‘Vivemos aqui 20 anos e nos dão meia hora para sair’, diz sem-teto em SP

    Cerca de 120 famílias são avisadas do dia para a noite de desocupação no centro de São Paulo; representante que participou de reuniões cobrou quantia e sumiu, sem avisar da remoção

    Moradora, sobrinha de dona Maria (à dir.), se desespera com a reintegração de posse | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Dimas abre uma pequena porta, enfeitada com duas plantas, e entra no corredor que leva até sua casa. O caminho é repleto de caixas e mais caixas, juntas de mobílias, espalhadas por uma espécie de sala. Mais para frente, ao lado do quarto onde vive um parente acometido por doença que o deixa de cama, ele mostra um jardim. Plantas se acumulam no espaço de cerca de 15 a 20 metros quadrados, algumas delas com três metros ou mais de altura. “Não vou deixar levar isso aqui. É meu, cuidei pela minha vida toda”, garante.

    Selo de identificação em um dos cômodos da ocupação | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Há aproximadamente 10 anos, ele mora em uma ocupação na Rua Independência, número 382, no bairro do Cambuci, região centrão de São Paulo. Na terça-feira (12/2), Dimas e mais 120 famílias receberam a informação de que teriam que deixar o espaço até às 6h do dia seguinte. O problema é que ninguém sabia da determinação da Justiça sobre a desocupação, a não ser um representante que sumiu da mesma forma em que a notícia chegou: do dia para a noite.

    Uma ação civil pública movida pelo MP (Ministério Público) tramita na Justiça desde 2013. O prédio é de posse de uma gráfica, a Itamarati Gráfica e Editora Ltda, mas a saída das pessoas não tem nada a ver com reintegração de posse. Segundo o órgão, o prédio apresenta risco para quem mora ali. A justificativa é “pela precariedade das instalações” e “dificuldade de evacuação (visto que o local é um labirinto) e de combate a incêndios tanto na parte interna quanto na parte externa”, conforme avaliação do Corpo de Bombeiros feita em 2011.

    Alguns moradores retiraram seus pertences depois da chegada da PM | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    A ação estava arquivada quando a Subprefeitura da Sé (hoje Prefeitura Regional) interditou o local. No entanto, a ocupação prosseguiu, pois a Sehab (Secretaria Municipal de Habitação) de São Paulo apontou que não tinha programa habitacional para atender as cerca de 100 famílias que viviam ali na época. A Prefeitura argumenta que teria cadastrado todos os moradores em 2014. E a vida seguiu normalmente até o ano passado.

    Funcionários da Prefeitura aguardam para entrar na ocupação | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Em 7 dezembro de 2018, o juiz Randolfo Ferraz de Campos, da 14ª Vara de Fazenda Pública do Foro Central, determinou a desocupação para o dia 21 daquele mês. Houve uma reunião que adiou a saída, mas um novo encontro em 9 de janeiro de 2019 reprogramou a retirada das famílias para o dia 13 de fevereiro.

    O representante dos moradores da ocupação, no entanto, não repassou a informação aos demais. Um morador, que tenta organizar o grupo após a informação do despejo chegar, denunciou que o suposto representante é um homem que cobrava R$ 50 de todos os ocupantes para acompanhar o processo e, quando a situação apertou, desapareceu. “Nem passou perto daqui hoje, estamos sozinhos”, explica.

    Policiais militares cumprem ordem de reintegração de posse | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    ‘Dou 30 minutos para vocês. Depois vou voltar’

    A movimentação de pertences começou antes do sol nascer. Eram 6h da manhã quando homens desciam pertences pelas escadas dos cinco andares dos prédios. Demorou até os primeiros funcionários da prefeitura chegarem, bem como os oficiais de justiça e a Polícia Militar, que faz a segurança dos funcionários públicos municipais e do judiciário nesses casos.

    Quando o capitão Malaguti, comandante da operação, chegou, algumas pessoas tomaram a frente da discussão e argumentaram não terem sido avisados. A oficial de justiça explicou a questão, de que tinha, sim, representantes na última reunião e a data foi repassada. Uma nova tentativa de diálogo terminou com o aviso do capitão: “Dou 30 minutos pra vocês tirarem tudo. Depois, vou voltar”, avisou.

    Policial militar estava sem tarjeta de identificação | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Malaguti liderava uma tropa de aproximadamente 50 policiais militares. “Nós vivemos aqui faz 20 anos e nos dão meia hora para sair? Não é assim, não!”, gritou uma moradora, indignada. Uma das reclamações era a de que ninguém recebeu o auxílio moradia prometido pela prefeitura. O pagamento do valor, de R$ 400 mensais, foi condicionado à retirada das pessoas pelo juiz. Assim, a saída era obrigatória e o pagamento aconteceu somente após às 10h desta quarta. Mesmo com o acordo de pagamento, a quantia é válida somente para 66 famílias cadastradas em 2014, segundo os moradores, e não a todas as 120 que moram no prédio atualmente.

    Moradores conversam com oficiais de justiça e policiais militares | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Depois desse aviso, o capitão não retornou, mandou um encarregado da Tropa de Choque. O “novo chefe” da operação chegou com 15 homens com escudos e equipados com armamento letal, entre eles submetralhadoras, calibre 12 e pistolas .40. Os policiais subiram andar por andar e vistoriaram o local. A imprensa acompanhava o trabalho, até um oficial solicitar a saída “para a própria segurança” dos jornalistas.

    Moradores apontam que, depois disso, eles dificultaram o serviço, como ficando à frente de quem passava com itens pesados, como fogões e geladeiras. Quando consideraram “seguro”, liberaram o acesso para os funcionários da prefeitura auxiliarem os moradores na mudança, mas apenas após assegurar um grupo de seis PMs para cada andar da ocupação.

    Criança carrega brinquedo após reintegração de posse | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Sem ter para onde ir

    Dona Maria fazia o café quando a sobrinha abriu a porta de sua casa. “Vocês aceitam?”, perguntou para os jornalistas. Aos 70 anos, a senhora tem uma doença que deixa um calombo no pescoço. Sem saber para onde ir, deixa as lágrimas escorrerem timidamente, acolhida pela parente. O medo era do futuro sem o espaço de aproximadamente de 3 metros de largura por outros 5 de extensão.

    Moradores se preparam para deixar o prédio | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    É grande a quantidade de idosos e crianças moradoras do local, sem uma bandeira – definição que se dá quando uma ocupação não é liderada por movimentos formais de moradia, como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) ou MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro), por exemplo. Ao menos duas mulheres estão grávidas.

    Todos atenderam à determinação sem resistir, retiraram os móveis e pertences do local, que foram levados para caminhões da Prefeitura, usados como carreto até onde os moradores pediam. A maioria levou para casa de familiares que os ajudaram. Quem conseguiu contratou carreto particular.

    Uma senhora não tinha condições para tal. “Não dá para pagar R$ 300. Consegui um cantinho de graça no Terminal Campo Limpo, mas é caro demais pagar o carreto. Vivo eu e meus gatos, por mim, ficaria em qualquer lugar, só me preocupo de verdade com os dois”, conta, se referindo aos animais. Sua casa, no terceiro andar, é espaçosa, mobiliada com duas camas e diversos móveis, entre eles uma máquina de lavar e um fogão novos.

    Moradora se emociona ao deixar ocupação | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Por ser uma ocupação antiga, há espaços reformados com piso, pintura em dia e eletrodomésticos. O café da manhã de algumas famílias, que aprontavam suas crianças para irem à escola, foi interrompido pelos oficiais. “Não adianta gritar, ficar com palavra contra a gente. Só temos que cumprir a ordem e a situação vai se concretizar”, disse o oficial de justiça Paulo Monteiro aos moradores.

    A Ponte registrava a tentativa de diálogo quando um oficial de justiça presente no local exigiu a identificação do fotojornalista Daniel Arroyo. “O senhor poderia mostrar a identidade para mim, por favor”, disse, antes de fotografar com o próprio celular o crachá do profissional. Em seguida, o oficial explicou que a ação era “para identificar quem estava no local fazendo imagem”. Nenhum outro profissional da imprensa presente no local passou pelo mesmo procedimento, mesmo oferecendo o registro profissional para o oficial Monteiro fotografar.

    Questionamos o TJ (Tribunal de Justiça) de São Paulo sobre a conduta do oficial para esclarecer se essa é uma prática comum e sugerida pelo Tribunal. Não recebemos resposta da assessoria de imprensa do órgão judiciário até a publicação da reportagem.

    Moradores carregam pertences | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

    Diferentemente da maioria dos moradores, Dimas não se preocupou. Enquanto uns carregavam cestos com roupas, pertences e eletrodomésticos, ele permanecia em desalento, mas sem pegar suas coisas. Assim como as casas de quem estava no trabalho, o espaço em que Dimas e os parentes moram seguia intacto, do jeito que foi feito ao longo dos anos. “Tudo aqui é esforço do meu trabalho. Pego reciclável, tem coisa que ganhei pra revender e juntar uma grana, tem esses móveis também. São coisas que conquistei com meu esforço, tudo ganhado com suor. Me recuso a tirar minhas coisas de uma hora para outra, preciso de pelo menos dois dias pra levar tudo daqui”, conta Dimas, apontando para o café frio na caneca, ao lado de um pedaço de pão jogado na mesa. “Tá vendo? Pobre não tem direito nem de tomar café da manhã em paz”.

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