‘Doria é cúmplice do apartheid palestino’, diz membro do BDS sobre gasto milionário em armas israelenses

Estado de São Paulo fez pregão com a empresa Israel Weapon Industries Ltda (IWI) para a compra de carabinas para Polícia Civil. Relação entre o governo paulista e a IWI é alvo de campanha permanente do movimento BDS (Boicote, Desinvestimentos e Sanções) após compra de metralhadoras para a Rota

O governo de São Paulo pretende gastar mais de R$ 2 milhões em armas israelenses para a Polícia Civil | Foto: Divulgação | Governo do Estado de São Paulo

O governo de São Paulo deverá efetivar uma compra de 200 carabinas da empresa Israel Weapon Industries Ltda (IWI) para a Polícia Civil do estado. Cada arma custará o equivalente a R$ 13.500, no total serão gastos cerca de R$ 2.700.000. A aquisição, segundo o Diário Oficial do Estado de SP, foi feita presencialmente no dia 17 de agosto de 2021 e ainda não foi homologada, uma vez que amostras das armas deverão passar por testes. 

A IWI é representada no Brasil por Ederson da Cruz Domingos e a estimativa de entrega das armas é para janeiro de 2022. No geral, a carabina é considerada uma arma de fogo mais curta que o fuzil, de porte intermediário, porém menos potente. Na visão de ativistas de movimentos sociais e de palestinos, a relação comercial demonstra a cumplicidade do governador João Doria (PSDB) com as violações de direitos humanos cometidas contra o povo palestino que vive em Israel.

Em entrevista à Ponte, o ativista do movimento Boicote, Desinvestimentos e Sanções (BDS), Pedro Ferraracio Charbel, 29 anos, que colabora em uma campanha permanente da organização para barrar compras de armas feitas pelo Brasil de empresas israelenses, avalia que a compra demonstra uma posição do estado de SP favorável a modelos de segurança pública extremamente militarizada, letal e racista. “Ele busca então parceiros que correspondam a essa expectativa. A IWI é uma empresa que está diretamente envolvida no contexto do apartheid, ocupação e colonização contra os palestinos.”

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Charbel é formado em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), onde também é mestre em Sociologia, além disso, foi um dos fundadores da Frente Palestina da USP e da Rede Educacional para os Direitos Humanos na Palestina / Israel (FFIPP-Brasil). Para ele, Doria também desrespeita a 4ª Convenção de Genebra ao aliar-se comercialmente à IWI. “Mostra um total desrespeito do Governo com as suas obrigações frente ao direito internacional. O Brasil como signatário da 4ª Convenção de Genebra tem o dever, de acordo com a Corte Internacional de Justiça, de não ajudar a manter a situação em relação às violações de direitos humanos criadas por Israel, o que significa no limite não contratar essas empresas.”

Nesse sentido, o sociólogo é categórico ao dizer que “São Paulo já deveria ter excluído empresas que são cúmplices ou que violem indiretamente os direitos humanos nesse contexto. É uma obrigação inclusive das instâncias de governos locais no Brasil”, esclarece.

Ele explica que as carabinas vindas da IWI ao Brasil alimentam uma indústria que utiliza as armas para fomentar o massacre de palestinos na Faixa de Gaza e continuar com a expulsão da população palestina nativa de todos os seus territórios. “Israel sustenta um verdadeiro laboratório com o povo palestino, essas tecnologias são vendidas e testadas sobre corpos ou espaços palestinos. Existe um chamado da sociedade palestina por solidariedade, eles pedem que a gente não ajude a aprofundar o apartheid e não é isso que o governo faz quando a faz esse contrato.”

A associação entre o governo Doria e a IWI não é nova. Em setembro de 2020, o movimento BDS chamou a atenção da sociedade em uma campanha para barrar a compra de dez metralhadoras Negev 7.62 destinadas à Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), batalhão de elite da Polícia Militar de São Paulo. 

Em nota da campanha, o movimento destacou que as metralhadoras seriam utilizadas sobre a população pobre do estado de SP. “O resultado será a intensificação do genocídio de pobres e negros nas periferias paulistas. Testadas antes nas ‘cobaias’ palestinas pelo apartheid israelense, tais metralhadoras (calibre 7,62x51mm) têm potencial para promover verdadeiros massacres em áreas residenciais densamente povoadas, como as favelas de São Paulo, em que vivem mais de 2 milhões de pessoas.”

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De acordo com o movimento, a Israel Weapon Industries (IWI) surgiu em 2005, sendo o resultado da privatização e cisão da divisão de armas pequenas da Israel Military Industries (IMI). “Esta última foi criada ainda antes da Nakba (a catástrofe palestina com a criação do Estado de Israel mediante limpeza étnica), em 1933, como informa em seu site. Tem sua história, portanto, construída sob corpos palestinos e violação de direitos humanos fundamentais para a colonização em curso”, diz a nota.

A linha de produtos e acessórios IWI é utilizada pelas Forças de Ocupação de Israel, aponta o texto, “que o sionismo chama falsamente de Defesa – na sigla em inglês, IDF. Estas reúnem as antes paramilícias que promoveram genocídio em dezenas de aldeias palestinas em 1948 e limpeza étnica em mais de 500 delas”.

Em entrevista à Ponte, Soraya Misleh, coordenadora da Frente em Defesa do Povo Palestino, que reúne organizações da sociedade civil brasileira, da comunidade árabe e muçulmana em defesa do povo palestino, a possibilidade da nova compra do governo paulista é indignante. “Em meio à pandemia e à fome, o governo Doria resolve gastar milhões na compra de armas israelenses para a Polícia Civil. É indignante. E nós sabemos quem são sempre os mesmos alvos que essas balas vão encontrar: pobres, negros e indígenas”. 

“E Doria ainda compra armas usadas na violenta colonização sionista na Palestina, aumentando a cumplicidade do Estado de São Paulo com o regime de apartheid israelense. O sangue dos oprimidos e explorados aqui vai sustentar a ocupação e, portanto, mais derramamento de sangue palestino. Nas mãos das forças de ocupação, a empresa israelense que vai fornecer armas para a Polícia Civil, IWI, foi fundada no ano de 1933, ainda antes da Nakba”, complementa a ativista.

Misleh também reitera que a história da empresa é marcada pela violação de direitos humanos “para a colonização em curso”. “A IWI também vendeu suas armas para ditaduras na América Latina e Central. É a mesma empresa da qual Doria comprou metralhadoras de guerra para a Rota no ano passado, que uma ação judicial do advogado israelense de direitos humanos Eitay Mack tenta barrar a entrega.”

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A ação a qual a ativista se refere foi reportada Ponte no ano passado. Conforme disse o advogado e ativista de direitos humanos israelense Eitay Mack em 2020, a expectativa era positiva para barrar a chegada das armas ao Brasil. “Eu comecei essas ações há sete anos. Eu movi duas petições contra o governo do Sudão do Sul em 2015 e 2016, e Israel parou de vender armas letais para eles. A questão é que quem está cuidando disso é o Ministério da Defesa de Israel, e eles não se preocupam com problemas com direitos humanos. Porém, é possível que a pressão da população local faça diferença”, explicou na época.

Quase um ano depois, ele aponta que houve um pedido de rejeição à ação em Israel. “O Ministério da Defesa pediu ao tribunal que rejeitasse a petição por ser uma tentativa de interferir na segurança nacional e nas relações exteriores do Estado de Israel. Há uma ordem de silêncio na decisão do tribunal, então não posso dizer o que o tribunal decidiu. Posso dizer que pelo que sei os embarques continuaram e a Rota e a PM receberam as metralhadoras Negev”, diz Mack em nova entrevista à Ponte.

Diante do novo cenário de continuidade de comercialização de armas entre o governo de São Paulo e a empresa israelense, o advogado acredita que as novas armas possam ser usadas para cometer violações de direitos. “Acho que existe o mesmo risco com a Polícia Civil, assim como com a Rota e a PM, de que as carabinas sejam utilizadas para execuções extrajudiciais, violações de direitos humanos e atividades criminosas por parte de membros da Polícia Civil. A política do MOD [Ministério da Defesa] israelense é não colocar quaisquer condições sobre o uso das exportações de defesa. O Ministério israelense não se importa com o que está sendo feito com as armas uma vez que foram transferidas”.

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Com isso, a ativista Soraya Misleh relembra que a IWI é também “a mesma empresa que vendeu metralhadoras Negev para o governo do Amazonas”, diz. A compra relatada por ela foi feita em janeiro deste ano, em meio ao colapso na saúde do estado por conta da pandemia da Covid-19. 

Conforme noticiou o jornalista Raimundo de Holanda em 13 de dezembro, o “governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), autorizou a Polícia Militar a adquirir junto à empresa Israel Weapon Industries (IWI) Ltd. 14 metralhadoras Negev Ng7, calibre 7,62, para uso em patrulhamento nos rios do Amazonas”. 

Ele complementou mencionando a periculosidade dos armamentos: “As metralhadoras – que vão custar ao bolso do contribuinte 167.600,00 dólares – são consideradas armas de guerra, com taxa de tiro de 700 balas por minuto. Não é preciso falar dos riscos inerentes ao uso do armamento por uma força que tem se metido em conflitos com indígenas e caboclos”.

Apesar das dificuldades em barrar a chegada de novas armas israelenses no país, o representante do BDS no Brasil, Pedro Charbel destaca uma das vitórias do movimento. “No Brasil a gente teve uma vitória muito simbólica, que foi quando a Elbit perdeu. A Elbit é a maior empresa israelense fabricante de drones, que são utilizados na faixa de Gaza, inclusive participou da construção do muro e essa empresa tinha um acordo tripartite com o Governo Federal e o Governo do Rio Grande do Sul e ela perdeu esse contrato milionário depois de muita pressão do movimento”, lembra ele sobre a movimentação ocorrida em 2014.

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Em relação à nova compra, ele diz que com certeza o movimento vai atuar. “Estamos avaliando de que modo tentar reverter este quadro, sempre junto com os movimentos sociais, atuando também como parlamentares, que estão dispostos a incidir e fazer pressão sobre esse tema. No ano passado fizemos um requerimento de informação questionando em diversos estados do Brasil, inclusive o estado de São Paulo, sobre os vínculos com empresas militares e agora com essa notícia do novo pregão vamos reavivar esse processo. A campanha contra a indústria militar está acontecendo no mundo todo”, diz.

A relação mercantil entre o Brasil e Israel vem de antes do governo Bolsonaro (sem partido), diz o sociólogo. “Nos governos anteriores o Brasil se tornou um dos maiores compradores de armas de Israel do mundo, a gente com certeza deve estar entre os cinco maiores compradores de armas de Israel, isso aumentou mais no governo Bolsonaro”, explica.

Integrantes da Rota em treinamento no uso de metralhadores israelenses | Foto: Reprodução

Segundo ele, recentemente na Câmara dos Deputados começou a tramitar e já passou na Comissão de Relações Exteriores um acordo justamente na área de defesa e outro na área de segurança pública. “São acordos que se aprofundam justamente essa relação, não só na compra de armas mas também de troca de experiências, treinamento. Infelizmente essa relação vai para além da compra de armas e munições, é também sobre a tática, sobre os procedimentos que essas forças policiais utilizam.”

Um dos acordos se trata do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 228/21. No texto de autoria do poder executivo, por meio da Mensagem Presidencial 371/19, que foi transformada no projeto, medidas como o intercâmbio de tecnologias, treinamento e educação em questões militares, colaboração em produtos de defesa e troca de conhecimento e experiências nas áreas operacional, científica e tecnológica relacionadas à defesa serão realizadas entre Brasil e Israel. O projeto deverá ser analisado agora pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), presidida pela deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF).

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Outros dois acordos também tramitam na Câmara dos Deputados, um deles é de cooperação militar (MSC 37/2019) e o outro de cooperação científica (MSC 556/2019). Recentemente, a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (Cred), aprovou o acordo que trata sobre uma maior interação entre as agências de segurança e inteligência dos dois países. 

Em maio deste ano, a Frente Parlamentar Mista pelos Direitos do Povo Palestino divulgou a nota pública “Pelo fim da escalada de violência, mortes e destruição na Palestina”. No documento os parlamentares repudiam “os laços econômicos, militares e políticos do governo brasileiro com estas violações, assumindo o compromisso de atuar para que esta cumplicidade não se aprofunde ainda mais, através de acordos como os enviados pelas Mensagens 371 e 556 de 2019”.

Diante dos avanços nas relações militares, científicas e na segurança pública entre os dois países, Soraya insiste: “É importante fortalecer a mobilização contra essa cumplicidade criminosa com a indústria da morte. Contra a necropolítica e o apartheid, seguimos em luta pela vida”.

Outro lado

Procurados, a Polícia Civil, por meio da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), e o governo de São Paulo não responderam qual o objetivo da compra e nem qual a posição do governo a respeito das violações de direitos humanos cometidas pela empresa IWI, apontadas pelos movimentos sociais. 

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