“É preciso desencarcerar mulheres”, conclui pesquisa

    Relatório #MulhereSemPrisão, lançado pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania em São Paulo nesta terça-feira (07/03) analisa, sob uma perspectiva de gênero, o sistema prisional brasileiro, onde a taxa de mulheres presas cresceu 503% entre 2000 e 2014

     

    Pesquisadoras do ITTC apresentam relatório “Mulheres Sem Prisão” na Faculdade de Direito da USP. | Foto: Fernando Martins / Ponte Jornalismo

    A taxa de mulheres no sistema prisional brasileiro cresceu 503% entre 2000 e 2014, período no qual a de homens cresceu 220%, de acordo com dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) apresentados no relatório #MulhereSemPrisao Desafios e possibilidades para reduzir a prisão provisória de mulheres, lançado pelo ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) em São Paulo nesta terça-feira (07/03) que precedeu o Dia Internacional da Mulher, celebrado hoje.

    As mulheres também são maioria quando se analisa apenas o cenário do encarceramento provisório. Pessoas que ainda não foram julgadas representam 40,1% de toda a população carcerária, das quais 44,7% são mulheres, ao passo que os homens são 39,08%.

    O documento analisa, sob uma perspectiva de gênero, o sistema prisional e seus mecanismos no Brasil quarto país com maior população carcerária do mundo , a partir de entrevistas com 27 mulheres inseridas na triste realidade do sistema prisional do país e da análise de autos de prisão em flagrante, folhas de antecedentes, decisões de juízes e juízas que decretam pela prisão preventiva ou concedem a liberdade, pedidos de habeas corpus e denúncias.

    Além de fomentar a reflexão sobre o funcionamento do sistema prisional  e suas questões estruturais — saúde, violência institucional, violência de gênero, educação e trabalho —, o relatório discute as consequências do aprisionamento para as mulheres e suas famílias e conclama a sociedade a enfrentar o encarceramento feminino. A pesquisa reuniu e construiu argumentos que evidenciam a necessidade de desencarcerar mulheres.

    O perfil das mulheres nas histórias encontradas ao longo de dois anos de estudo não surpreende: a maioria é pobre, mãe, tem baixa escolaridade, é ré primária e encontra-se presa por acusações que envolvem tráfico de drogas ou pequenos furtos. Segundo o ITTC, o cárcere é mais uma violência contra a mulher e a justiça reproduz as históricas violações praticadas contra as mulheres.

    Lançamento do relatório “Mulheres Sem Prisão”, do ITTC. | Foto: Fernando Martins / Ponte Jornalismo

    Aprisionamento e invisibilização: violações são sistemáticas

    Durante o lançamento, na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), no Largo de São Francisco, pesquisadoras do ITTC ressaltaram a importância de ouvir as mulheres entrevistadas para o estudo, entender sua realidade e sua narrativa, como uma forma de compreender de que maneira o aprisionamento também é o resultado da invisibilização das mulheres.

    “As cadeias femininas não diferem das masculinas em relação à superlotação e existe uma insalubridade inerente ao cárcere. E o que percebemos nessas visitas é que existe uma violação de direitos sistemática”, disse a pesquisadora do programa Justiça Sem Muros do ITTC, Mariana Lins, que abordou uma sequência de violações a que as mulheres são submetidas no sistema prisional.

    “Tudo começa com o bonde”, como é chamado o meio transporte das mulheres em qualquer circunstância em que elas sejam deslocadas entre a unidade prisional e qualquer outro lugar, explicou a pesquisadora. “É um caminhão com pouca ventilação que tem um buraquinho só [para entrada de ar]. Elas ficam algemadas, têm pouco acesso à água, pouco acesso à comida, e podem passar, dependendo do percurso, muitas horas presas ali dentro. Muitas urinam, defecam, vomitam, passam muito mal”, contou. As presas permanecem desassistidas nessa situação, sejam jovens ou idosas, saudáveis ou idosas.

    Ao chegarem à unidade prisional, as mulheres passam pelo regime de observação, período de 10 a 30 dias durante o qual permanecem sem qualquer visita e após o qual são direcionadas às celas — sempre superlotadas. “Se tem 12 camas e 24, 30 pessoas, elas terão que se organizar ali, a dividir as camas, o que elas chamam de ‘valetar’. Isso ainda é considerado uma posição privilegiada, até porque elas tentam priorizar gestantes e idosas, mulheres que demandem uma atenção maior com relação ao descanso. E aquelas que não conseguem ‘valetar’ vão dormir no chão, ficando mais expostas a ratos, baratas, calor”, disse Lins.

    Pesquisadoras do ITTC apresentam relatório “Mulheres Sem Prisão” na Faculdade de Direito da USP. | Foto: Fernando Martins / Ponte Jornalismo

    Outro direito violado é de acesso à água, segundo a pesquisadora. Como o racionamento de água é frequente, há períodos em que as mulheres são impedidas de tomarem seus banhos, lavarem suas roupas e realizarem a limpeza das celas, o que acaba favorecendo a proliferação de doenças.

    A alimentação é outro grave problema. Há relatos de bichos na comida oferecida às detentas, muitas vezes azeda, de acordo com Lins. “Elas contam que faz adoecer. ‘Meu cabelo começou a cair porque eu não consigo comer direito’”.

    Há ainda o número muito limitado de vagas para estudar e trabalhar. “A demanda delas é diversificada, mas a oferta não é. Tem mulheres que querem e precisam da alfabetização, e mulheres que querem e precisam da profissionalização. A gente precisa dar conta disso, é um direito delas trabalhar e estudar. Mas infelizmente ainda é bastante difícil”, afirmou a pesquisadora.

    Por fim, Lins citou a questão das violações praticadas pelo GIR (Grupo de Intervenção Rápida), subordinado à SAP (Secretaria de Administração Penitenciária): “A Polícia Militar não entra mais hoje nas prisões de São Paulo, o que entra é esse grupo, que tem um treinamento militarizado, entra com cassetetes, com bombas de gás lacrimogêneo e cachorros. E revistam, reviram, cometem todo tipo e violações de direitos, agridem as mulheres, fazem-nas mostrar os peitos”.

    O GIR entra nas unidades quando acionado pela direção. “Podem justificar dizendo que há possibilidade de rebelião, que precisa fazer uma batida porque tem droga ali ou simplesmente porque acham que elas precisam ficar mais calmas, que precisam de opressão, e aí chamam o GIR, que faz esse estrago”, completou.

    Mais mulheres presas

    Desde o ano 2000, a porcentagem de aprisionamento de mulheres é maior do que a de homens, embora em números absolutos permaneça inferior, segundo a pesquisadora e antropóloga Bruna Angotti. “Isso se dá pelo investimento cada vez maior na guerra às drogas. Como as mulheres estão na ponta do circuito de drogas, como usuárias ou como aviões, muito na berlinda, em situações de mais vulnerabilidade e em espaços de fácil substituição, elas começaram a ser presas em maior quantidade a partir do momento em que se passou a reprimir o tráfico de drogas na ponta e no flagrante”, explicou.

    Também há, segundo ela, um movimento mundial de investimento no encarceramento feminino como uma política baseada no fato de as mulheres terem deixado de ocupar apenas os espaços mais reservados da sociedade e entrado no mercado de trabalho para além das casas onde trabalhavam como domésticas, integrando mais profundamente a vida pública. Seus “conflitos passaram a ser tratados na esfera pública”, completou Angotti, destacando que há ainda outros fatores a serem considerados para se explicar o aumento da porcentagem de mulheres presas.

    Pesquisadoras do ITTC apresentam relatório “Mulheres Sem Prisão” na Faculdade de Direito da USP. | Foto: Fernando Martins / Ponte Jornalismo

     

     

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