Sofri três anos de perseguição transfóbica na Zara, denuncia ex-funcionária

Em ação trabalhista contra a rede de lojas, Flor de Lima afirma que, após iniciar transição de gênero, os chefes a ofenderam e continuaram a chamá-la pelo nome masculino. Em depressão, tentou se matar dentro da loja, em Campinas (SP)

Flor de Lima, que move ação trabalhista contra a rede Zara | Foto: Ana Paula Ferraciolli Pereira

“Lá dentro, eu estava gritando para ser ouvida”, relata a artesã Flor de Lima da Silva, 25 anos, ao lembrar das diversas tentativas de encerrar os ciclos de transfobia que afirma ter vivido, entre 2018 e 2021, em uma loja da rede de roupas e acessórios Zara, no Shopping Parque Dom Pedro, em Campinas (SP), onde trabalhou até ser demitida, em setembro do ano passado.

Numa ação trabalhista que move contra a empresa, no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, a ex-funcionária denuncia a Zara por transfobia, assédio moral, acúmulo de função e demissão sem justa causa. Ela pede indenização no valor de R$ 227.200.

Flor começou a trabalhar na Zara em 2015, como vendedora, e em 2018 iniciou sua transição de gênero. Ela conta que, nos três anos seguintes, foi proibida de usar o banheiro das mulheres, obrigada a vestir o uniforme masculino e chamada pelo seu nome antigo em diversas ocasiões e em documentos da empresa, mesmo após ter adotado o nome social.

A perseguição sistemática teria provocado crises de depressão na vendedora, que a levaram a duas tentativas de suicídio, uma delas dentro da loja em Campinas. Nem assim, segundo ela, a empresa mudou suas atitudes. “Eu quero que o mundo saiba disso, porque a Zara é uma empresa grande e eles são sistematicamente transfóbicos e racistas”, afirma.

Banheiro e roupa de homem

Em junho de 2015, Flor foi contratada pela loja da Zara do Shopping Parque Dom Pedro, para exercer a função de vendedora aos finais de semana. Em 2019, foi promovida a vendedora imagem, responsável também pela arrumação das vitrines da loja.

Foi no final de 2018 que Flor se entendeu internamente como pessoa trans. Levou alguns meses até reunir coragem para contar às outras pessoas. No mês do seu aniversário, em fevereiro, ela procurou a gerência da loja para pedir o uniforme feminino, mas o setor de Recursos Humanos negou inicialmente o pedido. O uniforme feminino somente foi entregue a ela mais de quatro depois, em maio de 2019.

Flor no uniforme feminino, após ter de usar a vestimenta masculina por meses, após comunicada a transição de gênero | Foto: Arquivo pessoal

Quando pediu para passar a usar o banheiro das mulheres, ouviu dos funcionários de RH que deveria ter “muita paciência”. Para evitar os olhares dos homens, ela se trocava em uma cabine do banheiro masculino. “Meus seios começaram a aparecer e eu estava muito desconfortável no banheiro masculino. Eu me trocava em um espaço bem pequeno para ninguém me ver”, relata. Depois de muita insistência, após sete meses foi autorizada a usar o banheiro feminino.

Além disso, Flor relata que teria recebido comentários transfóbicos de ao menos três funcionários com cargo de gerência da loja: Braian Bassualdo, Cristina Lindemann e Juliana Tosello. “Falavam que eu estava estressada por conta dos hormônios, e não porque as pessoas não respeitam o meu pronome e achavam que eu era um ET. Falavam que eu não sabia me vestir, que eu tinha que ser mais feminina. Na época eu ainda tinha barba, então diziam: ‘Ai, credo, você não vai fazer cirurgia?’. Isso era questionado assim o tempo todo.”

A Zara teria continuado a proibir que Flor usasse seu nome social, afirmando que só aceitaria a mudança após a retificação do seu nome nos registros civis do Estado. Para ajudá-la, uma colega de quem era amiga começou a chamá-la pelo nome feminino nos microfones da loja.

Em julho de 2019, a jovem foi convocada a fazer um curso de especialização e, embora o e-mail de convocação se referisse a ela como Flor, seus colegas continuavam a chamá-la pelo nome antigo. Durante todo o treinamento, que durou dois meses, a vendedora foi obrigada a dividir um quarto de hotel com um homem, mesmo se identificando como mulher. “Teve uma comoção no hotel, porque eles nunca tinham recebido uma pessoa trans.”

A ex-funcionária ressalta que a empresa não adotou nenhuma política interna de conscientização sobre pessoas LGBTQIA+. “O RH ia lá direto e em nenhum momento foi pedido para as pessoas respeitarem o meu nome. Eu que me lascasse para lidar com a transfobia diária”, critica.

Loja da Zara no Shopping Dom Pedro, onde Flor trabalhou | Foto: Divulgação

Flor também conta que relatou a discriminação de gênero que vinha sofrendo diretamente a um alto executivo da Zara no Brasil, identificado como Jaime Andres, durante uma visita que ele fez à loja de Campinas, em agosto de 2021. O executivo teria respondido que “o tempo da empresa não foi o seu tempo” e sugerido que ela se demitisse.

Depressão e tentativa de suicídio

A pandemia de Covid-19 piorou ainda mais o ambiente de trabalho para Flor. Para entrar no shopping, ela tinha de apresentar uma carteirinha de identificação, onde só constava o antigo nome masculino. “A empresa não tomou nenhuma atitude com relação a isso. O responsável por fazer as carteirinhas dizia que só poderiam trocar meu nome quando fosse alterado nos meus documentos. Essa retórica sempre foi usada. O nome social deve ser respeitado, mas ninguém respeita.”

A perseguição transfóbica levou a vendedora a desenvolver um quadro depressivo. Em fevereiro de 2021, Flor tentou se suicidar dentro da própria loja, após um cliente tentar retirá-la à força do provador feminino. “Eu tinha pedido para ele não entrar com as peças que ele estava segurando para a esposa dentro do provador, porque havia mulheres ali, e que eu podia ficar com as peças e dar para ela conforme fosse pedindo. Ele jogou as peças em mim e começou a gritar comigo, me chamando no masculino”, conta.

Em resposta, a gerente da loja teria responsabilizado Flor pelo ataque transfóbico que ela havia sofrido e ainda proibido a vendedora de sair para almoçar. “Ela falou: ‘mas você gritou com ele, né?’. Eu fiquei mais duas horas na loja depois de toda essa transfobia”, relata. Nesse momento, Flor tentou se matar. “Foi justamente por causa dessa tentativa que meu noivo foi me buscar na loja e eu comecei a fazer acompanhamento psiquiátrico.”

Um mês depois, Flor conseguiu se recuperar e pensar em outras possibilidades para sua vida. Nesta altura, ela já contava com uma certidão de nascimento que trazia seu nome social. Contudo, mesmo após encaminhar o documento ao RH, a empresa continuou a tratá-la no masculino. “Durante três meses eu fiz meu RG, fiz meu CPF, fiz o meu imposto de renda, tudo com meu nome social, e, cada vez que eu ia dar essas informações para a empresa, falavam que eu precisava de mais documentação.”

No computador da loja o nome de Flor não era respeitado ainda em junho de 2021 | Foto: Arquivo pessoal

Flor estava animada com a possiblidade de usar o plano de saúde da empresa para realizar o sonho de conseguir sua cirurgia de redesignação, mas os planos foram interrompidos ao ser demitida, em setembro do ano passado. “Eu cheguei a um ponto em que eu não levantava da cama, eu não conseguia ir ao banheiro sem chorar, é tão desesperador. Estava tão perto de falar com o meu médico para fazer cirurgia e aí eu perdi”, diz.

Violações de direitos humanos e trabalhista

O advogado de Flor, Eduardo Fernandes Franceschinelli, ressalta que toda pessoa trans tem direito ao reconhecimento do seu nome social, assim como o acesso ao vestiário ou banheiro que esteja de acordo com a sua identidade de gênero. “No momento que a Zara negou esse direito, atentou contra o núcleo essencial da dignidade humana da Flor, e uma prova disso é que a Flor ficou extremamente abalada no emprego, o que não permitia que ela pudesse se desenvolver plenamente lá”, aponta.

À Ponte, Eduardo afirma que a proteção legal às pessoas trans, em questões como o reconhecimento do nome social e do acesso aos banheiros e vestiários de acordo com a identidade da pessoa, é algo ainda “construído e em construção.” Na fundamentação usada na ação, o advogado menciona duas notas técnicas do Ministério Público do Trabalho (NT 8 de 2016 e NT 2 de 2020), além dos princípios de Yogyakarta, para afirmar que as empresas têm obrigação de reconhecerem o nome social no ambiente de trabalho.

Até o momento a Zara não se manifestou nos autos. Uma primeira audiência está agendada para maio deste ano. “Será apenas uma audiência de conciliação e posteriormente o juiz marcará a data para a audiência de instrução”, explica o advogado.

Carteirinha da Zara com o nome antigo de Flor | Foto: Arquivo pessoal

O advogado lembra que, em 2011, a Zara foi condenada pelo uso de trabalho escravo em sua linha de produção e assinou um Termo de Ajuste de Conduta no qual se comprometia a investir R$ 5 milhões em projetos sociais. Parte desses recursos estão sendo usados em projetos LGBTQIA+, o que ressaltaria a hipocrisia da empresa, na visão de Eduardo. “A empresa faz parceria com a Casa 1, uma casa de acolhida à população LGBTQIA+ em São Paulo, contratou várias mulheres trans e fez marketing nacional e internacional com isso. O mínimo que podemos querer é que respeitem e conheçam as pautas da bandeira que estão levantando”, diz.

Histórico de preconceitos

Há menos de um mês, a Zara foi alvo de denúncias por suspeita de práticas racistas em uma loja na Bahia. Um homem negro, o estudante Luiz Fernandes Júnior, comprou uma mochila e um par de tênis na loja e foi obrigado a retornar ao estabelecimento depois de ser perseguido por seguranças do shopping.

No 14 de setembro, a delegada Ana Paula Barroso, diretora-adjunta do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis, foi impedida de entrar na Zara do Shopping Iguatemi, em Fortaleza, em 14 de setembro. Funcionários afirmaram que havia um um código para identificar clientes negros, indesejados na loja, chamado de “Zara Zerou”.

Códigos como esse são comuns, segundo Flor. Na loja de Campinas, ela conta que os funcionários costumavam usar as expressões Zara Masculino ou Zara Feminino para se referir a pessoas suspeitas: “Existe essa linguagem interna em todas as lojas”.

Em 2020, Alina Durso e Jade Aza, ex-funcionárias da loja, acusaram a Zara de transfobia e racismo. Contratadas por meio de um programa para inclusão social, elas relataram que trabalharam quatro meses no local, que suas identidades foram invalidadas e nada foi feito. Ambas entraram com ações por danos morais contra a loja.

Recomeço

Cinco meses após a saída da loja, Flor vive hoje em Uberaba (MG) e conta que o processo da transição a transformou. “Hoje aqui eu faço parte do coletivo Beth Pantera, pela diversidade LGBTQIA+, e isso tem me trazido um revigor, uma vontade de lutar. Quero que as pessoas saibam de tudo isso, porque a empresa é extremamente tóxica e ela vai continuar reproduzindo essa transfobia.”

“Quero que as pessoas saibam de tudo isso porque a empresa é extremamente tóxica “, diz Flor | Foto: Ana Paula Ferraciolli Pereira

Ainda que tenha planos de se estabelecer profissionalmente, sua maior luta continua sendo por sua existência. “Quando você diz a palavra expectativa, eu penso em não estar morta aos trinta anos. Vejo essa primeira audiência com bons olhos, mas eu acho que eu não me sinto ainda contemplada, eu poderia ter acabado a qualquer momento com a minha vida.” 

“E quando a gente vê que alguém finalmente se dispõe a contar essa história, não é nem por mim, é porque se eu tivesse morrido por causa disso, ninguém ia ficar sabendo. As pessoas agora vão saber o perigo que é estar ali”, complementa. “De pouquinho em pouquinho, com esses casos sobre racismo e esse monte de processo trabalhista que eles têm nas costas, a gente acaba criando um ambiente melhor para as pessoas que virão no futuro.”

O que diz a Zara

A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da empresa, questionando sobre as denúncias feitas por Flor e solicitando entrevista com os funcionários mencionados na ação trabalhista. Até agora, não houve resposta. A Ponte está aberta para atualizar a reportagem com o posicionamento da empresa.

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