Aderbal Ashogun: o saber preto para combater as mudanças climáticas

Mestre de cultura tradicional e artista plástico aponta que candomblé não é só religião, é conhecimento para salvar meio ambiente: “se matamos a natureza, nós morremos”

Mestre Aderbal Ashogun em evento sobre racismo ambiental na Agência Solano Trindade, em julho deste ano | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Quando menino, Aderbal Moreira Costa, 57, tinha costume de se enfiar no meio da mata, caçava, fugia para o meio das cachoeiras quando morava no bairro do Realengo, na zona oeste da capital fluminense. “A gente ia no Cachoeira do Barata, era um monte de point de menino pobre, ia pegar rã, colher fruta no Maciço de Gericinó”, lembra. “Minha mãe sempre me chamou de fiscal da natureza”, brinca.

Mais novo de quatro irmãos, o mestre de cultura tradicional e artista plástico mais conhecido como Aderbal Ashogun carrega e dá continuidade aos ensinamentos de sua mãe, Beatriz Moreira Costa, a Mãe Beata de Yemanjá, escritora, militante e ativista que fundou a Rede Afroambiental em 1992. Naquela época, ela também representou os Povos de Terreiro ao discursar na Eco-92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, evento realizado no Rio de Janeiro que completou 30 anos em 2022.

Foi ali que lhe acendeu de forma mais clara a necessidade de envolver o meio ambiente como uma questão prioritária. “Eu ouvi o discurso do Fidel Castro e aquilo mudou minha vida, em que ele fala que o homem é uma espécie biológica que se encontra em risco e tinha que agir para que acabe a fome e não o homem”, afirma ao apontar o discurso do então presidente cubano que atrelava à colonização de países periféricos como uma das principais causas da pobreza global.

“Chamar o candomblé de religião é muito pouco para nós. Minha mãe usou esse sincretismo religioso para sobreviver, mas para mim, chamar de religião é dizer ‘quero ser colonizado’, só que eu não sou isso”, aponta. “A espiritualidade que a gente vive é conhecimento.”

A relação com o candomblé não foi abraçada de primeira hora, apesar de a relação vir de berço. Aderbal tinha quatro anos quando a mãe resolveu se mudar de Salvador, na Bahia, para o Rio de Janeiro, em 1969. “Ela saiu do Nordeste por causa da violência doméstica, buscando por dias melhores, porque foi um processo muito difícil de separação com o meu pai”, conta.

“Minha mãe sempre teve muito talento, tinha como meta preservar a cultura dela, pela religião em si, e fazia questão de frisar todo o dia que a gente tinha que aprender nossa cultura porque isso era nossa sobrevivência.”

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E a vida era muito difícil. Mãe Beata ficava o dia inteiro fora de casa trabalhando e foi de tudo: empregada doméstica, artesão, costureira, figurante na Rede Globo… “Ela trancava a gente em casa, saía de manhã e voltava à noite”, relata Aderbal. “Eu tirava boas notas na escola, mas as minhas notas abaixavam por causa do meu comportamento, diziam que eu era hiperativo, mas eu só não tinha buscado meu lugar ainda”, conta. “Quando ela ia na Globo, ela me levava e eu ficava debaixo da mesa”.

“Eu era levado”, ri. “Tinha uma pilastra por dentro do prédio [que eu morava]. Eu passava pela janela que ia para o corredor e tinha uma grade para essa pilastra. Eu descia e ficava todo arranhado e, como não dava para subir de volta, eu ficava na porta de casa esperando minha mãe voltar e ela ia para cima”, lembra.

Durante a infância e a adolescência, entre mudanças de casas, Aderbal conta que ficava muito tempo na rua. “Foi naquela época que eu comecei a fazer pequenos furtos”, diz. Quando a família se mudou para a Baixada Fluminense, conseguiram um apartamento de dois quartos. “Minha mãe montou o quarto dela e deixou o outro para os santos”, lembra. “Eu comecei a ficar com muita raiva dos santos porque era a primeira vez que a gente tinha uma casa com dois quartos e a gente [os filhos] tinha que dormir na sala”.

Moraram em Nilópolis, também na Baixada, onde uma enchente acabou com tudo que tinham e passaram a viver no bairro de Miguel Couto, na cidade de Nova Iguaçu, onde Mãe Beata fundou, depois, o terreiro Ilê Omiojuarô, em 1985, que foi tombado há sete anos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural do Rio de Janeiro.

“Eu estava indo para um caminho de coisas mais pesadas, nunca tirei a vida de ninguém, Graças a Deus, mas cometia roubo, a gente tinha que sobreviver, e ali eu tive um chamado da minha mãe de santo, aos 15 anos”, lembra. “Ela perguntou se eu sabia quem eu era e eu disse ‘mais ou menos’. Ela perguntou: você sabe seu nome? Eu disse ‘Aderbal’. Ela falou ‘não, é Obáojúmi’, Iansã está dizendo que você é o rei dos olhos dela, então você não pode estar envolvido com isso. Aí eu comecei a descobrir a arte, a cultura…”

Ele aponta que a presença de figuras femininas na sua vida foi uma grande influência. “Eu fui criado por uma mãe que lutou pelo direito das mulheres, que ensinava para a gente tudo que era arte, não importava se você era menino ou menina, tinha que fazer tudo”, afirma. “A gente cantava, tocava, dançava, preparava a comida dos santos, e foi essa formação que me deu base como artista plástico, como mestre de cultura tradicional, como intelectual do povo para questionar a academia.”

Um dos pontos que mais o indigna é a população negra ser retratada apenas pelo ponto de vista da colonização e do sistema escravagista e não como produtora de conhecimento. “Eu comecei a sentir falta de alguém que falasse o que era o candomblé de fato”, afirma. Por isso, começou a levar oficinas e cursos para universidades após a Eco-92. “Eu estruturei uma minuta de um curso em que eu peguei os 16 orixás, ou seja, os 16 elementos, os 16 fenômenos da natureza, os 16 instintos básicos da humanidade”, prossegue.

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“Eu também passei a observar como as oferendas impactavam a natureza e eu passei a pesquisar como manter a cultura tradicional e um programa ambiental”, conta. Ele criou o Programa Oku Abo, que significa Espaço Sagrado na língua iorubá, que promove esses cursos e vivências de práticas e costumes tradicionais de herança africana.

A iniciativa foi premiada pelo Iphan em 2014, e propõe formas de realizar as oferendas reduzindo os efeitos no meio ambiente, como, por exemplo, destinar as sobras de alimentos para a compostagem, a fim de produzir adubo orgânico, e utilizar materiais biodegradáveis. “Se a natureza morre, nós também morremos”, aponta.

Ashogun é o nome do sacerdote do candomblé responsável pelo sacrifício de animais durante rituais. Ele indica que o racismo religioso desvirtua o debate ambiental. “O abate religioso existe em várias tradições e ninguém criminaliza, mas com a gente o racismo é tão grande que sempre se levanta essa bola de parte dos defensores de animais”, explica.

“A pessoa passa na frente do açougue, com várias toneladas de carne, o bicho esquartejado para venda e ninguém fala porra nenhuma. Mas a gente matar uma galinha para comer… Os povos tradicionais são perseguidos pelas suas práticas. A Friboi [empresa de alimentos], a Vale Mineradora, não. São dois pesos, duas medidas”, critica.

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Além disso, pontua que os movimentos de povos tradicionais são vistos no debate ambiental como secundários ou meros “objetos de pesquisa” quando deveriam estar na centralidade do assunto. “Em 30 anos, as ONGs verdes não conseguem ir além desse discurso, da mesma forma que a indústria automobilística produz carro elétrico mas com a exploração do lítio no sul global”, afirma.

“Agora somos nós que temos que mostrar para eles, que vão ter que desaprender esse viés de colonização e precisamos que coloquem esse dinheiro para a gente fazer. A gente tem o maior conjunto de leis ambientais que protegem o Brasil e o que aconteceu? Bolsonaro. Por que o Bolsonaro está aí [ocupando a presidência]? Porque a demarcação não foi efetivada em quase 20 anos”, critica.

O mestre rodou diversos países levando oficinas: Londres (Inglaterra), Madri (Espanha), Taiwan (China), La Paz (Bolívia), Berlim (Alemanha) e por aí vai. Foi consultor do Ibama para Práticas Religiosas em Unidade de Conservação. Mais recentemente, nos últimos três anos, ele conta que esteve em Portugal para uma especialização em arte contemporânea no Instituto Politécnico do Porto e agora retorna de vez para o Brasil.

Em maio, ele atuou na organização da Cúpula dos Povos, evento que aconteceu pela primeira vez 2012 de forma paralela à Rio+20, com a reivindicação de que os povos tradicionais participem de forma mais efetiva sobre o debate da crise climática. Neste ano, cúpula antecedeu a Rio+30, que acabou adiada devido às eleições.

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A cúpula será lembrada dentro do Festival Arte dos Povos, que trará os temas de ancestralidade e sustentabilidade no Rio de Janeiro, entre os dias 3 e 6 de novembro, no Museu de Arte Moderna (MAM), e que Aderbal está se preparando. “Eu fiz duas cirurgias por causa de um câncer no intestino, então descobri que não sou de ferro, né?” diz.

“Estou aqui por causa disso. Eu não tenho muita coisa a perder, não. Tudo que eu puder ganhar, vou para deixar para gerações futuras, para nossa população global, nossos jovens, as nossas crianças. O que eu puder fazer com minha arte eu vou investir para mostrar para o meu povo o valor da nossa cultura, da nossa arte, do nosso amor”, sentencia. “Nós não somos meramente religiosos, não somos mágicos, nós somos mestres de um conhecimento que a humanidade vai ter que respeitar.”

Este conteúdo foi produzido no âmbito do projeto Planeta Território, uma iniciativa da Território da Notícia com apoio do Instituto Clima e Sociedade para fomentar e distribuir informação de qualidade sobre a emergência climática, o contexto eleitoral e o impacto na população periférica por meio de totens digitais em estabelecimentos comerciais das periferias de São Paulo

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