Ativista negra morta em ação policial no RS foi socorrida em porta-malas de camburão

    PMs invadiram sem mandado a casa de Jane Beatriz Machado da Silva, 60 anos, que passou mal e morreu; sem mostrar laudo, governo Eduardo Leite (PSDB) afirma que causa da morte foi “clínica”

    Imagem de entrevista que Jane deu ao documentário “Em frente da lei tem um guarda”, realizado em 2000 pela Casa de Cinema de Porto Alegre. | Foto: Reprodução

    Mulher negra, mãe, avó, bisavó, militante do movimento negro, feminista e lider comunitária, Jane Beatriz Machado da Silva, de 60 anos, morreu durante uma ação policial dentro de sua casa, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, na terça-feira (8/12). Amigos próximos relataram que, após sofrer violência policial, Jane foi levada ao posto de saúde do bairro dentro do camburão da Brigada Militar, mas chegou sem vida à unidade de saúde.  

    Para a Brigada Militar, comandada pelo governador Eduardo Leite (PSDB), a versão é outra. Após receber denúncia de que ocorriam maus tratos à crianças na residência de Jane, a patrulha foi até ao local, não encontrou evidências da queixa e a moradora sofreu um mal súbito, sendo assim socorrida pelos policiais militares até o posto. A Brigada disse ainda que os fatos estão sob apuração de Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado pelo Comando do 1º Batalhão de Polícia de Choque.

    O Instituto-Geral de Perícias do Rio Grande do Sul se recusou a mostrar o laudo, porém, através da sua conta no Twitter , o órgão disse que, após a necropsia, a causa da morte de Jane foi o rompimento espontâneo de um aneurisma cerebral e que não foi localizado no corpo nenhum sinal de trauma que justificasse o óbito. A informação do IGP é que a causa da morte foi clínica. 

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    Davison Soares Pereira, de 39 anos, amigo de Jane, contou à Ponte que, há uma semana, a Brigada Militar estava na comunidade todos os dias e que a casa da líder comunitária já tinha sido invadida quatro vezes. “Imagina, tu ter tua casa invadida quatro vezes pela polícia, sem que houvesse um mandado, sem que houvesse um motivo? Eles entravam como se fosse a casa deles. Estavam buscando um ponto de droga próximo e achavam que podiam entrar na casa de qualquer pessoa. Um dia antes de morrer, Jane chegou a dizer: ‘A partir desse momento, mais ninguém vai entrar na minha casa. Se eu tiver que morrer para defender minha família, eu vou morrer’, contou. 

    ‘Se eu tiver que morrer para defender minha família, eu vou morrer’, teria dito Jane antes da casa voltar a ser invadida pela polícia | Foto: Reprodução

    Segundo Davison, Jane foi ao mercado e, quando chegou, os brigadianos estavam dentro de sua casa. “Eles encostaram o revólver na barriga dela e ela chegou a cair no chão, onde bateu a cabeça. No velório deu para ver o curativo, inclusive. Ela pode até ter tido um mal súbito, mas não temos dúvida que foi ocasionado pela situação da ação policial. Como se não bastasse, eles demoraram para prestar assistência e levaram ela na cachorreira da viatura para o posto de saúde, mas ela chegou lá sem vida”, disse.  

    O vereador Matheus Gomes (PSOL) contou à reportagem que esteve no local e conversou com diversos moradores sobre o ocorrido. “A comunidade nos apontou uma série de abusos policiais que Jane passou, como uma abordagem policial masculina, com contato físico. Após ela cair, houve negligência para levá-la até o posto de saúde. E, ainda, ocorreu repressão policial violenta aos protestos da comunidade pela morte de Jane”, disse.

    A casa de Jane | Foto: Janaína Kalsing

    “Aqui em Porto Alegre, como em qualquer comunidade a nível nacional, temos muitas irregularidades nas comunidades, principalmente na grande Cruzeiro. Essas ações policiais geralmente são feitas com arbitrariedade, violência e desrespeito à população de periferia. Não foi a primeira vez que aconteceu, os moradores do Cruzeiro relataram diversas vezes que a BM invadiu residências dessa forma, e também a casa da Jane”, apontou Gomes.

    ‘Jane dividia e ajudava quem precisasse’

    A história de Jane é marcada, segundo os moradores e amigos, pelo seu empenho no movimento de luta social. Natural de Encruzilhada do Sul (RS), Jane morava há 40 anos na comunidade do Cruzeiro. Foi responsável pela construção da entidade União das Vilas, que congrega 36 comunidades da Grande Cruzeiro, na zona sul da capital gaúcha. Contribuiu com a fundação de diversas ONGs de apoio à mulheres, como a Maria Mulher, a Associação de Mulheres Solidárias da Vila Cruzeiro (Assmusol) e com a execução do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) na comunidade.  

    Além de servidora pública municipal, Jane era Promotora Legal Popular (PLP), formada pela ONG Themis, que capacita lideranças comunitárias em noções básicas de Direito, direitos humanos das mulheres, organização do Estado e do poder judiciário. Conforme a conselheira diretora da Themis, Maria Guaneci Marques de Ávila, Jane se formou na primeira turma de PLPs da Comunidade Cruzeiro. 

    O enterro de Jane no Cemitério Ecumênico João XXIII, em Porto Alegre | Foto: Virgínia Feix

    “A imagem de atuação das PLPs na perspectiva da ampliação das condições de acesso à justiça é a de uma ponte que aproxima a população do Estado, o cidadão dos serviços públicos. Jane era essa mulher em sua comunidade, sempre disposta a ajudar quem precisasse e tinha uma grande relevância no Cruzeiro. Estávamos sempre juntas nos cursos e eventos organizados”, conta. 

    Jane tinha 6 filhos, sendo três de sangue e outros três de criação. “Ela era a única líder da casa e, com o decorrer do tempo, foi criando os netos, os bisnetos. Era a terceira geração que ela ajudava com o salário dela. Mas Jane não ajudava só a família dela. Nossas famílias são amigas há mais de 30 anos e sempre vi como ela era capaz de dividir e ajudar quem precisasse”, diz Davison. 

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    Além de sua luta na comunidade, Jane gostava muito de pagode e carnaval, considerada por todos como a madrinha da comunidade. “Se tivesse, pagode, samba, carnaval, a Jane estava junto, tomando sua cervejinha, com todos nós. Não foi à toa que teve um protesto na comunidade com a morte dela. Nos mobilizamos, paramos a avenida, sofremos repressão policial. Tu acha que uma pessoa, se ela não fosse bem quista pelos seus, ia ter esse evento?”, conta Deivison. 

    “Essa morte ao povo preto acontece todo dia. Ontem foi o Beto, hoje foi a Jane, mas esses são só os noticiados. Isso acontece todo dia. Eu tenho dois filhos, um de 16 e um 13, e, ao invés de eu prepará-los para serem respeitados como cidadão, eu tenho que prepará-los para não serem abordados pela polícia, porque eles moram no morro, porque eles são pretos. Isso deixa a gente muito indignado. O nosso sentimento é de revolta”, disse o amigo de Jane. 

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    Segundo Deivison, a família, junto a ONG Themis, vai pedir um contralaudo. A vereadora Laura Sito (PT) e o vereador Matheus Gomes (PSOL) informaram que, junto com outros vereadores, comunidade local e ONGs haverá uma cobrança e fiscalização. “Vamos cobrar do poder público, governo estadual e Polícia Militar para que sejam identificados os agentes públicos que cometeram essa infração e que levou uma pessoa negra, mulher, periférica à morte. Vamos lutar para avançar em protocolos da Polícia Militar em relação ao combate ao abuso da autoridade policial, pois essa cena violenta é cotidiana em nossas comunidades, em Porto Alegre. Inclusive, após a morte de Jane, diversos moradores relataram e denunciaram que estavam sofrendo coação dos policiais. Então, precisamos enfrentar a responsabilização das instituições públicas para combater essa situação”, contou Laura Sito. 

    Em nota divulgada, a ONG Themis destaca como “imprescindível e urgente que as circunstâncias da morte de Jane sejam rigorosamente apuradas pelas autoridades competentes; que a família e a comunidade recebam o adequado apoio e respeito do Estado e que ações concretas sejam tomadas pelo Poder Público para que os direitos e as vidas das pessoas negras e periféricas não sejam mais sistematicamente violados. O nome e a história de vida de Jane não serão esquecidos. Por sua memória, exigimos justiça e reparação”.

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