Tentativa de linchamento interrompe peça no centro de São Paulo

    Atores das companhias Mundana e Livre interromperam leitura encenada de Bertolt Brecht para conter agressão; crime não foi registrado pela Polícia Civil

    Atores participam da encenação no Pateo do Collegio, marco zero de São Paulo | Foto: Yghor Boy/Divulgação

    A cena do falso fuzilamento do estivador Galy Gay, da peça “Um homem é um homem”, foi interrompida pelos gritos sem fonema de um rapaz surdo na noite de 30 de junho, no centro da cidade de São Paulo. Poucos minutos antes, na peça do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, o estivador que havia saído para comprar um peixe e se mete em uma confusão com soldados era a vítima de um julgamento falso. A poucos metros dali, em um julgamento apressado e sem direito a defesa, o jovem surdo era condenado e a pena imposta: a morte por linchamento começava a ser aplicada a socos e chutes.

    A diretora teatral Cibele Forjaz, os atores em cena – das companhias Livre e Mundana – e os espectadores interromperam a ficção sem que nada tivesse sido dito entre eles, deixaram a rua entre os dois prédios da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo, transformada em um beco para a encenação, e correram em direção ao Pátio do Colégio, marco zero da capital paulista. Quando chegaram lá, o rapaz, que mal conseguia se defender dos golpes, já sucumbia, mas a agressão continuava. “Jamais imaginei que usaríamos nossos corpos para evitar que um linchamento fosse concluído na nossa frente”, afirma Forjaz, dias depois, no Teatro Oficina, em um intervalo do ensaio de outra peça de Brecht que está encenando.

    Uma rua entre dois prédios antigos do centro virou palco para as companhias | Foto: Yghor Boy/Divulgação

    Apesar do choque com a situação extrema, enfrentar a violência cotidiana com teatro não chega a ser uma novidade para Forjaz, que é professora e pesquisadora em artes cênicas da USP (Universidade de São Paulo). No ano passado, também em parceria com a Mundana, ela levou “Na selva das cidades” para diferentes pontos de São Paulo, entre eles uma favela do Sapopemba (zona leste), a área de transporte de alimentos da Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais do Estado de São Paulo) e a rua do Coliseu, uma pequena área de ocupação na Vila Olímpia (região sudoeste), dentro de uma das regiões mais valorizadas da cidade. Chegaram a ter de conversar com traficantes para conseguir levar o projeto em frente, conviveram com situações de conflito, mas nenhuma havia chegado ao ponto de ter de intervir para evitar uma morte.

    Já desacordado, o rapaz foi carregado no colo por um ator até a entrada do prédio da secretaria. Os demais participantes da peça cercaram os dois para garantir que as agressões parassem. Instantes depois, os agressores haviam sumido. Alguns, entre eles o homem que começou o espancamento com a acusação contra o rapaz, deixaram o local rapidamente. Os demais deixaram o comportamento de turba e retornaram para a rotina, como se não tivessem feito nada de diferente.

    Cercado pelos prédios da Secretaria de Justiça e Cidadania e de outros prédios históricos ocupados pela Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil e Tribunal de Justiça, além da Associação Comercial, com seu reluzente impostômetro, o Pátio do Colégio é um ponto de concentração de famílias de moradores de rua durante a noite, com muitas mulheres e crianças. “A escolha do local da leitura encenada não foi aleatória, queríamos fazer a leitura em um lugar que representasse a Justiça e tivesse também uma concentração de pessoas em situação de rua”, conta Forjaz.

    Parte do cenário usado para leitura dramática realizada no centro de São Paulo | Foto: Yghor Boy/Divulgação

    As crianças foram as primeiras a interagir com as duas companhias desde a montagem do espaço cênico. Muitas delas entraram e saíram diversas vezes do local de encenação. Passada a tentativa de linchamento, crianças e mulheres acompanhavam a situação do rapaz agredido. A conversa desencontrada só aumentava as dúvidas sobre o que de fato motivou o espancamento. “O homem falou que o rapaz passou a mão na namorada dele. E ainda disse que passaria a mão de novo”. “Disse? Mas o rapaz não fala?”. “Parece que o rapaz agrediu uma criança”. “Mas o rapaz ficou por aqui desde antes do início da peça”. “Ele tem dificuldades de se comunicar até na linguagem de sinais”. Falavam muito, sem chegar a nenhuma conclusão.

    Apesar de alertada de que estava acontecendo um linchamento no local, a PM demorou a chegar. A atendente do 190 chegou a perguntar em que endereço ficava esse Pátio do Colégio ou se isso é o nome de uma rua. Foram cerca de 15 minutos para os carros da polícia chegarem. A CDN, empresa privada que faz a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública, afirmou em nota que a demora para o atendimento foi “em torno de 4 minutos”, “dentro do padrão protocolar”. Diz ainda que “os atendentes do Copom (Centro de Operações da Polícia Militar) utilizam ferramentas inteligentes de localização e quem despacha a viatura é o responsável por fazer a orientação da equipe em terra, e não o atendente do 190. A ele, cabe colher o maior número possível de informações, facilitando o trabalho de deslocamento das equipes”.

    Neste intervalo, os funcionários da empresa Albatroz, responsável pela segurança do prédio da secretaria, acompanhavam o caso de longe, com indiferença. Ainda durante o espancamento, perguntei a um deles se eles poderiam chamar a polícia lá de dentro, pois ele deveria ter o contato direto da companhia da região. “Chamem vocês daí”, respondeu. Na terça-feira, o gerente de operações da Albatroz, Ricardo Munhoz, afirmou que os seguranças são orientados a permanecerem no posto nesta situação e devem acionar a polícia. “O caso está no relatório interno da empresa e nossos profissionais informaram que chamaram a PM”, disse.

    Um dos policiais que chegou para atender a ocorrência comentou que o rapaz ferido é conhecido na região como Índio. Ele perguntou se alguém havia chamado o Samu. Alguém respondeu que sim, mas que não tinha o número do protocolo. “Com o número, a gente consegue reforçar o pedido e apressar a chegada do atendimento”, disse. Na segunda-feira, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Saúde afirmou que o Samu não foi acionado para atender nenhuma ocorrência no local. Em seguida, vieram um caminhão e uma perua de resgate do Corpo de Bombeiros. Perguntaram se o rapaz tinha alguém próximo no local ou se portava documentos. Preocupada em ajudar, uma produtora do espetáculo procurou na mochila e na sacola que Índio carregava algum documento. Encontrou só algumas anotações que fazem menção a um contato com a Aldeia Maracanã, do Rio de Janeiro.

    Atores das companhias Mundana e Livre | Foto: Yghor Boy/Divulgação

    O rapaz, que havia começado a noite tentando se comunicar com equipe das companhias e os espectadores, terminou desacordado, colocado numa maca de plástico, com o corpo envolto em uma manta térmica. Ele assistiu a maior parte da peça, de cerca de três horas, sentado na plateia e, algumas vezes, chegou a levantar para tentar ajudar os técnicos e os atores em cena. Foi em direção a seu agressor, depois de ter sido chamado por ele, com sinais. Um bombeiro abriu os olhos da vítima seguidas vezes, para ter certeza de que havia reações vitais. Forjaz insistiu em saber para qual hospital o jovem seria levado e o policial afirmou, após confirmação, que seria para a Santa Casa.

    Na peça de Brecht, Galy Gay é um homem incapaz de dizer “não”. Os soldados o fantasiam com a farda de um colega para encobrir um assalto que haviam cometido. O falso julgamento e a ameaça de fuzilamento só servem para que ele assuma de vez a identidade do soldado Jeraiah Jip e se torne uma máquina de matar. “A peça mostra como um homem comum pode se tornar uma engrenagem do fascismo”, comenta Forjaz. Para ela, o momento do país exige um teatro que saia do isolamento e vá para as ruas, falar direto com as pessoas que estão em situações de exclusão e conflito. “Se a gente não estivesse ali, a cena teria acontecido com um desfecho possivelmente mais trágico e nenhum de nós dentro de nossa bolha saberia dessa história”, diz. O rapaz recebeu alta, segundo a Santa Casa, na segunda-feira. O hospital informou que não poderia dar mais detalhes sobre o caso em respeito ao sigilo médico profissional. Quatro dias depois da tentativa de linchamento, a Secretaria de Segurança Pública afirmou, na mesma nota, que “não foi encontrado registro da ocorrência na Polícia Civil”, que seria responsável pela investigação do crime.

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