‘A cracolândia é preta, pobre e periférica’, diz ex-secretária dos direitos humanos de Doria

    Em audiência pública sobre o tema na Câmara Municipal de São Paulo, vereadores e especialistas na área criticam ‘Recomeço’ e criam embate com secretário da Justiça, único representante da gestão a comparecer

    Secretário da Justiça, ao lado de Gilberto Nascimento, foi único representante da gestão Doria | Foto: Maria Teresa Cruz

    “A cracolândia tem recorte social, sim. A cracolândia tem recorte racial, sim. A cracolândia tem cor. É preta. E é pobre e periférica. 60% das pessoas que estão ali são egressos do sistema prisional”, afirma a ex-secretária municipal de Direitos Humanos da gestão Doria e que agora cumpre o mandato de vereadora pelo PSDB — mesmo partido do prefeito, Patrícia Bezerra.

    “A razão da existência da Cracolândia é a desigualdade. Ela tem que ser encarada como uma questão social. Os traficantes têm que ser presos? Sim, tem que ser presos, sim. E vivos. Para que delatem quem está por trás, quem está também ganhando com o tráfico e que nunca aparece. A falência do Estado fez com que surgisse o quarto poder, o crime organizado”, continua. “E ele não está nas ruas apenas. Ele opera também nas altas instâncias do poder. Tem gente legislando pelo crime”.

    Questionada, minutos depois, pela reportagem da Ponte Jornalismo sobre quem seriam essas pessoas, Patricia disse: “Ninguém sabe apontar quem são, mas todo mundo sabe que existe”.

    O vereador Fernando Holiday, que é negro, disse que considera absurdo o discurso de que exista esse recorte racial na Cracolândia e que isso é apropriação partidária.

    A fala da vereadora aconteceu logo depois da participação do secretário municipal da Justiça de São Paulo, Anderson Pomini, que elogiou a ação da gestão Doria usando como argumento a redução no número de pessoas no chamado ‘fluxo’, que antes era na Alameda Dino Bueno com a Helvétia, foi para a Praça Princesa Isabel e agora está na alameda Cleveland. “São de 200 a 300 pessoas agora que ficam no fluxo e são abordadas mais de dez vezes por dia por médicos, especialistas em saúde e elas se recusam a receber qualquer tipo de tratamento”, afirma Pomini, que reclama da legislação que impede impor internações.

    “Isso está muito difícil, porque hoje o usuário a noite, cansado de usar drogas, procura a assistência social a assistência medica. Depois de ser medicado ou alimentado, eles voltam para o fluxo. Já que o Estado não pode buscar essas pessoas que não falam mais por si e oferecer uma opção de vida, qual é a saída se as instituições defendem  que o estado nada pode fazer?”, queixou-se o secretário.

    O presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina), Mauro Aranha, respondeu então ao questionamento do secretário explicando que a internação voluntária está regulada pela lei 10.216/2001, mas que deve ser utilizada de forma pontual e objetiva. “Não pode ser adotada como política de reabilitação psicossocial. A internação é uma possibilidade de ajuda ao paciente ou usuário em uma das etapas de todo o seu percurso de tratamento. É para tratar uma síndrome de abstinência quando a pessoa para a droga, é para tratar um surto psicótico causado pelo crack, é para tratar um paciente desnutrido por causa do uso de droga muito tóxica, como é o crack. É o que se chama genericamente de desintoxicação”, explica.

    Aranha destaca que a internação é só uma pequena etapa de todo um processo de reabilitação psicossocial e é justamente ao fim desse processo que a pessoa terá a possibilidade de não voltar mais para a cracolândia. O médico manifestou indignação sobre a prática que a prefeitura vinha tendo na praça Princesa Isabel: “Jogar água sistematicamente no chão da praça, em dias frios como tem feito agora em junho, demolir casas vai dar a chance ao dependente de escolher se quer ou não a internação?”, afirma.

    Integrante do movimento Craco Resiste, Tamara Neder Collier apontou que a ausência dos chefes das pastas de Assistência Social e Saúde demonstra como a gestão considera enfrentar a questão da Cracolândia: “Ficou claro que para o prefeito é um caso de polícia”, pontuou. Além disso, Tamara fez questão de diferenciar os dois programas — De Braços Abertos e Redenção. Enquanto o primeiro coloca o dependente químico como protagonista do tratamento, oferecendo-lhe a chance de escolha, o segundo defende que o único caminho é a abstinência e que esta só pode ser conquistada com internação.

    O vereador Toninho Vespoli, do PSOL, também usou a linha de argumentação da violência policial e questionou o secretário da Justiça sobre o “desvio de função da GCM”. O secretário municipal de Justiça, Anderson Pomini, no entanto, negou que isso esteja acontecendo e chegou a afirmar que as ações da Guarda Civil tiveram o objetivo de proteger os moradores da região e que “não houve agressão, houve reação”.

    Vespoli também ressaltou a força da especulação imobiliária na região como um possível elemento de pressão para que ações como as que têm acontecido. “A gente vê desde a gestão Kassab diversos movimentos na área, houve o projeto de construção na antiga rodoviária que não foi para frente, a Porto Seguro investindo em locais na região e agora o Doria falando em construir habitação. Ele fará o que for mais vantajoso para os negócios, isso sim. Não está pensando nas pessoas”.

    Por fim, a ex-secretária de Direitos Humanos e vereadora pelo PSDB, Patrícia Bezerra, ressaltou o recorte social na forma como a sociedade trata o dependente químico. “Há pessoas, inclusive na alta cúpula da política, precisando de ajuda. Tem muito dependente de alta classe social. Só que eles cheiram ‘melhor’, não fazem xixi na calça, não ficam muitos dias sem tomar banho. Então é preciso ficar atento para que ações na cracolândia não representem uma faxina étnica e social”, concluiu.

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