Reconhecido por foto, Walisson está preso por roubo que não cometeu, diz família

    Jovem cumpria prisão domiciliar após ser condenado por roubo em 2015 e foi acusado de roubar um carro em outubro de 2020. Família garante que ele estava em casa nesse dia; criminalista aponta reconhecimento irregular

    Walisson foi reconhecido por foto, mas estava em casa no horário do crime, aponta família | Foto: Arquivo Ponte

    O pizzaiolo Walisson Santos de Freitas, 27 anos, estava procurando emprego em outubro de 2020, em meio à crise sanitária impulsionada pela pandemia do coronavírus. Muito família e uma pessoa de bom coração, que ajudava em casa no que precisava e cuidava muito bem da filha de 6 anos, como define sua irmã mais velha, a podóloga Chirlei Santos de Freitas, 32 anos, ele foi preso injustamente, acusado de um roubo no oitavo dia daquele mês na rua Corinto, bairro Serra, em Belo Horizonte, Minas Gerais.

    Na época, Walisson estava no regime semiaberto por um roubo de 2015 e, por conta da pandemia, sua prisão foi convertida em domiciliar, mas família aponta que ele estava lutando para mudar de vida. De acordo com a família do jovem, no dia do crime, Walisson esteve no Horto, bairro onde todos os meses assina os documentos conforme havia se comprometido com a Justiça para poder permanecer fora da prisão. De lá, passou em uma marmoraria a pedido da mãe, para encomendar uma bancada. Por volta das 16h chegou em casa. No fim do dia, passeou com a filha em um praça e depois foi direto para casa. Na hora do crime, às 19h50, ele estava em casa.

    Comprovante do horário que Walisson chegou em casa | Foto: Arquivo Ponte

    De acordo com a denúncia da promotora Giseli Silveira Penteado, da 12ª Promotoria de Justiça Criminal do Ministério Público de Minas Gerais, dois suspeitos roubaram um carro Honda Fit, um celular, um notebook, um arranjo de flores, um molho de chaves, quatro HDs e vários pratos de duas vítimas na rua Corinto. A primeira vítima foi ao endereço buscar um vaso de flores com a segunda vítima.

    Walisson estaria com a arma de fogo e teria abordado a segunda vítima, exigindo a entrega do aparelho celular, mas a vítima disse que estava sem o aparelho, apenas com o vaso. Walisson teria dito pra ela se afastar ou a mataria. Depois Walisson teria ido para a primeira vítima, que estava no carro, enquanto R., o outro suspeito, teria ficado fazendo cobertura do roubo. Walisson assumiu a direção do carro e saiu do local junto de R., no carro.

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    Walisson foi preso em 29 de outubro, por volta das 11h, dentro de um supermercado. Segundo a versão dos policiais militares, ele e R. estavam no veículo roubado, com uma placa clonada, na avenida dos Andradas, 3470. Eles teriam desobedeceram a ordem de parada dos PMs. R. estaria dirigindo o carro e Walisson no banco do carona. Depois de fugir com o carro, os suspeitos teriam corrido a pé.

    Ainda de acordo com a versão da polícia, Walisson e R. tentaram entrar em um ônibus e acabaram entrando em um supermercado. No veículo os PMs encontraram duas placas de carros, quatro chaves de fenda e um arma de brinquedo. R. estaria com a chave do carro roubado no momento da prisão. Durante a abordagem, R. teria chamado os PMs de “seus bostas”, “vocês são uns lixos” e “vou foder vocês”.

    Nove viaturas, com policiais militares PMs da 123ª e 128ª Companhia do 22º Batalhão da PM de Minas Gerais, foram designadas para essa prisão, que foi registrada na 4ª Delegacia de Polícia Civil Sul, pela delegada Monica Perpetua Carlos. No registro do boletim de ocorrências, constam os nomes do sargento Elias Nelson Rogger da S. Rodrigues, do 3º Pelotão da 123ª Companhia do 22º Batalhão da PM de Minas Gerais, e do cabo Paulo Roberto Rodrigues de Lima, do 1º Pelotão da 123ª Companhia do 22º Batalhão da PM de Minas Gerais.

    Segundo consta nos autos, em 31 de outubro de 2020, a juíza Bárbara Heliodora Quaresma Bomfim, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, solicitou a prisão preventiva de Walisson. Em 27 de novembro de 2020, na Delegacia Especializada de Investigação de Furto e Roubo de Veículos, de acordo com as folhas do auto de reconhecimento assinado pelo delegado Fernando Andrade Alvarenga Santos, o reconhecimento foi feito em “arquivo de fotografias” após descrição das vítimas.

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    O que a folha de reconhecimento não diz é se o procedimento cumpriu o que recomenda o artigo 226 do Código de Processo Penal, que diz que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.

    Em 2 de dezembro daquele ano, o delegado encerrou a investigação, apontando que havia “autoria e materialidade” de que R. e Walisson tinham praticado o roubo. Em 16 de dezembro o juiz José Xavier Magalhães Brandão recebeu a denúncia contra eles. Walisson está preso desde 18 de novembro de 2020 no Presídio de São Joaquim de Bicas II.

    Para Chirlei, irmã de Walisson, o reconhecimento, da forma como foi feito, é muito “indeciso”. “Não acho justo uma pessoa fazer um reconhecimento por foto, relatar que viu o suspeito, e depois se contradizer falando que o suspeito estava de máscara, que é mais difícil ainda este tipo de reconhecimento”.

    A podóloga aponta que um dos motivos para a prisão de Walisson: “Falar em racismo é um pouco delicado, mas acredito tem a ver, principalmente por ele ser tatuado. Muitos julgam ele por isso”, argumenta. “Estamos todos tristes com a situação, principalmente da forma que estão julgando, e até hoje nada ser feito”.

    Argumentos da defesa

    Para Cássia Pinto Coelho Dias, advogada Walisson, o processo contra o jovem deveria ser extinto. “O flagrante não foi correto, pois eles não foram localizados especificamente com o produto do suposto crime e é embasado exclusivamente no depoimento policial, já que eles foram localizados dentro de um supermercado e, segundo os policias, estavam no interior do veículo e houve perseguição”, argumenta.

    O mais grave do caso, aponta Cássia, é o reconhecimento por foto. “No inquérito, a vítima fala que R. é vizinho do seu estabelecimento comercial e que viu a família saindo para a delegacia no dia do flagrante”, conta.

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    “Na delegacia, no dia do roubo, as vítimas informaram que era impossível reconhecer os assaltantes, pois estavam de máscara, era noite e foram ameaçados para não olhar. Esse caso é uma incógnita, fico pensando como a pessoa não reconhece o vizinho por meses após o roubo, mas é capaz de reconhecê-lo por acervo fotográfico”.

    No máximo, argumenta Cássia, Walisson poderia ser processado por receptação. “Inclusive foi assim que o delegado lavrou o flagrante, e instituiu fiança, mas depois do inquérito a denúncia foi de roubo. A receptação só poderia ser em nome do motorista, pois não há nenhum indício de receptação por parte do meu cliente, mesmo com base nas alegações policiais”.

    Fragilidades do processo

    A pedido da Ponte, a advogada criminalista Debora Roque, integrante da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, analisou o processo de prisão de Walisson. A especialista aponta que “vivemos em um Estado Democrático de Direito, onde toda prisão deve ser bem fundamentada”, mas no processo de Walisson não foi dessa forma que tudo aconteceu.

    “Nesse processo em questão podemos citar dois fatos de bastante relevância e que é muito comum no sistema judiciário: o reconhecimento precário realizado por testemunhas e vítimas. No caso, consta no inquérito que o reconhecimento foi realizado por foto, onde uma das vítimas reconheceu os acusados, todavia, tal reconhecimento não deveria ter sido aceito pois tal procedimento não está amparado na legislação. O código de processo penal descreve a forma como os reconhecimentos devem acontecer, e o reconhecimento por foto não consta por ser duvidoso”, argumenta Roque.

    Outra questão, aponta a especialista, é a versão apresentada pelos polícias. “É notório que a palavra do policial possui grande relevância, enquanto meio de prova no processo. Em muitos processos podemos verificar que condenações ocorrem apenas com base versão policial”.

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    “As provas para fundamentar as prisões deveriam ser robustas e que não deixassem dúvidas de que pessoas inocentes possam ser punidas por fatos que não comentaram. Lembrando que a prisão preventiva deveria ser utilizada como exceção por ser considerada medida extrema, sendo assim, a lei apresenta medidas cautelares diversas, mas que são pouco usadas, o que também acaba por enfraquecer e até violar o Estado Democrático de Direito”.

    Roque destaca que a prisão se deu em local bastante movimentado e com muitos comércios, e, por isso, provavelmente, câmeras poderiam reforçar ou não a versão policial. “Mas sabemos que as investigações são precárias, e o judiciário reforçar ao condenar com provas frágeis. O próprio Ministério Público poderia determinar essas diligências, mas não o faz”.

    Outro lado

    A reportagem procurou a Sejusp, a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e aguarda retorno. Também solicitamos entrevista com os policiais, militares e civis, envolvidos no caso, assim como com os promotores e juízes.

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