Jovens presos, que eram estudantes e funcionários da USP, foram levados ao Deic, departamento especializado no combate ao crime organizado, e autuados por associação criminosa, incêndio, dano ao patrimônio, desacato e resistência
Um dos atos da greve geral de São Paulo terminou com dez manifestantes detidos. O ato aconteceu próximo das imediações da USP (Universidade de São Paulo), no Butantã, zona oeste de São Paulo, na manhã desta sexta-feira (14/6), e os jovens foram detidos no cruzamento das ruas Vital Brasil e Francisco Morato.
A manifestação estava pacífica até um carro ser queimado. Segundo a versão oficial da Polícia Militar, que deu abertura ao inquérito policial, um carro teria ultrapassado o bloqueio da via dos manifestantes, que eram em sua maioria estudantes e funcionários da USP, que estava fechada com pneus queimados. Diante disso, os manifestantes teriam ateado fogo no veículo. O dono do carro, de acordo com os PMs, não quis prestar queixa.
Diante do carro queimado, a Polícia Militar prendeu dez manifestantes (nove homens e uma mulher) e os encaminhou ao Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), localizado na zona norte da cidade. Entre os jovens detidos, oito são estudantes da USP: três do curso de Geografia, dois de Filosofia, um de História, um de Ciências Sociais e a única mulher do grupo cursa História. Os outros dois detidos são funcionários do CinUSP (cinema gratuito mantido pela universidade).
Baseado no depoimento de dois PMs, o delegado Fabiano Fonseca Barbeiro iniciou o inquérito policial com os crimes de associação criminosa, incêndio e dano ao patrimônio. Fabiano é o mesmo delegado que autuou os “18 do CCSP” e tem um histórico em relação sobre restrição ao direito de protesto, como ao considerar, em 2017, posse de vinagre e curativos como prova de organização criminosa. Na época, esses 18 jovens foram presos com um infiltrado do Exército, revelado pela Ponte, no Centro Cultural São Paulo durante os protestos contra as Olimpíadas de 2016.
Esses manifestantes foram absolvidos em outubro de 2018. Na época, no inquérito em que autuou os 18 jovens do CCSP, o delegado afirmou que “mostra-se premente a necessidade de regulamentação do direito de reunião e do direito de manifestação” e recomendou dois projetos de lei apresentados em 2013 que vão nesse sentido, um do senador Armando Monteiro (PTB-PE) e outro do deputado federal Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP).
O delegado Fabiano conversou com a Ponte por volta das 15h da sexta-feira e contou que as dez pessoas detidas foram surpreendidas pela PM durante o ato enquanto estariam praticando os crimes de dano e incêndio. A motivação da prisão, e também da abertura do inquérito baseado nesses crimes, disse o delegado, consistiu no perigo que os manifestantes colocaram outras pessoas ao atear fogo no carro.
“A partir do momento em que você ateia fogo em um veículo você não sabe o que pode acontecer, ele pode explodir, não sabemos potencialmente o que pode acontecer, porque é um local de aglomeração”, explica Barbeiro.
O delegado também lembra que é livre a manifestação de pensamento, desde que não haja abusos. “A partir do momento que você coloca a vida de outra pessoa em risco, você tem que se submeter às penas da lei”, argumenta Fabiano.
Contradizendo a versão policial, uma estudante do curso de geografia da USP que preferiu não se identificar, que também foi detida no ato, contou que um grupo de quinze de pessoas estava em uma rotatória quando uma viatura parou e mandou todos deitarem no chão. Os jovens deitaram com as mãos na cabeça.
Em seguida, um outro grupo estava voltando da USP quando também recebeu a ordem de deitar no chão. Nesse momento, eram vinte pessoas, sendo que cinco eram mulheres. Todos foram revistados. Desse grupo, quatro foram detidos e levados para o Deic, onde foram autuados junto com os outros seis jovens, totalizando dez pessoas, pelos crimes de associação criminosa, dano ao patrimônio, incêndio e resistência.
A jovem contou à Ponte como foi o momento da abordagem policial. “A gente tava falando que não tinha absolutamente nada a ver com o carro, nem estávamos com nada que podia ter colocado fogo no carro e estávamos muito na frente de onde aconteceu. Eles foram colocando alguns na viatura e soltando os outros. Foi uma escolha aleatória”, afirma.
A estudante também conta que houve xingamentos por parte da PM com o grupo. “Eles estavam xingando os meninos, falando pra um deles que ele era gordo, feio. Tinha uma menina negra que começaram a meter o louco com ela, ela não se identifica nem como menina nem como menino, eles separaram os homens das mulheres, cada gênero para um lado, e colocaram ela bem no meio e ficaram enchendo o saco, ela foi a última a ser solta. Eu estou com o dedo quebrado, hoje era o último dia, ela estava com a mão no meu dedo e eu falei isso pra ela, aí ela pegou e virou mais o meu dedo”, relata a estudante.
A estudante também contesta a versão de que o carro queimado teria furado o bloqueio feito pelos manifestantes. “Não era um carro que estava sendo dirigido, não era de uma pessoa que tentou passar ali, não teve tentativa de furar o bloqueio. Eu não lembro muito bem, a gente estava na proteção das faixas. O carro chegou por trás e pegou fogo. Aí todo mundo saiu correndo na hora, porque soltaram bombas. Não tinha pneu queimando. O carro parou lá e colocaram fogo no carro”, detalha.
Durante a conversa com a Ponte, o delegado não tinha visto as imagens que, mais tarde, foram anexadas ao flagrante. No vídeo recebido pela reportagem, 5 pessoas aparecem ateando foto em um escort azul. O carro ficou branco depois de ser queimado. Assim que o carro começa a pegar fogo, as pessoas correram para lados diferentes.
Há divergências sobre a aparição do carro no ato. Para a polícia, um condutor estava dirigindo o veículo e tentou ultrapassar o bloqueio de via quando os manifestantes atearam fogo no carro. Já na versão trazida pelo advogado de dois jovens, que foi confirmada por uma das jovens abordadas pela polícia que não foi detida, o carro só foi visto pelo grupo quando já estava pegando fogo, sem que eles o tivessem visto antes.
Depois de quase 12 horas de oitivas dos depoimentos de cada um dos dez jovens, por volta das 3h da manhã do sábado (15/6), Augusto Luiz, advogado da única mulher do grupo e de um dos dois meninos negros do grupo, conversou com a reportagem.
Augusto alega que um dos seus clientes foi agredido durante a abordagem e está com hematomas no braço e ferimentos na cabeça. Já a única mulher do grupo, que é estudante do curso de História, justamente por ser a única mulher, não tinha uma carceragem adequada para o seu gênero, o que gerou certo desconforto para a jovem que ficou detida em uma sala.
Para Augusto, as prisões buscam criminalizar a Greve Geral, protestos que foram realizados contra a reforma da previdência e os cortes na Educação. “O que podemos entender até agora é que os acusados não apenas não se conhecem, como foram detidos em locais distintos. Nenhum deles sequer se parece com as pessoas dos vídeos. Os depoimentos dos policiais e da testemunha também não trazem nenhum indício que justifique a invocação do pesadíssimo tipo de associação criminosa, a não ser que se queira dizer que estar em greve é um crime”, pondera o advogado.
Um dos advogados de um dos jovens, que não quis se identificar, explicou no que consistem as provas. “A prova que existe contra eles é a versão de dois policiais, que afirma que estavam todos juntos e afirma a organização criminosa. Isso não nos faz sentido inclusive por conta de vídeos que foram analisados e que a polícia juntou no processo. Nesses vídeos dá pra ver que há uma manifestação pacífica e que ao fundo mostra algumas pessoas ateando fogo no veículo. Nada além disso”, conta o defensor.
A audiência de custódia dos dez jovens, que permanecem na carceragem do Deic até o momento da audiência, será realizada na manhã de sábado (15/6) a partir das 9h da manhã no Fórum Criminal da Barra Funda.
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