foram destruídas durante chuva da terça-feira (20/3), quando uma bebê morreu e pessoas ficaram desabrigadas

    Abandonados. É assim que os moradores da favela do Sapo, na Água Branca, zona oeste da capital paulista, definem a própria situação, dois dias após a chuva que atingiu a comunidade na terça-feira (20) e que resultou na morte da menina Sofia, de 1 ano e 8 meses e em mais de uma centena de desabrigados. A favela fica a poucos quilômetros do centro da cidade e ainda conta com quase duas centenas de palafitas.

    A dor da perda da bebê, levada pela correnteza do córrego Água Branca, que passa rente aos 168 barracos de madeira deixou marcas visíveis no rosto e na memória de adultos e crianças. A todo momento os homens e mulheres que vivem no local contam que fizeram de tudo para salvar a garotinha, mas acabam resignados ao lembrarem de sua sepultura no cemitério da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte.

    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    Retirada do riacho ainda com vida pelos moradores, a pequena não resistiu ao dar entrada em um hospital da região. Ao menos outras três pessoas se feriram, sem gravidade, no momento do desmoronamento dos barracos ou durante o resgate aos desabrigados.

    A reportagem ficou pouco mais de 2 horas no local, na quinta-feira (22/3), e encontrou, em meio aos destroços de madeira, roupas e eletrodomésticos, uma comunidade que não pretende deixar o terreno em que as famílias vivem há mais de 30 anos, e que, segundo eles, sofre com a especulação imobiliária, já que está localizada em meio a edifícios de alto padrão e ainda tem como vizinhos o São Paulo Futebol Clube e Sociedade Esportiva Palmeiras, times de futebol que rentabilizam milhares de reais em seus jogos e, assim como a favela, ocupam terrenos públicos na avenida Marques de São Vicente.

    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    Aliás, moradores falam em inércia do tricolor paulista, que possui muros que separam seu Centro de Treinamento da favela. Segundo eles, o São Paulo nunca prestou um único auxílio aos moradores [como distribuição de galões de água potável], não os ajudando nem mesmo no dia da enchente. A única ajuda no trágico dia veio da rede de materiais de construção Telhanorte, que durante o regaste aos moradores forneceu cordas e escadas. Além disso, vez ou outra disponibilizam tintas para a pintura dos barracos. A grande loja também é vizinha da favela. Moradores dos imponentes prédios com extensas sacadas também contribuíram com roupas e alimentos com os desabrigados. Procurados, o São Paulo Futebol Clube e a Sociedade Esportiva Palmeiras não se pronunciaram.

    Falhas na zeladoria
    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    Segundo os moradores, a falta de limpeza do córrego por parte da prefeitura foi o principal responsável pelo represamento da água que culminou com a queda dos barracos, formando uma espécie de barreira que não permitiu que o volume corrente da chuva de verão fosse em direção ao rio Tietê. De acordo com eles, a prefeitura teria feito o corte do mato na beira do rio, mas não o recolhido, sendo levado pela força das águas até o córrego. A prefeitura nega que não tenha feito o recolhimento do capim.

    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    O autônomo Paulo Ricardo de Barros, de 30 anos, todos eles vividos na comunidade, disse que alguns alagamentos já atingiram o local, mas nunca como o visto na tarde da última terça-feira. Ele, que é pai solteiro e vive com a filha de 8 anos, também culpa o mato cortado por equipes da prefeitura e não recolhido por ter represado a água do rio. “A gente não quer benefício, a gente quer moradia digna”. Barros mostrou os itens que recebeu da prefeitura. Duas mantas, dois colchões e kits básicos de higiene.

    Situação desesperadora está o vendedor ambulante Reginaldo Otoni, 50 anos, que morava num barraco de 6 metros quadrados ao lado dos filhos Daniele, 15, Diogo, 13 e Dafne 7. Com uma boneca de pano nas mãos, que pegou para presentear a filha mais nova em meio as doações dos moradores dos prédios vizinhos, ele narra que perdeu tudo que tinha. Morador do local há três meses, o vendedor de balas e doces em semáforos da capital, contou que o videogame recém-comprado para as crianças foi levado pela água.

    Reginaldo conseguiu a boneca de pano para a filha em doação | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    “Sou um fantasma [em virtude da perda dos documentos levados pela enxurrada]. Só quero viver com dignidade”, desabafa. Além de ter salvo a vida dos filhos, Otoni comemora ter conseguido salvar sua fiel companheira Cristal, uma cadela que durante a entrevista, na soleira do barraco, não saiu de perto de seu dono.

    Outra moradora, Natália Lima, reforça a tese de que a falta de zeladoria no local foi um dos principais causadores da forte enchente que levou moradias abaixo. “Além disso, esse abandono faz com que bichos se proliferem. Ratos, baratas, mosquitos, até cobra um dia apareceu no meu banheiro”, relata.

    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte
    Operação Urbana Água Branca

    A líder comunitária da Associação de Moradores da Comunidade Água Branca, Hemelin Rodrigues de Alcântara, 27 anos, disse que a esperança dos moradores do local é a implantação de moradias populares através da Operação Urbana Água Branca, que prevê, o desenvolvimento habitacional da região.

    Em nota, a gestão do prefeito João Doria (PSDB) informou que o montante atual disponível na conta da Operação Urbana Água Branca, obtidos nos termos da lei antiga de 1995 da Operação, é de R$ 578.572.519,00, sendo R$ 111.498.890,00 destinados à implantação de Habitação de Interesse Social (HIS).

    No entanto, não há um prazo para a construção das moradias, que serão erguidas em um outro ponto da avenida. “É uma comunidade de geração [pais que passam para os filhos]. Nós não vamos sair daqui, fomos nós que fizemos o bairro”, defende Hemelin Rodrigues de Alcântara, de 27 anos.

    A rotina na favela do Sapo pode ser resumida pela fala de um morador, que olha para o céu a cada instante para tomar a melhor decisão. “Sentimento de preocupação. Quando começa a escurecer passamos zap [Whatsapp] avisando que o tempo está para chuva pesada, para dar tempo de o pessoal sair, conta o auxiliar de produção Miguel Dioclides de Alcântara, de 37 anos.

    A Prefeitura de São Paulo alegou que, ao contrário do que dizem os moradores, a ocupação às margens do córrego tem apenas 4 meses e que as 450 famílias mais antigas do local recebem auxílio aluguel em cadastro feito em 2008, quando, segundo a administração municipal, o local foi totalmente desocupado.

    Confira a íntegra da nota:

    A Secretaria Municipal de Habitação cadastrou cerca de 450 famílias localizadas na Favela do Sapo em 2008. Na época, o local foi totalmente desocupado. Essas famílias recebem auxílio aluguel e serão atendidas com unidades habitacionais previstas no perímetro da Operação Urbana Água Branca. Para as famílias que ocuparam a beira do córrego há 4 meses, a Prefeitura disponibilizou atendimento emergencial.

    A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social prestou atendimento a 282 pessoas após os desabamentos ocorridos nesta semana. Foram oferecidos 282 colchões e cobertores, 119 cestas básicas e 119 kits de higiene e limpeza para todas as famílias, que não aceitaram acolhimento e escolheram ficar na casa de parentes, amigos e em uma entidade cultural local. A pasta deu todo apoio à família da menina Sofia acompanhando a liberação do corpo no IML e o enterro no cemitério Cachoeirinha. A família fez a opção de pagar pelos serviços funerários.

    A Prefeitura regional Lapa esclarece que o mato roçado foi recolhido e a limpeza manual executada no último fim de semana. Esclarece ainda que para limpar um córrego muitas vezes se faz necessário o uso de máquina retroescavadeira. No trecho onde há ocupação, por questão de segurança, o e equipamento não pode ser utilizado. Todas as moradias foram interditadas. Agentes da Prefeitura Regional e da Defesa Civil atuam no local desde de terça-feira. O prefeito regional conversou com familiares da criança, lamentou o ocorrido e se colocou à disposição.

    A Defesa Civil esteve no local por 36 horas seguidas desde a chegada da primeira equipe para atendimento dos moradores da comunidade do Sapo. Todos os 168 barracos estão interditados, pois já havia processo de remoção dessas famílias. Os barracos que ficaram inclinados estão desocupados, sem moradores. Continuam ocupados apenas barracos de moradores que se recusam a sair da comunidade.

    A Favela do Sapo não pode ser edificada. No entanto, existe previsão para construção de 900 moradias em um terreno localizado na avenida Marquês de São Vicente. Essas unidades estão em fase de projeto e serão construídas com recursos Operação Urbana Água Branca.

    A Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) informa que o montante atual disponível na conta da Operação Urbana Água Branca, obtidos nos termos da lei antiga de 1995 da Operação, é de R$ 578.572.519,00, sendo R$ 111.498.890,00 destinados à implantação de Habitação de Interesse Social (HIS).

    Para contemplar os moradores das favelas do Sapo e Aldeinha, que foram removidos anteriormente, a lei antiga de 1995 da Operação definiu a construção de 630 unidades habitacionais, além de infraestrutura relacionada ao parcelamento do solo no terreno onde atualmente se encontra o pátio de veículos da CET.

    As unidades habitacionais que ultrapassarem as 630 previstas pela lei antiga serão pagas com verbas da venda de CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção), títulos públicos negociados na Bolsa de Valores pela Prefeitura, conforme a lei atual de 2013 da Operação Urbana Água Branca.

    Os CEPACs, no entanto, com os valores atualmente estabelecidos na lei, não estão sendo vendidos. Por esse motivo, a gestão municipal está debatendo junto à sociedade civil uma proposta de revisão da Operação, a fim de que os investidores sejam atraídos e, consequentemente, as intervenções públicas previstas em seu Plano Urbanístico sejam executadas. A lei atual prevê a construção de 5.000 unidades habitacionais em seu perímetro expandido.

    Confira abaixo galeria de imagens:

    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte
    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte
    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte
    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte
    Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas