Desgraça Clã: feridas e poesia de quatro mentes formadas pelos perrengues das ruas

    Conheça as histórias de Barba Negra, Billy Joe, Ítalo e Savio, quarteto que uniu ‘almas desgraçadas em ritmo e poesia’ para formar o grupo de rap Desgraça Clã, no centro velho de São Paulo

    Barba Negra desce as escadas do Edifício Bacellar, na Rua Dom José de Barros, número 239, querendo chegar vivo em casa. Depois de ter tatuado o dia inteiro, o moleque criado e feito pelas ruas do centro velho da cidade de São Paulo queria ter um lar. Ao lado da esposa, divide um apartamento no bairro da Santa Cecília. Ainda que tenha onde morar, só se sente em casa nas ruas.

    Percorrendo a rua 24 de Maio, tentando fugir das tentações de uma vida insana, ele pestanejou. Caiu na Praça Roosevelt. Em um grito de fuga e solidão, avistou um doido barbudo, largado na sarjeta. O semblante do amigo era motivo de represália entre as famílias. Barba passou por isso a vida inteira. Gosta de se juntar com o diferente. “Aê, vamos dar um tiro?”, urrou ao desconhecido. Na linguagem popular, “dar um tiro” é cheirar cocaína.

    Billy Joe não sabia muito bem de onde vinha e, muito menos, de quem era a voz. Levantou, impulsionado pela insurgência de fugir daquela vida desgraçada. Era tanto tapa atrás de tapa, que “não custava tomar no cu de novo”. Cheiraram. Se viram como raios na noite. Não se conheciam, até então, mas se tornaram amigos.

    Durante duas décadas Leonardo Caldas, o Barba Negra, desenvolveu uma técnica única e pessoal: descobrir o certo em pessoas erradas. Enxergar a alma remendada, as cicatrizes e se identificar com cada ferida. Era um sopro de vida saber que, dessa vez, não estava sozinho no degrau de uma vida moribunda. As descobertas são todas pelo centro da maior capital brasileira. É no jovem em situação de rua, é no trabalhador de Guaianases, é no homem de trinta anos abandonado na sarjeta… Basta um olhar.

    Trio, Ítalo (esq.), Barba Negra (no meio) e Billy Joe (dir.), que formam o Desgraça Clã com Savio, incomunicável desde março | Foto: Júlia Lee/Ponte Jornalismo

    Savio andava pelas vielas que rodeiam a Galeria do Rock – na mesma rua 24 de maio percorrida por Barba – sem nada. Os bens materiais inteiros guardados em uma sacola vermelha. Nos olhos castanhos carrega a fome de rima. Não sabe quando vai dormir, se a noite será na rua ou em alguma pensão. O café não é certo, depende da vontade do outro. Não importa. Para muitos é só mais um sobrevivendo, para Barba é um canal de dores e sonhos.

    Ítalo Bonfim demora cerca de duas horas para começar a gastar o gogó. De Guaianases até a rua Dom José de Barros, na região da República, a garganta se acalma para o longo dia de trabalho, que será aos gritos. Olha o piercing, olha a tatuagem. Tatuagem, moça? Em uma competição desenfreada de vozes, o menino sem o branco dos olhos – tatuados de preto – tira o ganha pão. Dentro do estúdio, localizado há três andares acima da cabeça de Ítalo, o “chefe” aguarda os clientes. Não faz sentido acalentar a relação de superior e subordinado. Na linguagem da rua é cada um fazendo o seu e correndo pelo certo. Foi no grito de um timbre engasgado por feridas que Barba enxergou em Ítalo tanto ritmo como dor.

    Nascia assim a ideia de produzir rap nos desamores vistos, vividos e sentidos. O quarteto se costurou em um: o Desgraça Clã.

    As primeiras rimas

    Para entrar no clã não é necessário apresentar nome ou sobrenome. Talvez nem idade. O requerimento pede por cicatrizes: quatro homens movidos pelo rap e por uma vida cinza. A identidade pode ter sido roubada e o passado engavetado. Ali o que vale mesmo é a audácia: “O que a gente faz é rua”, define Barba Negra. Rua é um estado de espírito, os desafetos da vida são uma consequência. Para ser um Desgraça Clã é preciso entender a diferença entre viver e existir.

    Diferenciar o grupo no meio dos transeuntes e trabalhadores da rua 24 de Maio é fácil, basta se concentrar no cumprimento. Em uma noite regada a álcool, cocaína e yakissoba, Leonardo Caldas, o Barba, instaurou com os companheiros um simbolismo. O toque é uma mensagem, quase um ritual de promessa, apresentado em duplas. As mãos direitas se encontram, as esquerdas ficam livres para dar um tapa na cara do parceiro, “mas devagar”. O charme fica nos ombros direitos, que caem e levantam, como em um passo de dança. “Só quem é amigo de verdade bate na mão, bate na cara e te levanta de novo. Essa é a ideia do toque”, comenta Barba, enquanto encena o “olá” dos “desgraças”. Para eles, ser amigo não é conhecer, é entender. Descobrir no trago de um cigarro quem precisou lutar.

    ‘O que a gente faz é rua’, define Barba Negra, andarilho dos becos e vielas | Foto: Júlia Lee/Ponte Jornalismo

    ‘Fala a real’

    No terceiro andar do Edifício Bacellar, o pequeno estúdio de tatuagem está prestes a se transformar no palco de uma cena teatral não ficcional. Leonardo e Savio estão frente a frente. Savio de costas para o notebook e Leonardo de costas para o espelho. Posicionados, os dois entram em um embate. De fuga, não de agressão. A ideia era ganhar o outro na intimidação, para sortear o azarado que me dará a primeira entrevista.

    Savio, o jovem do Rio de Janeiro de cabelos cacheados e descoloridos, sai na frente. Queima a largada. Quer descobrir antes de mim se o amigo morou ou não na rua. “Fala a real”, solta. Leonardo, vulgo Barba Negra, se incomoda. O menino magrelo de roupas largas se mexe rapidamente, coloca um pé na frente do outro e ginga o corpo flexionando os joelhos, em um movimento de sobe e desce. “Não tem que falar esses bagulho, a pessoa vai conversar amanhã”, dispara Barba. Dando início a um “ããããããh” bem longo de Savio. “Então eu que sou tímido?”, zomba o carioca.

    Barba mostra aspereza e sabe que vida de malandro ou é ou não é. “Não é que se eu passei pela rua, parça. O que a gente faz a gente é rua, ta ligado?” Não satisfeito, Barba abre a Caixa de Pandora – um artefato da mitologia grega, que continha todos os males do mundo – e desencadeia uma série de novidades sobre sua vida. O tatuador de barba preta e comprida explica que foi fecundado dentro do Carandiru. O presídio, desativado em 2002, já foi considerado o maior da América Latina. “Meu pai tava preso lá, minha mãe foi lá dar uma visitêeenha, entendeu?”

    O silêncio toma conta do lugar e Barba protagoniza um monólogo rápido. Conta que morou na rua, mas em terras espanholas. A mãe conheceu o padrasto no Badoo, um site de relacionamentos famoso nos anos 2000. Antonia se apaixonou pelo gringo e foi de mala e cuia, ou mala e cria, para a Espanha. Chegando lá, Leonardo se transformou em rejeição. Tomou rumo para longe de casa. Viveu na casa de ciganos e, como ele mesmo explica, aprendeu a sobreviver. “E quando nevou, parça, pela primeira vez? Se é louco. Você na rua lá, morando em casa de parceiro, tá ligado? “

    Embalado no sobe e desce de aventuras do amigo, Savio decide contar um pouco de como apareceu no mundo. “Eu sou filho de uma irregularidade de um militar.” É como se o microfone do monólogo fosse transferido ao rapper carioca. O silêncio, novamente, toma conta da sala e Savio explica que na época o pai fazia parte da Marinha e não poderia engravidar ninguém. Pelo menos foi essa história que chegou aos seus ouvidos.

    “Ele fez tipo, ilegalmente a minha pessoa. O mais louco que eu achei foi que nunca na minha vida eu vi ele”. Savio mexe no notebook e mostra a única imagem conhecida do pai: uma foto de Facebook. No registro, o homem está agachado, uniformizado com um macacão camuflado e segurando uma arma. “Seu pai era o Rambo, irmão?”. A pergunta de Barba inaugura uma onda de gargalhadas. Altas e intensas. Da mesma forma que começam em um instante, acabam em outro.

    Em uma varanda de três metros quadrados, Leonardo me acomoda em uma cadeira à sua frente. Ele não me conhece, eu não o conheço. “Me conta”, digo. Ele dá um trago fundo no baseado. Solta uma fumaça branca em minha direção. Os braços finos se mexem de forma destrambelhada. “Eu sou um sobrevivente, tá ligado?”, solta, ainda tentando manter a armadura. Aos poucos, vai deixando o Barba Negra de lado e abrindo espaço para o Leonardo sair. Um jovem de 20 anos que precisou, desde cedo, mentir sobre si para se sentir visível. Não tinha idade, mas tinha a rua avisando de sua maturidade. Decidiu contar vantagem, tentar se destacar na guerra de uma vida periférica. Escondeu o rosto em pelos, forjou o corpo magro em roupas largas. Deixou o jovem para ser adulto. Acreditaram. “Esse fato dos 20 anos quase ninguém sabe, viu?”.

    A cada vírgula Leonardo revive. “Que bagulho louco relembrar de tudo isso aqui. Só fumando muita maconha mesmo”. Entre um trago, um isqueiro no fim e um cheiro de suor de quem tatuou o dia inteiro, entendo a fórmula dele descobrir a dor do outro em histórias ocultas: ele viveu todos os capítulos de dor vivido por cada um deles. Viveu na rua como Savio, caiu no uso das drogas como o Billy Joe, conviveu com um padrasto agressivo como Ítalo e cresceu sem a presença do pai, como todos.

    Há dois anos e meio Barba voltou a pisar em São Paulo. Viveu parte da adolescência no sonho inatingível de um moleque pobre. Ao lado da mãe, que conhecera um namorado no aplicativo de relacionamentos, deixou as vielas de São Paulo para viver em um cenário medieval. O êxtase de viver em Alcalá La Real, na Espanha, se tornaria isca para o ódio semeado por anos. Vindo de uma família desordenada, sem pai presente e com dois irmãos que hoje em dia ele não sabe dizer nem a idade, concretizar a visão da neve era motivo de riso. “Fui com um skate e umas duas blusas de frio compradas no Torra Torra (loja de departamentos famosa em SP)”. Um respiro fundo inaugura uma gargalhada inocente, suave e abafada. Ele apoia os dedos no baseado abandonado no parapeito da varanda e busca o isqueiro. “Mano do céu, vou até acender mais isso aqui”.

    Quando observou o pai no saguão do aeroporto, depois de passar por muitas conexões, Leonardo queria fazer diferente. Tinha uma deportação contraída na cidade espanhola na mala. Chegou em São Paulo rumo a uma vida estabilizada – ou iria pelo menos tentar. Com menos de 18 anos de idade tinha sido espancado e escravizado pelo padrasto, contraído a imagem de encosto e sido abandonado pela mãe. Foi preso na cidade espanhola. Deixou o país depois de ser emancipado e ter aceitado o convite de viver junto com o pai, quase um desconhecido. A prisão era porque não sabia como deixar a raiva de lado, de como ser uma “pessoa direita” sem nunca ter tido a oportunidade nem sequer de chamar uma casa de lar. Revidou as ameaças do padrasto e o preconceito por nascido em um país periférico.

    “O mano tava xingando os brasileiros de lixo. Aí tinha um lixo grandão. Só que ta ligado, é Espanha, tudo parece um transformer“. Em La Pedriza, no coração da Espanha, o lixo é o fim. O que entra até sai, só que em cubos amassados. Ele não sabia, queria vingança e se arrependeu. “Tentei tirar o moleque de dentro do bagulho. Ele saiu zoado, quebrou clavícula”.  Ainda que a decisão tenha lhe causado prisão, em São Paulo, carregava o ar de menino. Em Diadema, o pai queria provar ao filho o respeito de ladrão que carregava. Não era esse o caminho de Leonardo.

    Ele pegou o skate e foi remando até o bairro da Santa Cecília, de volta ao centrão de São Paulo. Lá, casou com o primeiro amor de sua infância. Voltou para a rua, mas agora com o dom de encontrar novos desgraçados. Agora, era Barba. Já bastava ter sido fecundado dentro do Carandiru – onde a mãe visitava o pai com fama de ladrão – e conhecido o sistema prisional para menores na Espanha. Queria distância dessa vida.

    ‘Não sei se consegui, mas preferi morrer tentando’

    No Edifício Bacellar, quem opta pela escada ao invés do elevador sente o clima do estúdio de tatuagem já no segundo andar. Um ritmo presente. Vozes masculinas. Barulho da máquina de tatuar. A varanda, localizada na direção leste, é o ponto de entrada para o sol alaranjado e dourado. No canto da sala, Billy Joe é o único atingido pelos raios das 17h30 de uma tarde de verão. Sozinho, o homem barbado, com os olhos tatuados, esquece o barulho e cria uma rima na solidão, onde ninguém escuta. Na janela, o cheiro forte e amargo de maconha anuncia o fim do expediente.

    ‘Ou me rendia ao sistema ou tinha que ter alguma mudança radical’, explica Billy | Foto: Júlia Lee/Ponte Jornalismo

    Marcus Vinícius tem 30 anos e se tornou o rebelde da família quando resolveu tocar violão e andar de skate. No interior de São Paulo, em Ribeirão Preto, o menino de 14 anos deixou nome e sobrenome para se tornar Billy Joe. Nas ruas da cidade pacata descobriu a arte. Aos 16, marcou nas costas – de um ombro ao outro – o nome que seria ocultado na capital paulista. Marcus soa como saudade, amor e afeto, sentimentos deixados para expandir o universo das rimas aos jovens da periferia.

    O cara carrancudo, com o estilo “bem satã”, como brinca Ítalo, tem uma risada tênue de som acústico com toques de melancolia. No peito carrega o sentimento da saudade de uma guerreira que ele deixou há 330 quilômetros de distância, quando abandonou Marcus para ser Billy Joe. Da mãe, o que mais sente falta é do bom dia. “É Deus no céu e minha mãe na Terra”.

    Deixou a moradia certa no final de 2017. Para o pai, que sonhava ver o filho formado em uma universidade, casado e com um emprego estável, era o cúmulo o menino querer viver a vida. Não tinha como tornar sólido o líquido. “Ou eu me rendia ao sistema e ia trabalhar para alguém ou tinha que ter alguma mudança radical”. Juntou “meia dúzia de roupa”, 12 reais, comprou passagem para a cidade mais próxima de São Paulo e percorreu parte do caminho com o apoio de assistência social.

    Saiu de Ribeirão Preto na segunda-feira e chegou na rodoviária Tietê na sexta. Tinha 150 reais acumulados no bolso, de artesanatos feitos ao longo da estrada. Chegou, mas não sabia para onde ir. Disseram que lugar de rap era a Praça Roosevelt. No terceiro dia, perdeu tudo. A mochila foi furtada e Billy ficou só com a roupa do corpo. “Pronto, agora eu tô na bosta”. Até o primeiro dia de 2018, ficou na rua sem um teto. Morou de favor e hoje está instalado na Vila Gilda, ao lado da Represa de Guarapiranga, zona sul de São Paulo.

    Billy Joe (esquerda) e Ítalo (direita) em momento de descontração na rua Dom José de Barros | Foto: Júlia Lee/Ponte Jornalismo

    Billy Joe se propõe a fazer o papel abandonado pelo Estado: ensina ritmo e poesia para a molecada da periferia onde mora. Tenta ser pai para os meninos que estão perdidos no mundo do crime. É situação comum para quem mora na quebrada ver moleques sem uma figura paterna, seja por abandono ou perda precoce. A cada palestra na Fundação Casa, Billy planta a semente de possibilidades: “Se eu consegui, vocês também podem”.

    No dia em que Marcus Vinícius partir dessa para uma melhor, quer deixar gravado na lápide o legado de Billy Joe: “Aqui jaz, eu não sei se eu consegui. Mas eu preferi morrer tentando”.

    ‘Tinha preconceito com essa parada de jornalista’

    Ítalo tem os olhos pretos e a alma escondida. Em uma mesa de três lugares ele escolhe sentar à minha direita, de modo que o seu olhar possa ficar perdido no horizonte. A precaução era uma forma de não ser enganado. Uma vez acreditou em uma equipe de reportagem. No fim, foi parar no programa evangélico “Fala que eu te escuto”, da Rede Record. Viu na televisão sua imagem agregada à região da Luz conhecida como Cracolândia, local onde pessoas dependentes químicas se amontoam sem auxílio social. Caiu em uma armadilha. Havia concedido entrevista para o assunto “pessoas estilosas”. Ficou ressabiado desde aquele caso. Precisei de 20 minutos de conversa para ganhar confiança. Deu certo.

    A armadura era uma forma de manter o passado escondido, trancado, se possível “enterrado em um caixão a sete palmos da terra”. Visitas as memórias é dolorido, as marcas dos tombos seguem contigo. Prefere esquecer a lembrar de portas fechadas. Agora, aos 23 anos, só pensa em expandir a sua música. O rapaz tímido enche o peito ao ver a molecada rimando. É a forma que ele encontra para acreditar no futuro: “Por isso que a gente faz o rap: pra tirar o moleque da rua e abrir a cabeça da Dona Maria.”

    Uma vez, participando da Batalha da Zil, que acontece na região de José Bonifácio, na zona leste da capital paulista, viu a cena “mais bonita”. Enquanto os meninos rimavam, a polícia chegou soltando tiro de borracha. Um “menor”, que batalhava por incentivo do Ítalo, foi atingido e, ao invés de se vingar da truculência, resolveu compor.

    ‘Somos mensageiros’, diz Ítalo Bonfim sobre os integrantes do Desgraça Clã | Foto: Júlia Lee/Ponte Jornalismo

    Ítalo Gomes Pereira Bonfim tinha três anos de idade quando viu a violência pela primeira vez. Ele e a mãe foram jogados para fora de casa só com a roupa do corpo. Ainda que muito pequeno, ele guarda na memória imagens das agressões que a mãe recebia de seu pai biológico. Do sangue paterno carrega só a lembrança da violência e o sobrenome Bonfim. Nada mais.

    Cresceu com um pai substituto, que só serviu para transformar a imagem paterna em uma relação ainda mais distante. Aos 15 anos, o padrasto foi preso. Ítalo contraiu o fardo de sustentar a família. A mãe e a irmã estavam em suas mãos. O homem ficou encarcerado por cinco anos. Motivo? Corrupção. “Ele vacilou pra carai nessas ideias, né? Policial e ainda corrupto”, explica.

    Enquanto lutava para manter sua comida e a das duas no prato, Ítalo queria mais. Escolheu Bonfim como nome artístico e substituiu a violência do sobrenome por música. Aos 13 anos, inaugurou a carreira. Hoje, com o Desgraça Clã formado, a missão é levar a palavra, não a de religiosidade católica, mas da religiosidade que o rap carrega: “Não digo que somos rappers, ou caras que cantam rap, eu digo que somos mensageiros. A gente passa a palavra adiante, do nosso cotidiano, das coisas que estão erradas”.

    Impaciente, ele mexe nos cartões de visita, mexe as pernas e desce apressado os 11 andares do Sesc 24 de Maio, na região central de São Paulo. O tempo da entrevista acabou. Assim que pisa na calçada, já prepara e solta a voz: “Olha o piercing, olha a tatuagem”. E segue mais um dia de luta.

    Ser rua não tem volta

    Era horário de almoço, o céu estava azul e o sol a pino. Uma multidão tomava conta das calçadas do centro velho de São Paulo. Na rua Líbero Badaró, em frente à Prefeitura de São Paulo, Savio estava deitado no chão, enrolado em uma manta xadrez e com os dedos apoiados em um caderno tamanho A5. Tímido, ele me pergunta se eu estava com o Jefferson, seu amigo de rua. Digo sim e subo no prédio número 182. Da janela do primeiro andar o observo.

    ‘Meu foco é abrir os olhos’, comenta Savio | Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    Um dia, o menino de aparelho nos dentes e boné na cabeça levanta. Consigo, pela primeira vez, olhar em seus olhos sem abaixar. Percebo que são caramelos. Ele saca o caderno surrado e me mostra o seu eu: a rima. Enquanto escuto os versos percebo que na canela de sua perna esquerda há feridas profundas e agonizantes. Jefferson percebe meu olhar e explica: “Ele veio do Rio de Janeiro de muletas”.

    Quando Savio pisou pela primeira vez em São Paulo foi atropelado. Queria um emprego e o saldo foi a tíbia e a fíbula quebradas. Voltou para Macaé, cidade distante 180 quilômetros da capital carioca, para operar. Ao longo dos 20 dias em que aguardara a cirurgia no HPM (Hospital Público de Macaé), pensava no sonho. Ele não esperou nem a recuperação e viu no acostamento da rodovia o caminho de poder ser, pelo menos uma vez, feita a sua vontade.

    Em meados de novembro de 2017, ele pisava pela segunda vez na cidade que lhe colocou em um centro cirúrgico. Agradecia aos céus por ter chegado vivo na metrópole paulistana. Havia percorrido 622 quilômetros na BR 116. Saiu do bairro Sol y Mar, em Macaé, para chegar na Rodoviária do Tietê, em São Paulo. Trajeto feito sob muletas. Entre uma carona e outra, pernoites em postos de gasolina, 20 quilômetros atravessados a pé e abrigos, ele se questionava do porquê ter escolhido esse destino. A mente respondia em batidas, rimas e poesias. Era o RAP. E nada iria parar Savio Daniel Nascimento Santos.

    No final de 2018, entre as ruas e vielas do centro de velho de São Paulo, no murmurinho da rua 24 de Maio, Savio seria inserido em um contexto igualitário, onde as dificuldades da vida eram o único passaporte. Em Billy Joe, Barba Negra e Ítalo Bonfim viu que morar na rua não era uma negativa, era um ‘sim’. Um quarteto formado e empolgado pela arte, mas instaurado pelas cicatrizes de quem aprendeu, viveu e se construiu na rua. Em São Paulo, encontrou uma única forma de sobreviver: a rima.

    Savio passou por um momento obscuro depois de perder a mãe, o avô e do casamento chegar ao fim, depois de duas traições por parte da companheira. Não havia mais sentido nenhum viver. Até que um amigo viu nele a oportunidade de lucrar. Apresentou para o menino sem expectativa de vida a cocaína: “Me sentia muito confiante achando que não ia viciar. Eu cheguei a usar 17 papelotes em um dia”, lembra.

    No dia 14 de janeiro de 2019, Savio entrou em contato comigo, em um comunicado urgente. Me contou sobre um projeto e me chamou para conhecer. No dia 16 de janeiro, conheci o Desgraça Clã. Passei fevereiro e março conhecendo cada um deles. Quando encontrei com Savio, no dia 2 de fevereiro, ele contou que estava tentando se manter afastado das drogas, tinha conseguido deixar de lado a maconha, mas a cocaína ainda era uma barreira. Ao longo das semanas seguintes, amigos e conhecidos passaram a me procurar para ter notícias de Savio. Eu não sabia. Nosso único meio de comunicação sempre foi o Facebook e a rua. Quando não conseguia contato por mensagem, vagava pelas ruas do centro. Por vezes o encontrava.

    Sávio não responde mensagens e não vaga pelo centro de São Paulo desde o dia 7/3 | Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    Desde o meu primeiro contato com Savio, ele sempre me manteve informada sobre sua vida. Me explicava quando deixava o centro para colocar as ideias no lugar, ou quando estava afastado para recuperar os ferimentos de agressão no bar, motivada pela fome. Pediu um salgado e levou um soco na boca.

    Do nosso primeiro encontro, em junho de 2018, até o último ele me dizia sobre como o rap era sua vida: “Meu foco é abrir os olhos”. Um dia encontrei Savio por acaso, no meio da Praça do Patriarca. Ele estava atrás de Jeferson, seu amigo de rua. Tentava convencer o amigo a sair das calçadas, a dividir um quarto de pensão com ele e, principalmente, tentava afastá-lo das drogas. Um problema também presente na vida de Savio.

    Ao longo da construção dessa reportagem ele sumiu e não contatou mais ninguém. Desde o dia 7 de março que Savio não é visto e não responde mensagens. Ser rua é um estado, as incertezas da vida são consequências sem volta.

    O Desgraça Clã quer contar essas histórias, mostrar as feridas e as incertezas do dia-a-dia da rua.

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