Após três mortes misteriosas, bairro de São Paulo vive toque de recolher

    Jovens foram mortos em dois ataques por dupla de moto, em Cidade Tiradentes, no extremo leste; uma vítima deixou um filho de um mês e vendia panos de prato para viver

    Luciana segura o RG de Felipe, morto aos 18 anos | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Em Cidade Tiradentes, assim como em todos os outros lugares, as pessoas andam com medo. Só que nesse bairro localizado na zona leste de São Paulo, o medo não é provocado só por um inimigo invisível, o coronavírus, que ataca principalmente idosos e vai matando suas vítimas aos poucos, um dia de cada vez. O maior medo é o de armas e de homens, muito visíveis, que atacam e matam os jovens, com crueldade e rapidez.

    Ao menos três jovens foram assassinados desde a última terça-feira (17/3) nas ruas da quebrada. Felipe Santos Miranda, 18 anos, que é negro, e Brayam Ferreira dos Santos, 16, foram os primeiros a serem mortos em um ataque na rua Apóstolo Tiago Maior, por volta das 22h15 da terça-feira. No dia seguinte, Igor Bernardo dos Santos, 17, foi também morto a tiros por volta das 19h, na rua Etore Tommasini.

    Felipe (à esq.) e Brayam, mortos em ataque na terça (17/3) | Foto: Arquivo pessoal

    O modo de agir é o mesmo: dois homens em uma moto preta, modelo Honda GC 300 chegam, o garupa finge ser um assalto e, antes de as vítimas entregarem seus pertences, saca a arma e atira. Testemunhas que presenciaram os dois ataques confirmaram a ação à Ponte. A distância de um ponto para o outro é de aproximadamente 4 quilômetros.

    As mortes geram um clima de tensão. Há uma espécie de toque de recolher adotado pelos próprios jovens: depois das 20h não é para ninguém estar nas ruas. A aleatoriedade dos ataques gera apreensão e também a propagação de boatos sobre outros ataques. No entanto, apenas os dois citados, com as mortes de Brayam, Felipe e Igor, são confirmados oficialmente.

    Segundo a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo), liderada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), o DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) é responsável por investigar os três assassinatos.

    Mercado onde Felipe e Brayam estavam quando atacados e mortos | Foto: Arthur Stabile/Ponte

    “Os policiais trabalham para esclarecer todas as circunstâncias dos crimes”, diz a pasta. Anteriormente, o 49º DP (São Mateus) registrou os dois casos durante o plantão. A Ponte esteve na unidade na tarde desta sexta-feira (20/3), mas nenhum agente se disponibilizou a fornecer informações sobre as mortes.

    As vítimas

    Felipe era um jovem esforçado. Vivia em uma casa de madeira a cerca de 1 quilômetro de onde foi atacado. Os documentos da Polícia Civil apontavam que o local na rua Apóstolo Tiago Maior se tratava de um bar, o que não procede. No local funciona um mercado, como alertado pelos moradores. “Dá outra conotação”, reclamam. Os dois estavam com outros três amigos quando foram atacados.

    O rapaz havia acabado de ser pai. No dia 26 de fevereiro nasceu seu primeiro filho, Antony. Para sustentar a casa na qual morava com a mãe e os dois irmãos, além da namorada de 15 anos e, agora, o bebê, Felipe vendia panos de prato. A mãe, Luciana Santos Miranda, 33 anos, reclamava da ocupação.

    Mochila que o jovem usava para vender os panos de prato que sustentavam a família | Foto: Arthur Stabile/Ponte

    “Ele estudava, sempre trabalhou. Eu dava conselho que vender pano de prato não era solução. O Felipe precisava de um serviço registrado, mas ele dizia: ‘É o que tem, mãe’. Se não achava, vendia os panos dele”, conta à Ponte, na cozinha de madeira da casa.

    Enquanto mexia no celular, Luciana desabafava. Contava que o rapaz tinha saído de casa e, menos de 30 minutos depois, recebeu a notícia de que ele havia sido baleado e tinha morrido. Lembra que, mesmo com as dificuldades e o nascimento do filho, o incentivava a não desistir.

    “Eu ia ajudar nesse mês ele a comprar um skate, falava que ele, mesmo sendo pai, não mudava nada. Não deixaria de realizar os sonhos. Ele queria andar de skate”, conta Luciana, que mostrou o documento de identidade do jovem e repetia: “ele nunca fez coisa errada. Vendia pano de prato, mas não fazia”.

    Casa da família é de madeira e em local afastado do centro de Tiradentes | Foto: Arthur Stabile/Ponte

    Os familiares de Brayam optaram por poucas palavras. O jovem vivia a cerca de 150 metros do local de sua morte, em uma casa com portão de ferro e cuja sala dá praticamente para a rua. Lá, vivia com um irmão e a avó, que foi quem o criou. Nenhum deles quis muita conversa.

    “Não tem o que fazer, melhor deixar isso quieto. Não vai dar em nada”, lamentou o irmão, quando questionado se aceitaria receber um representante da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio e da Ouvidoria da Polícia de São Paulo para denunciar a execução de Brayam.

    A Rede divulgou nota demonstrando preocupação com o que acontece na Cidade Tiradentes. “Repudiamos a violência contra os jovens periféricos acompanhada de justificativas que cerceiam o direito de ir e vir para quem mora nas periferias de São Paulo. Solaridarizamos com as famílias que perderam de formal brutal seus filhos, entes queridos e publicizamos que vocês não estão sozinhas”, diz documento do coletivo.

    Nem mesmo sobre as projeções de futuro eles sabiam dizer o que passava pela cabeça do adolescente. A única coisa é que queria completar os estudos, pois havia parado de estudar na 7ª série do ensino fundamental. “Era muito novo, só 16 anos. Não estava pensando muito nisso”, afirmou. Uma familiar desabou quando falou sobre a morte. “Não pode ficar assim, temos que denunciar. Podem vir, eu falo. Quantos mais precisarão morrer?”, disse.

    Familiares de Brayam temem que morte “não dê em nada” | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Felipe e Brayam são as vítimas iniciais dos ataques. Igor Bernardo dos Santos se somou à estatística no dia seguinte em roteiro idêntico: ele e outros quatro amigos conversavam em uma mesa de xadrez feita de concreto que fica na rua Etore Tommasini. A dupla chegou na moto e anunciou o assalto. Não deu tempo de ele tirar o celular e recebeu quatro disparos, sendo três na cabeça.

    Um amigo presenciou a execução.”Deu tempo de fazer nada. Eu ouvi o primeiro tiro e saí correndo junto dos outros. Pensei que todo mundo tinha escapado, mas vi o Igor caído quando voltei”, conta o jovem, que havia acabado de retornar do enterro do amigo, realizado na zona leste de São Paulo.

    Assim como outros jovens da Cidade Tiradentes, o amigo de Igor, testemunha de seu assassinato, teme que mais pessoas sejam mortas. “É difícil não saber quem é. Vou ficar em casa, não dar bobeira”, disse, lamentando por saber que o caso “não vai dar em nada”.

    A Ponte questionou a Ouvidoria da Polícia de São Paulo, chefiada pelo ouvidor Elizeu Soares Lopes, sobre as mortes. Em nota, o órgão explicou que solicitou aumento do policiamento à Polícia Militar, uma apuração “rigorosa” por parte da Polícia Civil e pedido para o Ministério Público acompanhar o caso.

    Segundo a assessoria de imprensa da Ouvidoria, Lopes estuda fazer uma visita ao local para entender a dinâmica dos ataques e por conta do receio dos moradores.

    Atualização às 8h42 de sábado (21/3) para incluir nota da Rede de Proteção.

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