Dom Paulo, o arcebispo que enfrentou a ditadura e denunciou seus crimes ao mundo

    O cardeal se destacou pelo suporte aos perseguidos políticos e seus familiares e pela denúncia internacional dos casos de torturas, assassinatos e desaparecimentos cometidos pelo regime

    Dom Paulo Evaristo Arns em 1974. Foto: Acervo Memória da Democracia Anistia
    Dom Paulo Evaristo Arns em 1974. Foto: Acervo Memória da Democracia Anistia

    Creio que muitos já ouviram falar do papel de Dom Paulo Evaristo Arns no desenvolvimento do projeto “Brasil: Nunca Mais”, que entre 1979 e 1985 sistematizou informações sobre a repressão política no Brasil. Mas já desde o início da década de 1970 o cardeal era um expoente no que diz respeito à sistematização de denúncias de torturas cometidas pelo regime ditatorial brasileiro.

    Sua discrição, a clandestinidade de parcela considerável das atividades políticas do período e as dificuldades inerentes de se escrever a história deste país fizeram com que poucos conhecessem seus gestos mais corajosos e generosos.

    D. Paulo, arcebispo metropolitano de São Paulo entre 1970 e 1998, deu suporte fundamental aos perseguidos políticos e às suas famílias no Brasil. Entre suas primeiras iniciativas, teve grande repercussão a denúncia e os protestos que ele organizou contra a morte do militante da Ação Popular (AP) Raimundo Eduardo da Silva, em 5 de janeiro de 1971. No dia 4 de fevereiro, após o fracasso do encontro com o governador paulista Abreu Sodré, D. Paulo redigiu um texto, fixado em todas as paróquias, em que exigia a abertura de um inquérito para apurar os fatos e a punição dos responsáveis.

    No final do mesmo ano, outra morte de um militante da AP levaria D. Paulo a enfrentar a violência da ditadura. Em 26 de novembro, Luiz Hirata foi preso pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP). Foi assassinado sob tortura no dia 20 de dezembro de 1971. Sua morte levou d. Paulo a defender a criação de “um organismo de reação legal e legítima ao terrorismo do regime”.

    Apoio à greve de fome de presos políticos

    Outro momento crucial foi o apoio de d. Paulo à greve de fome de presos políticos de São Paulo, em 1972. Eles reivindicavam o fim das arbitrariedades existentes no sistema carcerário e do isolamento a que estavam sendo submetidos companheiros que haviam sido transferidos de prisão, condicionando as negociações à mediação do então arcebispo metropolitano de São Paulo.

    Em 19 de maio de 1972, como não conseguia contato com os presos políticos, d. Paulo fez com que sua carta em favor dos grevistas fosse afixada em todas as igrejas de São Paulo. Durantes os meses que se seguiram, os militantes chegaram a encerrar e retomar a greve, e o movimento contou com forte atuação da igreja em seu favor e grande repercussão internacional. Apesar disso, os militares não cederam às reivindicações.

    Corajoso, ao final de duas semanas de uma viagem pela Europa e Estados Unidos, d. Paulo conseguiu angariar apoio aos grevistas e à temática dos direitos humanos no Brasil. Tentou reunir-se com os presos políticos, mas não obteve autorização. No dia 9 de julho, o jornal “O Estado de S. Paulo” divulgou uma comunicação feita pelo arcebispo em que ele reafirmava a posição da Igreja Católica favorável ao jejum, mas contrária, do ponto de vista do Evangelho, à greve de fome. Ele pedia o fim do sofrimento e sacrifício dos presos políticos, assim como segurança e paz para todos eles.

    Em 10 de julho, a situação dos grevistas de São Paulo se tornou insustentável e após 32 dias sem comer decidiram suspender o movimento, sem terem suas reivindicações atendidas. Mas suas vozes foram ouvidas internacionalmente. Dom Paulo foi uma pessoa fundamental para a elaboração e alcance do mais bem fundamentado relatório da Anistia Internacional sobre o Brasil até então.

    Em agosto de 1972, surgia a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, da qual participaram ativistas, advogados, operários, estudantes, sociólogos, jornalistas e intelectuais. Iniciativa de d. Paulo que se constituiu, rapidamente, num importante instrumento de solidariedade aos perseguidos políticos e seus familiares no Brasil. A entidade serviu como repositório de informações e dados sobre as vítimas da ditadura, e foi precursora de congêneres no país e outras nações da América Latina.

    As missas de protesto

    A partir de 1973, alguns assassinatos sob tortura galvanizaram a indignação da opinião pública e as missas celebradas em homenagem a esses militantes se transformaram em atos de protesto contra a violência ditatorial. As cerimônias conduzidas na Catedral da Sé pelo arcebispo de São Paulo foram ganhando importância, tal como se verificou na homenagem a Alexandre Vannucchi Leme, militante da Ação Libertadora Nacional assassinado sob tortura no DOI-Codi/SP, em 17 de março. O programa da missa foi intitulado “Celebração da Esperança”. Depois dos cânticos, d. Paulo proferiu seu sermão, no qual afirmou:

    “Só Deus é dono da vida. D’Ele a origem, e só Ele pode decidir o seu fim. O próprio Cristo quis sentir a ternura da mãe e o calor da família ao nascer. E mesmo depois de morto, o cadáver foi devolvido à mãe e aos amigos e familiares. Esta justiça lhe fez o representante do poder romano, embora totalmente alheio à Sua missão de Messias.”

    A reação provocada, especialmente, pela morte de Vannucchi Leme preparou o terreno para que o movimento estudantil começasse a se reorganizar, ao mobilizar setores da sociedade civil e ocupar espaços institucionais antes sufocados. Esses protestos ajudaram a constituir e fortalecer as redes de solidariedade aos perseguidos políticos que gradativamente ganharam visibilidade pública e levaram à realização de missas emblemáticas celebradas em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, e a Santo Dias da Silva, líder operário assassinado em novembro de 1979.

    A crise dos desaparecidos e a denúncia dos torturadores

    Os familiares de mortos e desaparecidos políticos se organizaram em 1974, sobretudo para fazer frente aos crescentes casos de desaparecimentos forçados. Em agosto daquele ano, d. Paulo e familiares de desaparecidos políticos reuniram-se, em sigilo, com o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil da Presidência da República, solicitando informações sobre seus parentes. Golbery ouviu caso a caso as histórias sobre as prisões e sequestros de 22 desaparecidos e prometeu dar uma resposta.

    Em janeiro de 1975, diante da ausência de resposta do governo, d. Paulo, corajosamente, iniciou uma campanha em todas as igrejas da diocese de São Paulo exigindo informações sobre os 22 militantes. Essa ação deu origem à luta pela instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as violações dos direitos humanos no país, o que levou à chamada “crise dos desaparecidos”. Em maio daquele ano, o silêncio foi o desfecho da crise, mas as denúncias provocaram grande desgaste político à ditadura.

    Esses são apenas alguns dos muitos episódios de coragem que dom Paulo protagonizou e que o tornaram inesquecível para todos, sobretudo para os que o conheceram, como eu, que fui, mais de uma vez, socorrida pela sua generosidade e solidariedade ilimitadas.

    * Janaína de Almeida Teles é professora de História do Brasil Contemporâneo e pesquisadora do Programa de Pós-Doutorado em História Social da Universidade de São Paulo (USP)

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    A generosidade imensurável de D. Paulo Evaristo Arns

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