10 anos dos Crimes de Maio

A década em que a vingança substituiu a justiça e a democracia

Texto: André Caramante, Bruno Paes Manso, Fausto Salvadori e Luis Adorno | Foto: André Porto/Colaborador | Webdesign e arte: Antonio Junião

Viatura da PM atacada por criminosos na ponte dos Remedios. Um policial morreu. Em 12 de maio de 2006 | Foto: Andre Porto/ especial pata Ponte Jornalismo
Bruno Paes Manso / Ponte Jornalismo

A impunidade e o descaso das autoridades dez anos depois dos Crimes de Maio de 2006 contribuiram para produzir novos assassinatos e tragédias em bairros mais pobres do Brasil.

A vingança praticada por policiais em substituição à Justiça se repetiu ao longo desta década em bairros pobres da cidade, como Jardim São Luís, Jardim Rosana, Parelheiros, Sapopemba, na Metrópole e no Interior do Estado, em cidades como Guarulhos, Carapicuíba, Osasco e Campinas, migrando para outros estados brasileiros, como Paraná, Pará e Amazonas.

As vítimas foram assassinadas por morarem em bairros próximo aos locais onde os policiais foram atingidos, repetindo a solução aplicada em 2006. Seguem abaixo 15 casos de vingança que ocorreram ao longo desta década. São casos que revelam uma corporação que se sente vulnerável diante da ameaça de crime e que não parece acreditar na Justiça e nas instituições do Estado. O drama acaba sobrando para moradores indefesos de bairros pobres. Os casos de 2012 foram descritos nesta reportagem e em artigo de pesquisadoras publicados na Revista Brasileira de Segurança Pública.

Há dez anos, no dia 12 de maio, a transferência 765 presos para a Penitenciária II de Presidente Venceslau à véspera do Dia das Mães produziu diversos ataques praticados por criminosos ligados ao Primeiro Comando da Capital. Os atentados causaram a morte de 59 agentes públicos, entre policiais e agentes penitenciários. A resposta da polícia veio nos dias que se seguiram. Entre o dia 12 e o dia 21 de maio, 505 civis morreram por disparos de arma de fogo – 118 pessoas morreram em supostos confronto com a polícia, outros 138 morreram em execuções sumárias e 206 mortes ocorreram em circunstâncias desconhecidas. Em apenas dois casos envolvendo a morte de civis, houve punição para os assassinos, que eram policiais.

Entre inúmeras ocorrências, testemunhos apontaram a participação de policiais nas chacinas. Mas a investigação não avançou. O Movimento Mães de Maio foi criado como forma de protestar contra a impunidade diante da violência policial.

PMs de prontidão aos ataques do PCC pela cidade, em frente ao Mosteiro Sao Bento. Detalhe de cartaz com propaganda da paz colado na porta da Base Comunitária móvel. Madrugada de 15 de maio de 2006. Foto: Andre Porto/ especial para Ponte Jornalismo

Quando a vingança substitui a Justiça

Bruno Paes Manso/Ponte Jornalismo

1) Abril de 2010 – São Vicente e Guarujá

23 pessoas são mortas ao longo de duas semanas depois da morte do irmão de um policial militar de Diadema – 18 policiais são apontados como suspeitos

2) Julho de 2012 – Jaçanã – zona norte da capital

Seis pessoas morreram no Jaçanã em três locais diferentes da zona norte de São Paulo, sendo que um deles – onde três pessoas foram mortas – ficava a cerca de 300 metros do ponto onde um PM da Rota foi atingido por tiros de fuzil. Testemunhas disseram que antes do crime, policiais passaram no local avisando para os moradores não saírem de casa à noite.

3) Junho de 2012 – Ferraz de Vasconcelos

25 pessoas são mortas em Ferraz, Poá, Mogi das Cruzes e Itaquaquecetuba depois que um cabo da PM morreu com 4 tiros no rosto. Ônibus foram queimados em protesto contra a morte dos jovens.

4) Outubro de 2012 – Embu e Taboão da Serra

Nove pessoas são mortas e seis são baleadas em dois dias depois que um policial que fazia bico na região foi morto

5) Janeiro de 2013 – Campo Limpo – zona sul

A vingança de policiais começa a ser articulada depois que um vídeo de um policial matando um suspeito rendido no porta mala de uma viatura da PM no Campo Limpo foi divulgado na TV e levou os agentes envolvidos a julgamento. Pouco mais de um ano depois, sete pessoas são assassinadas na rua onde havia sido feita a gravação que incriminou os PMs. Saiba mais.

6) 12 de janeiro de 2013 – Campinas

Um PM foi morto num confronto com dois assaltantes. Em questão de horas, atiradores em um carro já tinham matado 12 pessoas em bairros da periferia próximo ao local onde o policial morreu. Foi a maior chacina da história da cidade.

7) Abril de 2013 – Osasco e Carapicuíba

Homens encapuzados mataram quatro e balearam sete em Osasco e Carapicuíba, na Grande São Paulo, como resposta à morte de um policial militar ocorrida em fevereiro, em Osasco. Dois PMs foram presos pelo crime.

8) Novembro de 2014 – Belém – Pará

Dez pessoas foram mortas depois de um policial ser assinado na cidade. Policiais falaram sobre a vingança no WhatsApp e em redes sociais.

9) Janeiro de 2014 – Sapopemba – zona leste

Um PM é morto na véspera de Natal. Seguem torturas e violência aos moradores do bairro praticados por integrantes da corporação. A Secretaria de Segurança passa a acompanhar o caso para evitar a vingança. No dia 28 de janeiro, três pessoas são mortas e uma ferida por matadores.

10) Março de 2015 – São Paulo

Cadete de 23 anos é morto em frente à sua casa no Tucuruvi. Horas depois, três adolescentes são mortos na Favela Funerária, na zona norte.

11) Abril de 2015 – Parelheiros – zona sul

Um cabo da polícia militar foi morto de manhã em frente à sua casa em Parelheiros. De noite, em um raio de 5 quilômetros no mesmo bairro, 6 jovens foram mortos. Saiba mais.

12) Julho de 2015 – Manaus – Amazonas

Depois da morte de um sargento da polícia em Manaus, 21 pessoas são assassinadas nas periferias da cidade.

13)  Agosto de 2015 – Osasco

Depois da morte de um policial militar que fazia bico em um posto de gasolina em Osasco, 25 pessoas foram assassinadas entre os dias 8 e 13 em Osasco, Carapicuíba, Itapevi e Barueri. Policiais foram presos acusados de praticar a matança. Saiba mais.

14) Setembro de 2015 – Carapicuíba

Quatro jovens são mortos em frente a uma pizzaria. Um policial foi preso acusado de ter praticado a chacina por suspeitar que as vítimas haviam roubado sua mulher. Saiba mais.

15)  Outubro de 2015 – Osasco

Menos de dois meses depois dos ataques, a morte de um policial durante assalto foi seguida de três assassinatos. Os crimes ocorreram 5 horas depois do latrocínio.

16)  Chacina Guarulhos – 4 mortos – um policial morto

Em dezembro, um policial foi morto ao tentar intervir em um assalto em uma loja de auto peças. No dia 2 de janeiro, quatro homens foram mortos na frente de um bar próximo ao local onde o policial tinha sido morto

17) Janeiro de 2016 – Londrina – Paraná

A morte de um policia produziu uma série de ataques em bairros da periferia de Londrina que provou a morte de 10 pessoas.

Com o fim dos ataques do PCC a cidade fica mais tranquila. Porem ainda com ruas quase desertas. Viatura da policia passa ao lado de grafite, na rua Gomes de Carvalho, Vila Olimpia. Em 19 de maio de 2006. Foto: Andre Porto/ especial para Ponte Jornalismo

ANÁLISE

Violência é um tiro no pé

A tolerância à vingança praticada por policiais prejudica a segurança pública

Bruno Paes Manso/Ponte Jornalismo

1) Comandos estão perdendo o controle das tropas – Em São Paulo, os homicídios praticados por policiais bateram recordes de violência em 2014 e 2015. Milícias e grupos de extermínio começam a se articular em diversos estados brasileiros, como já foi detectado em Alagoas, Bahia, Paraíba e Ceará, além de São Paulo e Rio de Janeiro, para citar casos mais conhecidos.

2) A credibilidade das polícias brasileiras está em queda – em 2015, 62% das pessoas entrevistadas pelo Data Folha disseram ter medo de apanhar da Polícia – era 48% em 2012

3) Fortalecimento das lideranças criminais dentro e fora das prisões – a raiva e a revolta contra o sistema de Justiça é um dos combustíveis para o ingresso no crime

4) Aumento da violência contra policiais – ao invés de coibir, a violência policial acaba incentivando os criminosos a atacarem os policiais, que vêm sendo alvos cada vez mais frequente de criminosos.

Clima na madrugada de Sao Paulo com diminuição da onda de ataques criminosos. Durante a madrugada no centro da cidade estava tranquila e com as ruas quase desertas. Só haviam praticamente policiais e garis. Os policiais estavam mais calmos. Foto de policiais da Forca Tática na viatura patrulhando a Rua Augusta . Em 17 de maio de 2006. Foto: Andre Porto/ especial para Ponte Jornalismo

Vingança e extermínio

Bruno Paes Manso / Ponte Jornalismo

Essa foi a motivação do primeiro Esquadrão da Morte surgido no Rio de Janeiro em 1962.  Durante um tiroteio, o policial Milton LeCocq foi baleado e morto durante um tiroteio por um criminoso conhecido como Cara de Cavalo. Começa a nascer a Scuderie LeCocq, que articulou o extermínio no Rio e depois do no Espírito Santo.

O símbolo de caveiras e tíbias cruzadas ajudaria a moldar a ideologia e as imagens da violência que contaminariam os maus policiais nas décadas seguintes.

São Paulo, novembro de 1968. Um investigador da polícia civil chamado Davi Parré é assassinado em tiroteio por criminoso conhecido como Saponga. No enterro, Correinha e outros policiais prometem na frente da imprensa que irão matar “dez bandidos para cada policial morto”. O delegado Sérgio Paranhos Fleury, apontado como um dos líderes do Esquadrão da Morte.

UM FOTÓGRAFO NOS ATENTADOS

‘Era muito difícil conseguir informação e chegar nos locais dos crimes’

Três homens foram mortos pela policia durante perseguição. Segundo a policia, eles roubaram o Peugeot 206 prata e houve troca de tiros. OBS: No carro não havia nenhum buraco de bala aparente. Local: Viela próxima a rua Comandante Antonio Paiva Sampaio, Vila Gustavo, Zona Norte. O BO foi registrado no 39 DP e os bandidos morreram a caminho do PS Jacana. Em 21 de maio de 2006. Foto: Andre Porto/ especial para Ponte Jornalismo
Luis Adorno / Ponte Jornalismo

O repórter fotográfico Andre Porto cobriu os Crimes de Maio, de madrugada, pelo jornal Folha de S.Paulo. À Ponte Jornalismo, o fotógrafo relembra o trabalho desenvolvido à época, enquanto sua esposa estava grávida de 9 meses. “Quando acontecia algo importante, o jornal nos ligava. Às vezes, ligava e falava: ‘ó, vai pra delegacia tal, que tem tal coisa’. Depois, a polícia respondeu aos primeiros ataques. Mas era muito difícil conseguir informação e chegar nos locais dos crimes. Logicamente impossível”, disse. Confira, abaixo, a entrevista completa.

Como foi cobrir os Crimes de Maio?

O mais proximo que cheguei de ver um morto foi no primeiro dia. Tinha muito sangue. Tinham matado um PM. Durante todos os ataques, eu não vi nenhum cadáver. Era muito difícil. Quando eu chegava no lugar, tudo já tinha sumido. No primeiro dia foi assim.

Você trabalhava de madrugada…

É. Só durante a madrugada. Eu entrava umas 22h e trabalhava até, no mínimo, umas 7h. Às vezes, se estendia até 12h atrás de algum caso, enfim. Eu tava desempregado. Precisava muito do trabalho. E minha mulher estava grávida. De 9 meses. Ele nasceu no dia 30 de maio. Começaram os ataques entre 12 e 13. Então, faltavam duas semanas. Eu tava bem nervoso. Aí o jornal me chamou pra fazer e eu topei na hora. Eu já tinha trabalhado de madrugada no Agora, já tinha essa experiência. Pra mim, era ótimo esse trabalho. E eu trabalhava em outro lugar de dia.

Como foi esse primeiro dia?

Eu colei na Folha. À noite. Mandaram eu ir pra uma boate chamada Cabana, na zona sul. Tinham matado um policial lá dentro. Fui pra lá com o motorista Moacir, o Moa. Fiz tudo com ele. Ele me ajudou muito. Foi muito parceiro. Sem ele, eu não tinha feito nada. Chegamos na boate, e a polícia já tinha cercado tudo. Tinha muito policial. E não dava pra fazer foto nenhuma. Só a fachada com o movimento dos policiais. De longe. Fui o primeiro a chegar. Só tinha eu e um cara de uma TV. Aí, enquanto eu tirava as fotos, parou um motoboy do meu lado. Ele: “e aí, o que aconteceu?”. “Ah, mataram um policial”. Aí ele falou: “vixe, mano, hoje tá moiado. Acabaram de matar um na ponte dos Remédios.” Eu falei: “sério?”. Ele falou: “é, acabei de passar lá”. Chamei o Moa e falei pra irmos pra ponte dos Remédios. Na hora. Abandonei a pauta lá. Segui minha intuição. Acreditei totalmente no cara. Corri pra lá e fui o primeiro a chegar na cena. Fiquei uns 3 minutos no máximo, porque o negócio tinha acabado de acontecer e tava chegando muito carro de polícia. E eles estavam muito nervosos. Com tudo o que tava acontecendo. Foi aquela foto do boné ensanguentado. Tinha muito sangue. Fiz as fotos usando uma lanterna, porque tava muito escuro. Entrei no carro e pedi pro Moacir voar pro jornal. Avisei que tinha as fotos. O pessoal do jornal ainda não estava nem sabendo do que havia acontecido ali. No dia seguinte, a foto saiu na primeira página. E aí me falaram: ó, você vai ter que fazer isso todo dia, tudo bem? Falei: “beleza, vamos até o fim”.

E como sua mulher lidou com isso?

Ah, ela é jornalista. Ela estava grávida, mas, se ficava com medo, não demonstrou. Ela é jornalista e ela sabe que eu sei fazer esse tipo de trabalho. E, também, a gente nem conseguia se falar muito durante os ataques.

E a cobertura nos outros dias?

Tive a impressão de que foi diminuindo. Eu rodava a cidade com o Moacir a noite inteira. Não ficava na redação nunca. A gente ia pra tudo quanto é canto que dava na telha. Atrás de qualquer coisa. E, quando acontecia algo importante, o jornal nos ligava. Às vezes, ligava e falava: “ó, vai pra delegacia tal, que tem tal coisa”. Depois, a polícia respondeu aos primeiros ataques. Mas era muito difícil conseguir informação e chegar nos locais dos crimes. Logicamente impossível.

A PM não passava?

Aparentemente, não passava. A gente não conseguia chegar em nada. Mesmo assim, a última foto do vídeo, é de uma pessoa morta por PMs…

Cara, eu não lembro onde foi aquela foto e nem quantas pessoas morreram… Se não me engano, quem fez a reportagem daquela foto durante o dia foi o André [Caramante]. A história foi que eles estavam com um carro roubado. Eu não lembro quantos moleques estavam lá. A polícia perseguiu. E a suspeita é de que houve troca de tiros. E os moleques morreram baleados. Nenhum tinha RG. Nunca nenhum dos suspeitos daqueles ataques tinha RG. Foi isso o que me disseram. Eu demorei muito pra achar aquele local do crime. Eu fui em várias delegacias na região. Foi bem difícil. Mas uma hora um policial deu a letra. E aí eu e o Moa acertamos e achamos. Era uma quebrada, no meio do mato. Um lugar muito escuro e vazio. Assim que eu cheguei, a polícia me expulsou. Disse que eu não podia ficar ali. Que eles tavam investigando. Eles tavam muito nervosos. Eram muitos. Deram uma intimada. E eu saí fora. Não fiquei nem um minuto. Fiz aquela foto meio que roubada. Os caras nem viram que eu fiz. Mas faz parte do trabalho.

Em algum momento, você ficou com medo?

Não dava tempo de ter medo. Porque eu tava muito concentrado no meu trabalho. Eu pensava no meu filho o tempo todo, mas não dava tempo de ter medo. Eu e o Moacir estávamos muito focados em fazer o nosso melhor. Na verdade, a única vez que a gente ficou com medo, foi bizarro e engraçado. A gente tava numa rua deserta, eu tava fazendo fotos de uns grafites. E, do nada, começou um barulho que a gente achou que era de tiro. A gente ficou com bastante medo. Saiu correndo pro carro. Entramos no carro e vazamos. Quando a gente virou a esquina, vimos que era um tiozinho bêbado batendo o chinelo no portão [risos]. Foi bem ridículo. Mas, fora isso, a gente tava trabalhando. Muito focados.

EMICIDA

A democracia, a surdez e por que (infelizmente) nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos

Ilustração Junião / Ponte Jornalismo

Muitas coisas acontecem em dez anos, inclusive nada.

Num Brasil de desesperanças que covardemente amplia os poderes de seus bandidos favoritos, permitindo por exemplo que a lógica de extermínio das forças de segurança paulista se estenda para o território nacional, precisamos saber se estamos fazendo as perguntas corretas.

Na última década, colocamos mais pretos e favelados em formaturas, em penitenciárias ou em caixões?

Creio que este “Freakonomics” macabro confirmaria a velha frase de Getúlio Vargas: “Quase sempre é fácil encontrar a verdade, difícil é depois de encontrá-la não tentar fugir dela”.

Lotamos as ruas para gritar por democracia, mas também tenho me dado a liberdade de perguntar: quão longe um fruto pode cair do pé?

Digo isso porque o sistema político do qual (não) desfrutamos é filho de uma democracia que nasceu na cidade grega de Atenas. Onde os poderes eram controlados por eupátridas, uma elite composta de pessoas do sexo masculino, de pai e mãe atenienses, donos de terras, alfabetizados, com mais de 20 anos e para quem a escravidão era inerente a alguns setores da sociedade. É bom salientar que eu estou falando de quinhentos e alguma coisa antes de Cristo.

O conceito de povo e governo era (ou é?) completamente diferente para quem faz as leis e para quem é alvo delas.

No “Making a Murderer” brasileiro, Rafael Braga luta para provar que pinho sol e água sanitária não são materiais explosivos. Contra ele o Estado e as convicções de uma sociedade que estranha quando o bandido é branco. A seu favor, Amarildo, Cláudia, 19 pessoas de Osasco, 12 do Cabula e mais cinco jovens de Costa Barros de quem ninguém sabe o nome e que têm no mínimo 111 motivos para fazer o Brasil parar tudo o que está fazendo, olhar no espelho e concluir que é uma máquina de moer pobre. Só que esses falam de tão longe que apenas os familiares ainda conseguem ouvi-los. Estão mortos.

E quem tem ideia do quão trabalhoso é fazer com que os mortos falem? Conheço quem consiga, porém muito mais difícil do que isso é fazer com que a sociedade escute. Disparos ensurdecem. Quanto mais perto,  menos se escuta depois deles. Permanece um apito no ouvido parecido com aquele que no metrô avisa que as portas estão se fechando. Tudo parece distante depois disso. E a gente vive num tiroteio.

Dizem que você só escuta o tiro depois que ele te atingiu.

É foda. E depois disso, os que ficam  nunca sabem dizer se ficaram mais fortes ou se também morreram.

Eu olho de um outro Brasil, um que que começa a ver que o bastão do poder nunca trocou de mãos, que é um acordo de cavalheiros em que, quando questionado sobre democratização da mídia, o ex-presidente Fernando Henrique, como bom eupátrida, diz que não fala de amigos. De um Brasil que sabe que direita e esquerda não são iguais, mas também tem dificuldade em apontar as diferenças. Na maioria das vezes, o que sabemos é que para eles (bem mais para esquerda, quase nunca para direita) as balas são de borracha e para nós as balas são de verdade.

Meu parceiro Nego E diz que o cheiro das ruas brasileiras ainda é de Brasil Colônia. Atravessando essa década de existência (resistência) e luta das Mães de Maio, minha convicção ainda é a daquela fala de Théoden em “Senhor dos Anéis”, nenhum pai/mãe deveria enterrar seu filho.

CÚMPLICES

Promotores assinaram ofício de apoio à PM

ilustração Junião / Ponte Jornalismo
Fausto Salvadori / Ponte Jornalismo

Em 25 de maio de 2006, 79 promotores criminais da cidade de São Paulo assinaram um ofício dirigido ao comandante geral da PM em que reconheciam “a eficiência da resposta da Polícia Militar, que se mostrou preocupada em restabelecer a ordem violada, defendendo intransigentemente a população de nosso Estado” e afirmavam que “eventuais excessos praticados individualmente” seriam apurados.

O documento foi enviado nove dias após o PM Alexandre André Pereira da Silva e outros cinco encapuzados entraram gritando “o comando é nóis” num lava-rápido da zona norte de São Paulo e executar três jovens. Dez dias após quatro homens encapuzados, identificados como policiais, atirarem na cabeça e na barriga de Ana Paula Gonzaga dos Santos, grávida de nove meses, em Santos (SP), e dizer “filho de bandido, bandido é”. E dez dias após o gari Edson Rogério Silva dos Santos ser morto, também em Santos, por cinco tiros que mancharam de sangue o holerite de trabalhador que levava no bolso.

Elaborado logo após os Crimes de Maio, quando a PM paulista se tornava suspeita de executar um dos piores massacres da história do Brasil, o ofício do Ministério Público era uma demonstração de apoio vinda justamente dos promotores que deveriam fiscalizar a ação dos policiais.

A atitude foi criticada no relatório “São Paulo sob Achaque” produzido pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard em parceria com a ONG Justiça Global, em maio de 2011. O relatório afirma que os promotores falharam ao “não manter sua preciosa isenção no momento da crise, sinalizando à Polícia Militar que eles, promotores, já teriam concluído que não houve um revide policial orquestrado após os ataques”.

“Poder-se ia interpretar tal carta como tendo eximido o comandante de qualquer responsabilidade pelo revide policial ao se referir aos diversos indícios de numerosas execuções cometidas por policiais como “excessos praticados individualmente”, acrescenta o relatório. O resultado foi que o MP “falhou em não investigar todos os Crimes de Maio de forma sistemática e rigorosa”.

A atitude do MP em relação aos Crimes de Maio mudou pouco desde então. No ano passado, a promotora Ana Maria Frigério Molinari, da Procuradoria de Justiça de Praia Grande (SP), acusou sem provas as Mães de Maio de serem traficantes de drogas. Por decisão judicial, a Ponte teve que retirar do ar o vídeo em que a promotora fazia a acusação.

‘Me arrependo amargamente’, diz ex-promotor

Roberto tardelli, ex promotor | foto: Justificando
Fausto Salvadori / Ponte Jornalismo

A reportagem da Ponte falou na terça (17/5) com um dos signatários do documento de 2006, o ex-promotor Roberto Tardelli, que há dois anos deixou o Ministério Público e vem se firmando como uma voz crítica em relação à instituição. Tardelli não se lembrava de ter assinado o ofício de apoio do MP em relação aos Crimes de Maio. Ao ser informado, reconheceu que cometeu um erro. “Me arrependo profunda e amargamente”, disse.

Em maio de 2006, a reação do Estado não foi muito pior do que a própria ação do PCC?

Não tenha dúvida. A reação do Estado foi de fúria. Você não pode admitir um Estado furioso, porque a primeira coisa que faz é romper com a legalidade, é adotar a violência como um meio de satisfação que na verdade atinge todo mundo. Naquela época, a gente não tinha ideia, e foi um erro grave de avalição que tivemos, dessa cultura do ódio. Há dez anos, pareceu uma reação furiosa do Estado, mas que na verdade já prenunciava esse clima de ataque à periferia. É sintomático que não foi disparado um tiro em Moema, em Higienópolis, nos bairros nobres e brancos de São Paulo, mas na periferia a coisa chegou a um nível de uma explosão social.

Por falar nisso, logo depois que houve essa reação da polícia, vários promotores (e o senhor foi um deles) assinaram um ofício dirigido ao comando-geral da PM no qual se reconhecia “a eficiência da resposta da Polícia Militar”.

Eu assinei essa merda?

Sim. O senhor não lembrava disso?

Não me lembrava. Você está me deixando numa tristeza. O mínimo que posso dizer é que me arrependo profunda e amargamente de ter assinado isso. É o efeito boiada. Um documento vai passando de mão em mão e ninguém questiona. Lá [no Fórum Criminal Barra Funda] tinha ofício todo dia.

Hoje o senhor não assinaria?

Nem hoje, nem há dez anos. Se eu assinei, foi por uma razão que eu não saberia dizer agora. Eu assinei essa merda, eu fui um deles. Eu saí do MP justamente porque eu estava ficando sem ambiente em razões de posições que desagradavam a maior parte dos colegas. Mas está meu nome aí, não posso dizer que não é meu. Lamento profundamente. Puxa, que má notícia! Você me deu uma notícia que me envergonha. Desculpe. E obrigado por ter me falado isso. Eu não quero me eximir dessas coisas. Está vendo o que faz uma instituição? A gente acaba perdendo o senso crítico.

Lamento ter sido o portador dessa notícia. E como o senhor avalia a atuação do Ministério Público no caso da matança praticada pela polícia em maio de 2006?

O Ministério Público não reconhece, e isso eu acho um erro, o que você fala: “matança”. Os promotores trabalham com atitudes pontuais. O raciocínio é que, dentro do contingente de milhares de policiais, os homicídios não representam um número expressivo, então o que se percebe são desvios individuais que a própria instituição procura corrigir através de uma atuação firme da Corregedoria. Isso é um raciocínio alienado e alienante? Claro que é, mas hoje ainda vigora.

Promotores que têm uma visão diferente têm dificuldade de romper com esse pensamento?

É muito difícil. Existe um pensamento praticamente monolítico, que faz com que o Ministério Público tenha se tornado uma instituição muito mais à direita do que o espectro normal que a gente costuma ver por aí. O promotor médio está muito mais próximo da Polícia Militar ideologicamente do que se imagina.

Como se poderia combater essa ideologia e ter um Ministério Público mais aberto?

Tem que criar um sistema de cotas. Para escola público, para negros, cotas para tudo. Tem que criar uma diversidade lá dentro. Hoje só 1% do MP é composto por negros. Não é louco um negócio desses?