Com risco de ter braços amputados, sobrevivente de incêndio em GO sonhava ser violinista

    Jovem de 15 anos luta para viver após ter 90% do corpo queimado; dias antes ele escreveu cartas para a avó: ‘Eu te amo muito’

    Conceição mostra o violino de Carlos | Foto: Yago Sales/Ponte Jornalismo

    Com o corpo envolvido em faixas e invadido por fios e tubos, Carlos*, de 15 anos, piscou duas vezes quando a avó, Conceição Cardoso da Silva, de 70, sussurrou próximo ao ouvido. Ela dizia que o violino dele está esperando no quarto da casa em que cresceu, na periferia de Aparecida de Goiânia, região metropolitana da capital de Goiás.

    “Também vou cozinhar muito macarrão com sardinha, tá?”, promete a avó, em visita ao neto na tarde de domingo (27/5). Carlos é o único sobrevivente de um incêndio que atingiu o alojamento 1 da ala “A” do Centro de Internação Provisória (CIP), instalado nas dependências do 7° Batalhão da PM goiana. Na última sexta-feira (25/5), as chamas mataram nove adolescentes.

    Sob a tutela do Estado de Goiás, o leito da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira é mais um endereço dramático do adolescente em estado gravíssimo. Em vez de tentar apagar o fogo, Carlos abriu o chuveiro e se abrigou ali até a chegada dos Bombeiros.

    Daniel de Freitas Batista, Douglas Matheus Pantoja, Elias Santos Bonfim, Elizeu Araujo de Castro, Gabriel Sena da Silva, Jhony Barbosa Cardoso, Lucas Oliveira de Araujo, Lucas Rangel Lopes e Wallace Feliciano Martins não sobreviveram às queimaduras. O Governo de Goiás, comandado por José Eliton (PSDB), culpou as vítimas pelo incêndio.

    Conforme a família, as queimaduras de 2° e 3° grau podem levar a amputação dos braços e das pernas. Conceição não aceita o diagnóstico anunciado pelos médicos. “Eu abro a porta daqui de casa e peço a Deus para que traga meu menino andando, de braços abertos para me abraçar, me beijar”, revela a avó ao Portal Dia Online, chorando na sala de sua casa.

    Em duas cartas enviadas para ela dias antes da tragédia, o adolescente promete não “mexer com drogas e roubar”, mas não abre mão de “usar as roupas” de que gosta. Garantiu que, quando saísse, iria “passar a ir mais na igreja, porque eu tenho muito que agradecer a Deus”.

    Carta escrita pelo adolescente dias antes do incêndio | Foto: Yago Sales/Ponte Jornalismo

    Escrita com caneta preta no dia 15 de maio, o menino pede à avó que compre linhas “mais claras”, porque “fica mais bonito” nas capas de filtro de barro que ele fabricava no Centro de Internação. No texto, Carlos conta que está fazendo jejum de manhã para ver se consegue ir embora e comemora que passou a dormir na cama de cima, saindo do corredor.

    “Tadinho, ele era obrigado a ficar de olho em um fogo que os meninos colocavam no chão. Não podia deixar apagar”, conta Conceição, mostrando outro trecho da carta. “Não preciso ficar de olho no fogo mais. Agora só vou ficar deitado até no dia em que for embora”, escreve o garoto, antes de dizer que ama a sobrinha.

    “Tô sentindo muitas saudades de vocês. Gostei do perfume e da camiseta”, agradeceu, antes de escrever “ti amo”.

    Futuro indefinido

    Levado à Igreja Congregação Cristã do Brasil desde pequeno pela avó, o menino não desgrudava os olhos do violino de um dos tocadores que entoava hinos. O tio, Ronivon Cardoso, de 46 anos, percebeu o interesse e deu um instrumento de presente ao garoto.

    Um pouco trêmulo, Ronivon mostra a fotografia do sobrinho no leito. “Ele está irreconhecível. Nem parece o menino alegre e esperto”, lamenta. “Ele fazia aulas de violino na própria igreja, mas foi se distanciando do instrumento nos últimos meses”, lembra, enquanto a avó mostra duas das quatro cordas arrebentadas do instrumento na última vez que o menino tocou.

    O adolescente foi preso pela Rotam (tropa de elite da PM de Goiás), escondido na casa de uma tia, depois de participar de um roubo em 7 de fevereiro de 2018. Acabou assumindo toda a culpa. Quando a juíza perguntou se ele tinha consciência de que seria condenado, o menino chorou.

    A partir do dia da apreensão, a vida da família simples, sem condições financeiras para pagar advogado, se transformou. “Ele foi levado para o 1° DP, ficou um mês na cela com criminosos da pesada, maiores de idade”, denuncia o tio. “Lá, eles rasgaram a Carteira de Trabalho dele para fumar maconha. É errado um menino ficar no meio de adultos. Foi a primeira vez dele preso”, ressalta.

    Avó recebeu a carta na última visita que fez ao neto | Foto: Yago Sales/Ponte Jornalismo

    Cerca de um mês depois, segundo a família, Carlos foi levado para o CIP, que é provisório. “Mas ficou lá até o dia daquela tragédia”, lembra a avó. Em cada visita, o menino relatava as barbaridades por que passava. Segundo a família, no dia em que deixou escapar uma frase vetada entre os menores, foi espancado e colocado de cabeça para baixo. Ele teria chamado a mãe de um colega de égua em uma brincadeira.

    Ele falava das noites em que tinha de ficar velando um foco de fogo no canto da cela. Contava sobre o odor, insalubridade e escuridão do lugar, além dos gritos durante a madrugada, dos olhares dos outros adolescentes e do abandono. Não por acaso, toda vez que via a avó, a abraçava com muita força. “E sorria, me cheirava, me beijava. Pedia para que a gente orasse junto”, conta Conceição.

    Antes de se despedir da reportagem, a avó lembra emocionada: “A enfermeira lá do centro me contou que meu neto cantava um hino quando levaram ele para o hospital”.

    *Publicado originalmente em Portal Dia Online

    **O nome do adolescente foi trocado para preservar a identidade dele.

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