Para STJ, reconhecimento por foto é pouco para condenar alguém

    Especialistas acreditam que decisão abre precedentes para que advogados consigam reverter casos de prisões baseadas nesse tipo de prova

    Ilustração: Junião

    Reconhecimento por foto não é suficiente para uma condenação, decidiu o ministro relator Rogerio Schietti Cruz, da 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça, nesta terça-feira (27/10) ao conceder habeas corpus para homem condenado por roubo em Tubarão, em Santa Catarina.

    Condenado a cinco anos e quatro meses de prisão, o homem era 25 centímetros menor do que a vítima narrou na delegacia, mas um reconhecimento por foto bastou para que ele fosse condenado. A Defensoria Pública de Santa Catarina, que cuidou da defesa do réu, acionou o STJ para pedir o habeas corpus. A ONG Innocence Project Brasil foi amicus curiae (amigo da corte, em latim, ou seja, convidado por uma das partes a emitir sua opinião) no processo.

    Na decisão, o ministro Schietti destacou onze pontos durante a argumentação e reforçou quatro pontos na conclusão antes de absolver o réu. Logo de cara, o relator citou que o reconhecimento de pessoa, seja presencial ou por fotografia, só é apto quando segue as formalidades do artigo 226 do Código de Processo Penal e quando tem outras provas colhidas durante a fase judicial.

    O ministro também citou estudos da psicologia moderna, que apontam como são comuns falhas e equívocos da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. “Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis”, argumentou na decisão.

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    Na sequência, Schietti criticou a forma como o artigo 226 é aplicado, como “mera recomendação”. No ponto seguinte, o ministro pontuou que o reconhecimento de pessoa por foto é ainda mais problemático, porque tais fotos são “extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela autoridade policial”.

    A partir do quinto ponto, o ministro relator nomeou onde as falhas acontecem. Para ele, é urgente que os Tribunais adotem um novo rumo de compreensão para as “consequências da atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal de pessoas. Não se pode mais referendar a jurisprudência que afirma se tratar de mera recomendação do legislador, o que acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças”, apontou.

    As polícias judiciárias, civil e federal, também foram apontadas por Schietti, cobrando que elas “realizem sua função investigativa comprometidas com o absoluto respeito às formalidades desse meio de prova”. Depois, o ministro exigiu que o Ministério Público cumprisse seu “papel de fiscalizar a correta aplicação da lei penal, por ser órgão de controle externo da atividade policial e por sua ínsita função de custos legis, que deflui do desenho constitucional de suas missões”, conforme consta na Constituição Federal.

    Na contextualização do voto, o ministro Schietti trouxe elementos e estudos da seletividade do sistema penal, e citações sobre racismo estrutural. Para Janaina Matida, professora de Direito da Universidade Alberto Hurtado no Chile, doutora pela Universitat de Girona, na Espanha, e consultora do projeto Prova sob Suspeita, do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), a decisão é uma grande conquista.

    “Enxergo que estamos construindo bases para redução da condenação de inocentes, porque a forma como o reconhecimento de pessoa é feita no Brasil certamente contribui para a condenação de inocentes. A decisão de hoje é uma verdadeira conquista, uma chance de a gente construir um sistema de justiça menos injusto, com menos inocentes atrás das grades”, comemora.

    “A gente sequer fica sabendo desses números porque faz parte do tipo de erro judiciário produzido. A forma como é produzido, até o julgamento de hoje, é uma forma que aumenta e eleva o risco de condenação de pessoas que não mereciam ter a sua vida mudada de forma tão violenta e de suas famílias também, porque quando alguém fica preso de forma injusta não é só a vida dessa pessoa que é destruída”, aponta Matida.

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    Hugo Leonardo, presidente do IDDD, também avalia como positiva a decisão. “É uma decisão muito importante tendo em vista o volume de casos provenientes de elementos absolutamente frágeis com base em reconhecimentos frágeis elaborados pela polícia. Esperamos que essa decisão vingue, no sentido de trazer o artigo 226 do CPP como primeiro pressuposto. O que tem acontecido é utilizar ‘se possível’, descumpre-se a lei de forma automatizada”.

    Esse “se possível”, explica a professora Janaina Matida, que consta no artigo 226 do CPP, era uma interpretação errada. “Até então, o STJ entendia que as formalidades do 226 eram formalidades meramente recomendatórias, eram conselhos. Agora essa decisão mostra que essa interpretação anterior era um equívoco, esse ‘se possível’ não deve ser entendido, é preciso entender que as formalidades do 226 são o mínimo para que se possa utilizar a prova de reconhecimento”.

    A forma como o reconhecimento por fotografia acontece nas delegacias, continua Matida, induz as vítimas ao erro. “O policial pergunta pedindo confirmação, ele pergunta com o dedo em cima de alguma dessas fotografias para dizer: ‘Você tem certeza que não é esse? Porque ele foi pego na sua área, no seu bairro, fazendo exatamente o que você diz'”.

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    Por isso, ela crava: o álbum de fotografia deve ser eliminado. “Outra coisa que precisa ser eliminada é a vítima ou a testemunha receber uma fotografia por WhatsApp. A vítima recebe a foto e perguntam se não é a pessoa. A forma como a coisa é colocada para a vítima conduz um determinado resultado. A vítima tá ali confiando que o investigador já descobriu quem é, só tá precisando de uma confirmação meramente formal. Mas na realidade não é isso”, explica Matida.

    A professora também comemora a importância do voto do ministro Schietti destacar o papel das autoridades policiais e do Ministério Público nas condenações baseadas unicamente com reconhecimento por foto. “O MP não é só acusador, ele também é fiscal da lei. O MP deve fiscalizar quando a lei é cumprida e descumprida”.

    “Nesse sentido o ministro distribui a responsabilidade dos atores jurídicos. Ele diz como é importante o zelo sobre a qualidade das provas produzidas nesses processos. Aí ele fala da importância das Polícias Judiciárias [civil e federal], na realização da sua função investigativa, serem absolutamente comprometidas com as formalidades do reconhecimento”, argumenta Matida.

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    Hugo argumenta que, a partir de agora, os advogados “podem e devem” usar essa decisão do STJ como paradigma para “utilização de critérios mais vigorosos para qualquer medida inclusiva por parte do Estado”. “Eles podem e devem exigir que esse seja o parâmetro mínimo, porque há elementos que mostram que são provas frágeis e que necessariamente devem ser confirmadas por outros elementos”, explica. 

    Fragilidade de provas testemunhais e projeto Provas Sob Suspeita

    A professora Janaina Matida aponta que, para além da prova de reconhecimento, é preciso falar de provas testemunhais. “No direito, temos uma diferença técnica de prova de reconhecimento e prova testemunhal. A prova testemunhal é uma declaração oral que traz o relato dessa ocorrência, por isso é algo importante”.

    “Mas se a gente traz a prova testemunhal da mesma pessoa que reconheceu o réu, na realidade estamos nos apoiando na memória de uma única pessoa. Se a memória dessa única pessoa for falha, a gente vai cometer uma injustiça. Vamos abrir espaço para o que chamamos de falso positivo para condenar um inocente”, aponta. 

    Uma alternativa para essa prova, exemplifica a professora, são elementos audiovisuais e o uso das tecnologias. “Podemos pensar em registros audiovisuais, câmeras de segurança da área, em todos os recursos que a tecnologia nos fornece para reconstruir, seja pelas mensagens de WhatsApp, por e-mail ou GPS. Tem muitas coisas que podemos usar em uma investigação para que ela seja bem-feita. Isso não pode ser esquecido”.

    “O reconhecimento é a rainha de processos por crimes patrimoniais, como roubo, que acontecem escorados no reconhecimento de pessoa e é algo que precisa ser visto criticamente. O reconhecimento de pessoa acaba servindo para dar espaço para algo inadmissível, que é o racismo estrutural”, completa Matida.

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    Hugo Leonardo, do IDDD, cita o projeto Prova Sob Suspeita que busca discutir exatamente os pontos citados na decisão. “No projeto, problematizamos não só a forma como os reconhecimentos são feitos, tanto fotográficos como presenciais, como isso pode e deve ser melhorado, quais parâmetros devem ser usados na prática policial e na prática judiciária”.

    “Reconhecimentos esses chancelados pela Justiça, que acarretam erros e trazem uma série de consequências gravíssimas para as pessoas que sofrem processos de acusação porque são elementos que mostram uma ilegalidade quase irreparável. Pessoas estão sendo condenadas exclusivamente com base em reconhecimentos malfeitos na polícia a chancelados em juízo”, completa Hugo.

    Além dos reconhecimentos, o Prova Sob Suspeita também busca discutir as provas testemunhais. “Ter o reconhecimento e o testemunho da vítima como segunda prova é uma inverdade, porque é óbvio que o depoimento que essa mesma vítima vai confirmar o que foi dito no auto de reconhecimento”.

    “A pessoa que foi exposta ao reconhecimento e a pessoa que foi exposta tiveram um contato visual, que fica gravado na memória, a ponto de nunca mais saber se está reconhecendo a pessoa do dia do crime ou a pessoa que foi exposta como sendo o autor do crime na delegacia”.

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    Isso sem falar de depoimentos de policias, afirma Hugo. “Juízes têm chancelados condenações única e exclusivamente com base na palavra dos policiais. Isso é bastante problemático porque muitas vezes esses policiais que são ouvidos são os policiais que participaram da ocorrência”.

    “São os mesmos policiais que protagonizaram aquela ação, então evidentemente eles não são testemunhas de nada, estão ali para narrar um ato feito por eles, não têm nenhum distanciamento para serem tratados como testemunhas”.

    Com base nessas falhas, continua Hugo, o projeto quer discutir os principais pontos que tem levado milhares de pessoas ao banco dos réus com condenações injustas, “Todos nós sabemos que o direito penal recai sobre o mesmo público de sempre: jovens negros e pobres. Há um problema a ser resolvido na justiça criminal brasileira e esse problema é oriundo de provas decorrentes da memória”.

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