Documentário acompanha as mulheres de Fernando de Noronha (PE) que são impedidas de darem à luz em sua terra natal
Ele foi um empreendedor, comerciante e explorador. Um judeu que se tornou cristão. O português Fernão de Noronha (1470-1540) viveu aproximadamente 70 anos. Dizem que ele tentava chegar ao Brasil quando descobriu ilhas vulcânicas no litoral de Pernambuco que levam o seu nome. O arquipélago tornou-se a primeira Capitania Hereditária do Brasil. O local sobreviveu a invasões de piratas franceses, ingleses e holandeses. Durante muitos anos, Fernando de Noronha tornou-se presídio político federal. Vários presos políticos ficaram aprisionados ali. O mais famoso foi o ex-governador Miguel Arraes (1916-2005), capturado nos primeiros momentos da ditadura militar (1964-85). A cineasta, jornalista e produtora carioca, radicada no Paraná, Joana Nin visitou o arquipélago pela primeira vez em 2010 como turista. Foi nessa viagem que ela conheceu uma história um tanto inusitada sobre as mulheres de Fernando de Noronha. “Foi ali que eu escutei a história que as nativas eram impedidas de terem o parto na ilha. Então, pensei: em que momento os partos foram suspensos? E por quê? Minha curiosidade falou mais alto, decidi pesquisar.”
Joana Nin percebeu que aquela era uma desumanidade muito grande. Voltou ao arquipélago quatro anos depois para realizar as primeiras pesquisas. O projeto de longa-metragem foi formatado em 2016. Nesse momento ela conseguiu captar alguns recursos no FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). Aí foi surgindo o documentário de longa-metragem Proibido Nascer no Paraíso. Joana Nin voltou à ilha com a roteirista e parceira Sandra Nodari em maio do ano seguinte para conhecer algumas gestantes locais. Elas ficaram três semanas trabalhando intensamente. “Fomos selecionando algumas histórias e começamos a acompanhá-las. Aos poucos, algumas histórias foram rendendo mais que as outras e seguimos com essas. Quando já estávamos filmando Harlene e Ione, conheci a Babalu.”
As duas primeiras estavam no estágio avançado de terem seus bebês. Mas a última acabou chamando bastante a atenção. A diretora afirma que sua principal referência no cinema de não ficção é o realizador Eduardo Coutinho (1933-2014). “O Coutinho dizia que existem os personagens no documentário que são as rainhas. A Babalu era uma rainha pela presença e consciência dela a respeito do que acontece na ilha. Eu não interferi em nenhuma decisão dela, nem eu nem a equipe do filme. Estávamos ali para acompanhar tudo o mais perto possível. Ela é a voz de uma comunidade e o filme tem que amplificar vozes como a dela.”
Mais debochada que as outras personagens, Ana Carolina é uma jovem que administra um bar local e é conhecida pelo apelido de Babalu. Ela acaba ganhando o espectador logo no início do filme. De personalidade forte, ela entende que não deixar as grávidas terem seus bebês na terra natal é algo desumano. “Só falta a promotoria, a polícia civil, federal e militar virem atrás de mim”, diz ela olhando para a câmera a certa altura do documentário. Mas Babalu ganha o público quando diz: “Eles querem acabar com a população nativa para aqui virar a Ilha de Caras”.
A diretora Joana Nin utiliza diversos recursos interessantes na elaboração do filme. Foram algumas opções artísticas que enriqueceram o longa-metragem. A própria diretora aparece como narradora do filme. “Cada projeto é um projeto. No caso deste, quando estava na edição senti essa necessidade e fiz. Ali existe uma dificuldade de mostrar o contexto complexo em que muita coisa acontece.”
Um momento que chama atenção acontece quando uma professora local chamada Grazielle destaca alguns fatos históricos do arquipélago para um grupo de crianças. A informação acaba sendo exposta de maneira engraçada. “Percebemos que era necessário que o espectador compreendesse o que é Fernando de Noronha, que é um lugar inacessível para a maioria dos brasileiros”, detalha a diretora. “A Grazi é uma historiadora nativa, ela conhece muito bem essa história. E aquelas crianças enfrentam o problema do pertencimento, são de lá, mas não nasceram lá.”
As crianças precisam entender o lugar em que vivem. A sequência agrega a camada de pertencimento. Mas os nativos de Fernando de Noronha têm seus direitos. Pode ser até que a maioria deles desconheça isso. “Mas os direitos deles são obstáculos à exploração turística. Não há como saber qual será a legislação do futuro, se essas crianças nascidas no continente, filhas de nativos que viveram a vida toda na ilha, terão os mesmos direitos que os pais têm hoje.”
Joana Nin explica que não encontrou nenhuma regra escrita proibindo os partos na ilha. Não existe lei, regra escrita, nem nada. O filme relata que não existe UTI, anestesista ou obstetra no arquipélago. Existe apenas uma norma informal ou “orientação” que não permite o nascimento de bebês ali. As mães são levadas a darem à luz em Recife, que fica a 360 quilômetros de Noronha. O próprio médico local aparece falando que não pode fazer praticamente nada para que isso seja mudado.
Proibido Nascer no Paraíso é um filme fundamentalmente feminino. Poucos homens são entrevistados ao longo dos 78 minutos do longa-metragem. Mas mesmo quando eles aparecem é de maneira breve. “O filme é feminino, sim, e isso é intencional”, admite a diretora. Ela afirma que as mulheres são negligenciadas durante a gestação no Brasil, e isso não se resume a Fernando de Noronha. “Hoje temos ouvido falar um pouco mais sobre violência obstétrica, mas o tema ainda é tabu. Você trabalhar com a informação para que a mulher não tenha acesso àquilo que precisa para tomar suas próprias decisões é uma forma de violência. Existe um tipo de violência travestida na assistência que o Estado até te ampara. Só que você não tem escolha.”
Parte da equipe técnica do longa-metragem também é feminina. “Tínhamos muitas mulheres na equipe. Isso deveria acontecer em todas as produções — homens e mulheres trabalhando juntos, com funções de comando e artísticas também”.
Proibido Nascer no Paraíso é o segundo longa-metragem assinado por Joana Nin. O primeiro era de um tema bastante semelhante: Cativas- presas pelo coração (2013), sobre mulheres que se apaixonam por homens presos. Os dois estão disponíveis nos sistemas de streaming. “Eu sou defensora de que o documentário deve ter seu lugar em todas as janelas de exibição disponíveis, porque nem tudo pode ser apenas lucro, quando se trata de projetos culturais, da nossa história cultural”.
Joana Nin não se desanima perante a atual política cinematográfica realizada no Brasil. As burocracias e os projetos paralisados sem explicação não tiram o sossego dela. A diretora está terminando um outro filme de não-ficção. Trata-se de um projeto sobre uma companhia de teatro do Paraná que foi duramente atingida pela política cultural ineficiente. O longa-metragem chama-se Os 80 Gigantes e deve estar pronto no final de 2022. “Para meados do ano que vem devo lançar meu longa-metragem A Vila dos Três Apitos, que é sobre Noel Rosa e o bairro de Vila Isabel, um filme sobre música, memórias e afetos. Também estou começando a realizar meus primeiros projetos de ficção, um curta e um longa com uma roteirista parceira.”
Proibido Nascer no Paraíso
Direção: Joana Nin
Pernambuco/Paraná, Brasil, 2021
Duração: 78 minutos
Onde assistir: Apple TV, Claro, iTunes, Globoplay, Google, Vivo, YouTube
A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).