Coletivo de egressas distribui roupas e absorventes para presas em saídas temporárias

Mulheres em regime semiaberto têm direito a quatro “saidinhas” por ano em SP, quando conseguem se atualizar juridicamente sobre seus casos e denunciar violência dentro dos presídios; coletivo Por Nós auxilia encarceradas na capital

Pernas com calça branca e uma sandália colorida
Ana Paula Alves Monteiro, que cumpre pena na Penitenciária da Feminina da Capital, calça um sapato doado pelo coletivo Por Nós antes de voltar para casa. Foto: Carolina Maingué Pires

A reportagem a seguir é fruto da colaboração de Flavia Saiani, apoiadora do Tamo Junto, programa de membros da Ponte — seja um membro do programa e ajude a Ponte a continuar com seu trabalho

Ana Paula Alves Monteiro, 36 anos, sobe a barra da calça até a canela para transpassar o cordão de uma sandália colorida. O nó passa por baixo da tornozeleira eletrônica, que irá monitorar seus passos durante os seis dias em que ficará longe da Penitenciária Feminina da Capital (PFC), na zona norte de São Paulo. Trata-se da primeira saída temporária de 2023 na PFC, que foi autorizada para cerca de 300 detentas do regime semiaberto e teve início nesta terça-feira (14/3). Na calçada em frente ao presídio, familiares se amontoam e organizações sociais e religiosas acolhem as presidiárias com lanches, absorventes íntimos, roupas e até passes espirituais.

As “saidinhas”, como são chamadas, são motivo de nervosismo e euforia. Por volta das 10h30, um homem trans que esperava para encontrar entes queridos chegou a convulsionar. Alguns dos artigos mais procurados pelas detentas, ansiosas para ver a família, são roupas e sapatos, já que saem de lá vestindo apenas o uniforme da prisão. A sandália que Ana Paula calçou foi doada pelo coletivo Por Nós, formado por egressas do sistema prisional que realizam o acolhimento na porta da penitenciária.

Ana foi transferida há um ano e 5 meses para a PFC, quando recebeu progressão para o regime semiaberto. Antes, estava presa em Campinas, totalizando treze anos de detenção pelo crime de tráfico de drogas. Foi na sua primeira saída temporária que conheceu seu filho menor, recém nascido na época que ela recebeu a sentença. Ela conta que tê-lo encontrado em uma das saídas do ano passado foi o que lhe deu a certeza de querer outra vida. “Eu achei que ele ia me rejeitar. Ver que ele não rejeitou foi o que me fez querer sair daqui e mudar de vida”, conta. Hoje, faltam cinco meses para o fim de sua pena.

Como nem todas têm uma família para recebê-las na saída da prisão, o coletivo Por Nós também ajuda dando dinheiro para a condução e até comprando passagens para outros estados. O abandono por familiares e ex companheiros é muito presente entre as detentas, aponta Helen Baum, 51, bacharel em direito, egressa do sistema prisional e uma das gestoras do Por Nós. “Na saidinha dos homens, se você for ver, tá dando volta a fila. Já as mulheres são abandonadas.”

Cristiane Aparecida de Oliveira, 48, tinha um comércio junto com seu esposo. Foi por causa dele que, em 2002, ela começou a traficar. “Ele pediu para que eu fizesse umas coisas”, disse. De lá para cá, Cristiane passou algumas vezes pela prisão. Há oito anos, quando cumpria pena na Penitenciária Feminina de Santana (PFS), foi deixada por ele, que casou com outra mulher. Em 2015, saiu de lá e conseguiu um emprego como doméstica, mas relatou que o dinheiro não era suficiente. “A necessidade fala mais alto”. Foi então que voltou a vender drogas, dessa vez por conta própria.

Seis anos atrás, foi presa novamente na PFS. Foi transferida para a capital, para o regime semiaberto, há um mês. Em seis anos, é sua primeira saidinha e primeira vez que coloca os pés do lado de fora. “É tudo muito estranho. Ver as crianças, os carros passando”, observa. Ela tem três filhos já adultos, que moram em Araçatuba, itnerior do estado. No entanto, vai passar o tempo longe do presídio na casa de uma amiga, em endereço informado à administração do presídio. “Meus filhos estão adultos, cada um tem sua vida, então não vou pra lá. Mas aqui fora eu consigo pelo menos falar com eles por telefone.”

Onde mora quem está preso

A diretoria técnica do Presídio Feminino da Capital deu parecer favorável à saída temporária para 304 das 464 detentas em regime semiaberto. O parecer é encaminhado ao juiz do Departamento Estadual de Execução Criminal (Deecrim), que concede autorização judicial. A Lei de Execução Penal prevê que as “saidinhas” são direito de quem já cumpriu 1/6 da pena, caso réu primário, ou 1/4 da pena, caso reincidente. Elas se destinam a visitas à família ou ao comparecimento a cursos de segundo grau, supletivos e profissionalizantes. São exclusividade do regime semiaberto, e a legislação cita que dependem da administração penitenciária atestar que a detenta possui “boa conduta”.

O artigo 124 do código também prevê que, ao conceder a saída temporária, o juiz imporá, entre outras condições, “fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício”. No caso da PFC, das 160 mulheres que não foram autorizadas a sair, a maior parte foi notificada com a observação de que não possuía comprovante de endereço ou que o comprovante divergia do endereço informado, apesar de o comprovante em si não ser exigido pela lei.

No entanto, o Deecrim de São Paulo determinou, por meio da Portaria Conjunta Nº2/2019, que as unidades prisionais da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) do estado devem exigir que as detentas “comprovem, por meio idôneo, o endereço onde permanecerão durante o período de saída”. Em dezembro do ano passado, o advogado Leandro Freire, da Comissão de Direitos da Organização dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), conseguiu que uma detenta sem comprovante de residência tivesse direito à saída.

“A lei não diz que precisa do comprovante, é uma portaria interna”, afirma. Além disso, ele avalia que a negação do acesso a direitos como esse não ocorre de forma isolada. “Como a presa vai ter acesso a comprovante de endereço se não recebe visita dos familiares? É uma série de violações de direitos que caminham juntas. Falta de informações da própria presa, ausência da família, juiz que não verifica essas coisas. É uma série de fatores.”

Dentro da penitenciária, as mulheres ficam à deriva. Quem não possui advogado ou não consegue contatá-lo muitas vezes não sabe sequer quanto tempo ainda tem para cumprir de pena. Por isso, outra frente do coletivo Por Nós é levantar os processos das detentas e orientá-las durante as saídas. No resto do tempo, comunicam-se por meio de cartas. O grupo ainda oferece apoio jurídico e psicológico em parceria com o Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria do Estado de São Paulo (DPESP), a Comissão de Direitos Humanos da OAB, a ONG Reflexões da Liberdade, a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa) e a rede psico.cannabis.

Sem tratamento de saúde, larvas e comida escassa

Também é na porta da penitenciária que muitas detentas recebem, pela primeira vez, acolhimento em relação a situações de violência. Daiane Alves Honorato, 35, tem um câncer na tireóide em estágio de metástase. Sentenciada em 2020 pelo crime de tráfico, ela relata que parou de receber medicamentos e tratamento adequado quando foi transferida, no final de 2023, para a PFC. Durante saída temporária no ano passado, reconheceu Helen Baum, do coletivo Por Nós, que teria cumprido pena junto com sua mãe na cidade de Franco da Rocha.

Conversando com Helen, ela e as demais integrantes do coletivo auxiliaram Daiane a buscar apoio jurídico junto à comissão de Direitos Humanos da OAB. Só então passou a ter acesso aos remédios e a frequentar consultas no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). Na volta da saidinha de março, iniciará a primeira dose de radioterapia.

O marido de Maria*, 72 anos, é quem vai buscá-la na saída da prisão. Abraçada no companheiro, a senhora arrasta os pés devagar até o carro que irá levá-la para passar a próxima semana em casa. Também é o esposo que, utilizando uma receita antiga, leva os remédios que ela toma para o coração, que não conseguiu que o Estado fornecesse.

Reclamou da qualidade da comida, que outras detentas também apontaram como escassa, e se queixou de infecções de pele, de onde saíam larvas. Ela e as companheiras de cela, também atingidas, acreditam que foram procovadas devido às condições de higiene. Nos braços e na barriga, marcas revelam os lugares infeccionados pelos parasitas. Maria conta que as próprias detentas removeram os bichinhos com ajuda de uma pinça. “Lá dentro é o inferno”, desabafa.

Por elas

O Coletivo Por Nós começou a ser gestado ainda em 2008, dentro da prisão, quando as irmãs Mary e Batia Jello conversaram com outras mulheres sobre o desamparo que sentiam e as violências do cárcere. Depois de cumprirem pena, algumas delas se reencontraram do lado de fora e deram materialidade às ações que haviam pensado para o Por Nós, hoje com cerca de doze integrantes. Sem apoio de companheiros, da família e do Estado, as mulheres entenderam que, frequentemente, as presas só poderiam contar com elas mesmas ou com as egressas do sistema carcerário. Ainda assim, a preocupação com quem fica do lado de fora não cessa. “As mulheres nunca vão presas sozinhas. Elas estão lá dentro, mas o coração fica na rua, com um filho, com a mãe”, diz Mary Jello.

Parlamentares querem o fim das saidinhas

Em agosto de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei (PL) 4086/2019, que queria acabar com as saídas temporárias. O então deputado federal Guilherme Derrite (PL-SP), autor do projeto e atual secretário da Segurança Pública do estado, acabou retirando o PL, que ainda teria que passar pelo crivo do Senado. Segundo publicou o site do plenário, Derrite havia alterado a proposta 6579/13, da senadora Ana Amélia (PP-RS), para abolir as saídas em vez de apenas restringi-las. Nos últimos dez anos, pelo menos cinco projetos que versam sobre o tema foram apresentados no Congresso.

A Portaria Conjunta Nº2/2019 estabeleceu que, em São Paulo, as saídas temporárias ocorrerão, anualmente, nos meses de março, junho, setembro e dezembro.

O que diz a SAP

Por email, a Ponte perguntou por que a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) demorou a fornecer tratamento de câncer para Daiane, que corria risco de vida, e se a dieta restritiva orientada pela nutricionista do Instituto do Câncer está sendo seguida, já que ela não pode ingerir sal comum, gema de ovo, animais marinhos e uma série de outros alimentos.

A SAP também foi questionada sobre a higiene do local, por conta das presas que relataram infecções por larvas, e sobre a quantidade e qualidade da comida ofertada. Por meio de nota, a SAP respondeu que:

A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) esclarece que as três reeducandas têm recebido todas as assistências médicas necessárias para os quadros de saúde que apresentam.

A reeducanda Daiane, custodiada na Penitenciária Feminina da Capital desde 13/12/2022, tem sido assistida por médicos e já passou por consultas e exames específicos. Neste ano, ela teve consulta com especialistas em três hospitais diferentes, um deles referência em tratamento de câncer, além de agendamentos externos até o final de abril. A presa tem seguido a dieta restritiva e faz uso de sal não iodado, tendo inclusive recebido o item para utilizá-lo durante a saída temporária concedida pelo Poder Judiciário, no último dia 14.

Maria* está na mesma unidade prisional passa por médicos desde o ano passado e teve medicamentos prescritos para suas lesões que, segundo apontamento médico, estão em fase de cicatrização.

*Nome verdadeiro ocultado, a pedido da entrevistada

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