Artigo | ‘Quem nasce aos seus, semeia. Vira árvore e floresce’

    Raquel Trindade, rainha kambinda, uma estrela no céu de Embu das Artes, morreu no último dia 15 de abril

    Na madrugada de domingo dia 15 de abril de 2018, o céu amanheceu mais cinza, as nuvens densas e até uma garoa molhou os solos paulistas, como o coração de toda comunidade cultural regional e nacional, que por ela e com ela foi incentivada.

    Raquel Trindade, a querida artista plástica, folclorista, terapeuta ocupacional, coreógrafa, poetisa, retorna para aruanda, o céu dos pretos, dos nossos antepassados, dos nossos baobás, das rainhas kambindas e daqueles que em terra cumprem com honra e beleza sua trajetória.

    Filha do poeta e ativista negro Solano Trindade, manteve viva sua origem e arte como fórmula transformadora da cultura negra. Como professora levou os folguedos, os maracatus, as danças populares, as histórias desconhecidas de nossos mitos e lendas, como seu sorriso para o mundo todo.

    Em Campinas, foi fundadora do grupo Urucungos, Puítas e Quijengues que há mais de 30 anos divulga, fomenta e leva a cultura popular para toda a cidade.

    Mas falar dos benfeitos de Raquel Trindade, a grande rainha kambinda, é ser redundante diante de sua grande contribuição. Não faltam fontes, informações e manifestações de sua obra; por isso, aqui, prefiro falar da essência que a presença de Raquel Trindade trouxe a nós todos, artistas, ativistas culturais, praticantes de danças e manifestações tradicionais, religiosos de comunidades de terreiro, poetas, articuladores culturais negros e principalmente, a nós, mulheres pretas que lideramos, atuamos e semeamos novos horizontes.

    Raquel trouxe a força da guerreira preta, que não se curva diante dos desafios e nem ignora as contribuições de todos e todas, que a essa raiz negra, ancestral e plena respeita e luta contra o racismo e pelos direitos iguais para todos.

    Nos ensinou que racismo é um mal, que deve ser enfrentado por todos nós, seres humanos, afinal o racismo não é um problema de pretos, mas sim de humanos.

    Ela nos deu força, foco e esperança, para que a cada dia a nossa diversidade, integridade e diferenças nessa busca por igualdade em condições sociais, acesso às escolas, creches e universidades, por trabalhos, novas oportunidades sejam também uma forma de expressão cultural; e a cultura, um caminho para essa realização.

    A arte de Raquel Trindade não apenas refletiu, influenciou, mas efetivamente transformou vidas. Ela fez valer sua descendência de Trindade. E esse é um dos maiores ensinamentos.

    Nos levantou, nos ergueu e nos fez nos reconhecermos como seres livres, fortes e com qualidades suficientes para enfrentar o mundo com nossa raiz ancestral africana. Ensinou-nos a seguir de cabeça erguida e a concretizar, materializar e fazer.

    Sem jamais se curvar, levou para o mundo sua herança de berço e compartilhou seus saberes; é difícil saber quantos de nós hoje somos, aprendemos e fomos tocados pela presença de Raquel Trindade.

    Na cidade de Embu das Artes, levou o mundo e o mundo ali foi recebido. Nos palcos de sua criação, o Teatro Popular Solano Trindade, muitos jovens, crianças e adultos se tornaram sementes e semeadores dessa herança de Raquel.

    Cada um que teve a oportunidade de por ela ser tocado pela cultura, pelas artes e/ou pela sabedoria de sacerdotisa religiosa certamente leva esse DNA na alma.

    Eu a conheci 15 anos atrás; a primeira vez que a vi fiquei entorpecida pela firmeza no olhar de quem sabe o que diz, porque diz e como dizer. Uma mulher forte, generosa, acolhedora e corajosa.

    Nesse momento em que tantos desafios são colocados diariamente, temos que ser Raquel. A que enfrenta de peito aberto e com inteligência os percalços da vida, a que chora de emoção, alegria e dor sem jamais se envergonhar de nenhuma dessas lágrimas, porque sabe que todas elas fazem parte dos ensinamentos que nos levam à frente.

    A Raquel menina, que ginga, que interpreta e que sonha, o sonho dos poetas que com maestria traduz a alma humana e torna essa alma um conto, um ponto, uma loa, uma musicalidade e mais uma semente de novas possibilidades.

    A mulher que casou-se, descasou-se e casou-se novamente, sem medo de admitir seus desejos e nem seus equívocos aos se permitir com plenitude, seguir. Ir em frente e avante e viver plenamente sua feminilidade, seu instinto de mulher plena que pode e merece ser feliz.

    A rainha kambinda, que é mãe, que gerou três filhos, netos e fez de sua família carnal e extensiva, através de seus ensinamentos, o pilar de novas semeaduras.

    Raquel Trindade de Souza, a rainha kambinda, se foi para aruanda, mas jamais será apagada em nossos corações, em nossas almas, mas principalmente em nossos aprendizados, de guerreiras e guerreiros que fazem, que transformam e que acreditam que a cultura e a arte são transformadoras.

    Obrigada, Raquel. Pela oportunidade de deixar uma trajetória que só nos faz ter a certeza que seguir é necessário, viver bem é preciso e que transformar com coragem depende de cada um de nós.

    Gratidão por ter sido essa mulher preta, essa rainha kambinda, nossa mentora espiritual. Por ter materializado uma vida como artista em tempos em que nossa cultura é desrespeitada, apropriada e sem espaço de atuação.

    Axé, saravá e sua bênção.

    Aruanda festeja sua chegada. E nós seguiremos com seus ensinamentos.

    *Historiadora, Doutora em Urbanismo pela PUC-Campinas tendo estudos voltados para Matriz Africana.  É Conselheira da Comunidade Negra e gestora cultural da Casa de Cultura Fazenda Roseira, mestre da Comunidade Jongo Dito Ribeiro em Campinas, Mãe de Santo Umbandista e consultora especializada em estudos e gestão cultural de matriz africana e patrimônio cultural imaterial.

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