‘Bonde do Moacir’: policiais civis aterrorizam, agridem e matam na região de Itu (SP)

Investigadores da polícia civil agem como xerifes e postam conteúdos nas redes sociais. Dois foram afastados preventivamente nesta semana

Era início da noite do dia 16 de maio, e Rian Gustavo Alves de Campos, 23, estava com pressa. Ele passou rapidamente na casa de sua mãe, e nem chegou a tirar o capacete. Entrou, sentou no sofá, conversou brevemente e saiu novamente com sua moto. Ele estava indo para o Conjunto Habitacional Vila Lucinda, conhecido apenas como CDHU (sigla da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), na periferia de Itu, cidade do interior paulista. Foi a última vez que sua mãe o viu com vida.

Duas horas depois, a notícia já circulava na cidade: o ‘bonde do Moacir’, como uma pessoa chamou o grupo à Ponte, havia matado duas pessoas no CDHU. Rian era um deles. Dentro de uma mata, Rian foi morto, sentado em um sofá, com oito tiros no tronco. Seu amigo, Antony Juan Nascimento Lisboa, também foi baleado e morreu no local. Fotos foram tiradas dos seus corpos sem vida.

Envolvido com o tráfico local, Rian estaria sendo monitorado por Moacir Cova, Bruno Bolpete Ceccolini e Cirineu Yasuda Alves de Lima, investigadores da Polícia Civil que atuam na Delegacia de Polícia Central de Itu. É o que conta o boletim de ocorrência lavrado pelos policiais após a morte. Eles saberiam que o jovem usava um espaço na mata próximo ao conjunto habitacional para fazer o fechamento do dia, e por isso teriam se escondido na mata e aguardado a sua chegada. O boletim de ocorrência diz também que Rian reagiu à ordem de parada e disparou duas vezes contra os policiais civis com um revólver Taurus calibre 32, arma que foi apresentada na delegacia. O depoimento policial no boletim de ocorrência não explica porque duas pessoas foram mortas se apenas uma supostamente estava armada.

Os jovens foram arrastados do local da morte, no meio da mata, para a rua, onde uma ambulância os levou, já sem vida, à Santa Casa de Itu. Antony teve seu braço quebrado e tinha terra em sua boca e nariz. No dia seguinte, familiares das vítimas voltaram ao local da morte e descobriram que o sofá onde Rian morreu havia sido queimado.

Não foram feitos exames residuográficos no corpo de Rian ou de seu amigo Antony para constatar se os jovens de fato dispararam contra os policiais. Pessoas ouvidas pela Ponte, que não serão identificadas por questões de segurança, afirmam que Rian não andava armado, e que o revólver apresentado teria sido plantado por Moacir e seu bonde. Não seria a primeira vez.

Moacir é famoso na cidade. Investigador da polícia civil, e carcereiro antes disso, ele anda pelos bairros periféricos com ar de xerife e afirma estar “cuidando das ruas e evitando que as crianças tenham acesso às drogas”. Em 2020, tentou usar a fama para se lançar a um cargo político, concorrendo a vereador pelo Partido Social Cristão (PSC). Não conseguiu se eleger, mas abocanhou uma suplência, e em alguns momentos chegou até a assumir uma cadeira na Câmara do município. Em 2022 tentou novamente, dessa vez buscando uma vaga para deputado estadual pelo PSC – novamente conseguiu uma suplência. Não é por sua representação política que ele é conhecido, porém, mas por suas ações “policiais”.

Da esq. para a dir.; Moacir Cova, Cirineu Yasuda (Japonês), Bruno Ceccolini (K9), e Thiago Santos (Carioca) | Fotos: Reprodução / Instagram

Em 2023, a Ponte contou a história de um adolescente de Itu detido e internado por suposto crime análogo ao tráfico de drogas. Sua mãe, Gislaine Marcolino Dalbello, 50, contou à reportagem que ele havia sido forjado, com drogas sendo apresentadas como suas. Ele passou nove meses internado em 2022, e mais sete em 2023, quando foi novamente apreendido, pelos mesmos policiais. Publicamos outra reportagem quando, em 2024, ele foi novamente internado. Nos três casos, foram Moacir e seu bonde os responsáveis pela detenção do adolescente, que segue internado ainda hoje.

Como ele, familiares de muitos outros jovens relatam prisões injustas, agressões, invasões de domicílio e mortes. A Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio elaborou um dossiê com casos em que Moacir e seu bonde – Bruno Ceccolini, o K9, Cirineu Yasuda, o Japonês, e Thiago Santos, o Carioca – tocam o terror em Itu. O documento foi apresentado à Corregedoria-Geral da Polícia Civil de São Paulo na última terça-feira (11/6), quando um grupo de familiares de jovens presos ou mortos de Itu foi até a sede do órgão se manifestar por justiça.

Moacir e seu bonde sabiam disso. Em uma página de Facebook que divulga informações sobre Itu, uma imagem vazada do grupo de WhatsApp mantido por Moacir mostra o policial civil dizendo que “pessoas do CDHU, financiadas pelo crime e alguns pretendentes a cargos políticos, foram até São Paulo fazer manifestação contra a polícia”.

Mensagem enviada por Moacir em grupo de WhatsApp após manifestação de moradores de Itu (SP) na Corregedoria Geral da Polícia Civil, em São Paulo | Imagem: Reprodução

Na reunião marcada pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, a organização relatou à corregedora-chefe da Polícia Civil o medo de familiares de permanecer na região após a prisão ou a morte de seus parentes, além de ameaças feitas pelo bonde. O pai de Rian, é relatado, foi ameaçado por Moacir na noite da morte de seu filho, dentro da delegacia. “Se você não ficar quieto, vai ser o próximo”, Moacir teria dito. No dia seguinte, foi relatado à Ponte, o investigador ainda foi até o velório do jovem morto por sua gangue.

Bruno Ceccolini, o K9, parceiro de Moacir, também já passou ao menos uma vez em frente à casa dos pais de Rian e, para eles, fez um coraçãozinho com as mãos, relatam pessoas próximas aos familiares.

Para a corregedora-geral da Polícia Civil de São Paulo, o medo não é descabido. Em reunião com os familiares das vítimas, ela pediu que todos ficassem atentos e avisassem se qualquer coisa acontecesse. Moacir e seu bonde, ela avisou, já eram investigados.

Ao Superior Tribunal Eleitoral, Moacir precisou apresentar documentos judiciais para validar suas candidaturas em 2020 e 2022. Ao menos uma dúzia de processos judiciais foram anexados à ficha cadastral do candidato. Ele já foi réu, investigado ou averiguado por, ao menos crimes como: crime contra a administração da justiça; crimes de abuso de autoridade; crimes de calúnia, injúria e difamação; lesão corporal; e fuga de presos – esse, quando ainda era carcereiro. Em todos eles, ou o processo foi arquivado ou Moacir foi absolvido. Apenas em um deles, de 2014, o policial civil foi condenado à uma pena de 12 dias em regime aberto.

Mesmo com essa ficha corrida, Moacir e seu bonde são constantemente congratulados pelo poder público. Em 2015, Moacir recebeu do município de Itu a medalha “Berço da República”, congratulação pelos serviços prestados no ano. A mesma honraria foi concedida a Bruno Bolpete Ceccolini, o K9, em 2018, e a Cirineu Yasuda Alves de Lima, o Japonês, em 2022. Os três também foram homenageados em abril de 2024 por um requerimento de congratulações feito pelo deputado estadual de São Paulo, Agente Federal Danilo Balas (PL), por terem, segundo o parlamentar, alcançado “resultados expressivos” em 2023.

O único do bonde a não ser homenageado é Thiago Santos, o Carioca. Apesar de andar com os policiais, aparecer em fotos de operação e ser reconhecido, até pela delegada titular da Delegacia Central de Itu, como um dos “bad boys”, Carioca não é membro da polícia – mas é membro do bonde do Moacir, na condição de “ganso”.

‘Parabéns, Bad Boys’

Horas após a morte de Rian, Bruno Ceccolini fez uma postagem nos stories de seu perfil no Instagram, onde acumula mais de 13 mil seguidores. “A morte sorriu para mim e para o Moacir. Nós, sorrimos de volta. 2 CPFs cancelados”, ele comemorou, marcando o amigo.

Story publicado por Bruno Bolpete Ceccolini, o K9, após morte de Rian Gustavo Alves de Campos e Antony Juan Nascimento Lisboa | Imagem: Reprodução

A publicação não é um caso isolado. Naquele dia, já era a sexta postagem de Bruno, que tem perfil verificado, que usa uma foto de perfil com uniforme da Polícia Civil e cita o cargo e a instituição na descrição. Seu perfil é fechado, o que não permite que pessoas não identificadas possam ver o que é postado.

Foi nessa conta que Bruno fez um vídeo, logo após a morte de Rian e Antony, dizendo que “mãe de bandido deveria chorar”. O conteúdo foi repostado por Moacir em seu Facebook, com os dizeres “eles ou nós”.

Assim como Bruno, todo o bonde do Moacir produz sistematicamente conteúdos sobre a rotina “policial” para as redes sociais. São vídeos mostrando operações e apreensões, expondo pessoas detidas ou suspeitos, inclusive crianças e adolescentes, pedindo compartilhamento de imagens ou informações, mostrando agressões e fazendo chacota com pessoas presas ou suas famílias.

Era esse o teor da postagem que Cirineu Yasuda, o Japonês, fez no dia seguinte à morte de Rian. O investigador juntou imagens de drogas, dinheiro e uma arma, postada por um perfil que não pertencia a Rian e cuja pessoa que aparece não é o jovem, e fez um vídeo, com música animada, em que uma pessoa vestida como o personagem da série cinematográfica Pânico, aparece e diz “você está muito amostradinho, deixa eu carimbar sua passagem”. Na legenda, ele usou apenas emojis que representam o diabo. Moacir e Bruno Ceccolini foram marcados na publicação.

Entre seus vídeos, Cirineu produz diários de bordo, como influenciadores costumam fazer. Em 27 de março, o policial publicou um em que conta um resumo dos seus últimos dias: quantas prisões foram feitas, quanta droga apreendida, por onde andou, quem estava com ele – quase como uma prestação pública de contas. O vídeo também expõe uma pessoa. A publicação foi comentada por Giuliano Roberto Marcon, investigador da polícia civil chefe da seccional de Sorocaba, e acusado pelo Ministério Público de São Paulo de extorsão, falsificação de documentos e formação de quadrilha em 2010. “A Polícia Civil não para”, ele comentou, com um emoji de caveira.

Nas legendas de seus vídeos, Cirineu costuma dizer quantas pessoas foram presas e fazer piadas. O policial usa símbolos de mais ou menos para dizer quantas pessoas saíram das ruas, e emojis como diabo, caveira, viaturas de polícia e palhaço, que é também o que costuma usar para cobrir o rosto de pessoas que expõe. Seus vídeos costumam terminar dando enfoque ao brasão da polícia civil, apesar do policial ressaltar em sua biografia que aquela é uma página “sem vínculo institucional”.

O Japonês também publica as iniciais de pessoas que foram presas ou mortas. Ele fez isso em 12 de setembro de 2023, quando postou um vídeo com apreensões dizendo que duas pessoas foram presas e outras duas, que ele registrou como “D.B.” e “M.”, não ficaram para contar a história. A legenda termina com risadas. A publicação foi elogiada por sua chefe “top demais da conta”, escreveu Marcia Pereira Cruz, delegada titular da Delegacia de Polícia Central de Itu. Os comentários da chefe estão presentes também em outras postagens, sempre com aplausos ou incentivos. “Parabéns, Bad Boys”, ela comentou em um dos vídeos de Cirineu. Em outro, deu risada.

Em uma das publicações, a delegada titular chegou a ser marcada na foto. Junto dela, foram marcados o chefe da Seccional de Sorocaba, Giuliano Roberto Marcon, Moacir e Thiago Santos, o Carioca, que não é policial. “Orgulho de vocês, Bad Boys”, ela comentou, parabenizando o bonde. “Mais um pra conta”.

Policiais civis do estado de São Paulo são proibidos, por portarias assinadas em agosto de 2023 pelo delegado-geral Artur Dian de, entre outras coisas: usar “símbolos, armas ou equipamentos oficiais para auferir vantagens comerciais, financeiras ou outras indevidas”; usar “elementos que indiquem que o perfil pessoal é oficial da corporação”; “manifestar-se de maneira que sua opinião pareça ser a da instituição”; “publicar ou compartilhar conteúdos falsos, intolerantes, discriminatórios, preconceituosos ou atentatórios contra qualquer valor constitucional ou em desfavor da privacidade ou dignidade de pessoa implicada em investigação”; e publicar ou compartilhar imagem de operação policial, “salvo se autorizado pela sua hierarquia ou após divulgação da mesma pelo sítio ou perfil oficial da Secretaria da Segurança Pública ou da Polícia Civil”. O bonde do Moacir completa todos os itens.

Para Desirée Azevedo, doutora em antropologia social e pesquisadora do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal Paulista (Caaf/Unifesp), os perfis no Instagram são “a espetacularização da ação policial. De um determinado tipo de ação policial, atravessada por questões raciais e de classe”. “É evidente que há quebra de regras internas da corporação e de regras disciplinares. Também há quebras de regras de sigilo do inquérito policial, das investigações, das ações”, a pesquisadora analisa. “Isso além da conduta de fazer graça e de externalizar juízo de valor, o que não é papel da polícia.”

Moacir tem adotado outro tom em suas redes sociais. Pré-candidato à vereança de Itu em 2024, o policial tem usado seu perfil no Instagram, em que se define como “criador de vídeo”, para compartilhar os convites recebidos para entrevistas, sua participação nelas, seus posicionamentos políticos, momentos em que ele está tocando violão, eventos que participa e lojas que recomenda – sem informar se foi pago ou não pela divulgação. O investigador também tem focado nos aspectos positivos do seu trabalho, mostrando resgates de animais, divulgando palestras em escolas – expondo imagens de alunos jovens – e compartilhando imagens de crianças que visitam a sede da Polícia Civil no estado.

O investigador usou as redes para contar que, em fevereiro, foi visitar Guilherme Derrite, secretário de segurança pública de São Paulo, sem especificar o que foi conversado na reunião. No fim de 2023, o policial civil também postou uma foto em que está sentado em uma sala com o ex-presidente, Jair Bolsonaro.

Trecho de vídeo em que Moacir Cova divulga seu encontro com o secretario de segurança pública, Guilherme Derrite | Imagem: Reprodução
Foto de Moacir Cova com Jair Bolsonaro | Imagem: Reprodução

Três dias após a manifestação na corregedoria geral da polícia civil, Moacir Cova e Bruno Bolpete Ceccolini foram afastados preventivamente de suas atividades. O despacho, assinado por Arthur Dian, delegado geral da Polícia Civil paulista, foi publicado no Diário Oficial desta sexta-feira (14/6). Cirineu Yasuda Alves de Lima, o Japonês, segue em atividade. Os dois bad boys afastados ficarão fora das ruas por 180 dias. Seus salários não serão afetados.

O que dizem as autoridades

Procuramos a Corregedoria da Polícia Civil com perguntas sobre o que motivou o afastamento preventivo dos investigadores e a legalidade das suas publicações nas redes sociais, mas não houve retorno até a publicação deste texto.

Em resposta, a Secretaria de Segurança Pública enviou uma nota dizendo que:

A Polícia Civil informa que os policiais mencionados foram afastados com fundamento no artigo 86, inciso I, da Lei Complementar nº 207/1979, conforme publicado no Diário Oficial do Estado (DOE). Apurações na esfera administrativa são conduzidas contra os agentes e detalhes serão preservados diante do sigilo imposto pela Lei Orgânica da Instituição. Cabe destacar que todos os policiais civis de São Paulo são instruídos a atuarem dentro da lei e qualquer irregularidade é rigorosamente investigada pela Corregedoria a fim de que medidas cabíveis sejam tomadas.

Também buscamos o Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp) do MP-SP, mas não tivemos retorno.

Esta matéria foi atualizada em 14/06, às 21h07, para incluir nota da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

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