Artigo | Tese do “capital humano” naturaliza desigualdades e elimina solidariedade

Transformada em ministério por Javier Milei, ideia de um mundo em que somos todos capital e concorrência já adentrou, no Brasil, em movimentos sociais que abraçaram o empreendedorismo

Javier Milei no Fórum Economico Mundial | Foto: World Economic Forum/CC BY-NC-SA 2.0

Logo após sua posse, o presidente da Argentina, Javier Milei, anunciou uma ampla reforma no poder executivo na qual se destaca a criação de um Ministério do Capital Humano. A nova pasta contemplará as políticas de desenvolvimento social, trabalho e educação.

Fora do espectro liberal, tenho a impressão de que muita gente ainda não se deu conta de que capital humano implica diretamente no desaparecimento do trabalhador tal como o conhecemos – seja desde a revolução industrial, seja pelos escritos de Marx ou Bakunin, seja pelas lutas sindicais dos anos 1980 no Brasil.

A teoria do capital humano não é nova. Ela data da segunda metade do século XX e tem como grande formulador o economista Gary Becker, laureado com o Prêmio Nobel de economia em 1992. Entre os anos de 1978 e 1979, Michel Foucault dedicou, no mínimo, três aulas do seu curso anual no Collège de France para explorar a teoria do capital humano.

De uma forma bem simples, capital humano é o trabalhador transformado em capital. Ou ainda, cada trabalhador constitui seu próprio capital a partir de suas características herdadas ou adquiridas. O conjunto de suas forças, habilidades, conhecimentos ou, como se convencionou chamar mais recentemente, de suas competências, é um capital que produz, portanto, uma renda. Saem de cena o trabalhador e o salário e entram o capital humano e a renda.

Isso significa que cada um de nós é empresário de si mesmo ou, ainda, empreendedor. É por isso que já não se encontra por aí o “preço” ou o “valor” dos produtos e serviços. Virou tudo investimento: Visitar um museu, praticar exercícios físicos, viajar, ler, amamentar, ir a um show, fazer uma pós-graduação, mudar de cidade. Quem gasta, quem consome, é trabalhador. Empresário investe no seu capital. Somos, enfim, empreendedores. Somos empresas.

Não é à toa, portanto, que no ministério de Milei a pasta do Trabalho tenha sido engolida pelo Capital Humano. É uma forma tanto simbólica quanto material de demonstrar a teoria que, dizia Foucault, é uma das metamorfoses mais significativas do neoliberalismo estadunidense.

Enquanto a economia clássica se ocupava de terra, capital e trabalho, no neoliberalismo o trabalho sai da equação e as relações se dão entre capital e capital humano. Se é verdade que o capital tende a tornar tudo à sua imagem e semelhança, eis um bom exemplo. Essa guinada no pensamento econômico tem uma série de razões e de consequências que não consigo explorar em um texto como este. Mas pelo menos duas me parecem possíveis de abordar.

A primeira é que se a relação entre trabalhadores era da ordem da igualdade na exploração, com o capital humano, ela se torna um regime de concorrência entre empresas. Num regime de concorrência, a desigualdade é uma evidência na qual não se deve mexer. Além disso, uma vez que somos concorrentes uns dos outros, no máximo firmamos parcerias. Não há que se falar em solidariedade. Muito menos, de classe. Aliás, não há que se falar em classe, e essa é a segunda consequência.

De uma só vez, o capital humano transforma o trabalho em capital, o trabalhador em empresário, o salário em renda, e desaparece com a classe trabalhadora. Os efeitos são devastadores e podemos ver e sentir isso na desarticulação das legislações trabalhistas, nas dificuldades dos sindicatos em sobreviver, na própria formação de uma subjetividade empresarial. Ninguém mais quer ser trabalhador?

Aliás, é bom demarcar que Milei colocou a Educação no Ministério do Capital Humano, seguindo literalmente as lições de Becker que deu uma “especial atenção à educação”. A porção adquirida do capital humano – aquela que se aprende e agrega ao longo dos anos e faz a renda variar – deve ser alvo de investimento do Estado, já que, a esta altura, uma das funções reservadas ao Estado é fornecer as condições para o regime concorrencial. Mas isso é outro papo.

O fato é que a insistência atual em colocar educação financeira nas escolas não tem absolutamente nada a ver com ensinar pobre a não sujar o nome no Serasa (não sei como se chama na Argentina). A questão é formar empresários. Jovens que pensem como empresários, uma vez que são capital humano, empreendedores de si – e, sejamos honestos, não terão mesmo emprego quando se formarem. Jovens que saibam investir, ainda que, num regime concorrencial, o futuro da maioria seja ficar para trás.

Sem trabalho, sem trabalhador, sem classe, sem solidariedade, sem revolução. A teoria do capital humano é uma das teorias do fim da história com enredo distópico: viver em um mundo em que somos todos capital, concorrência e desigualdade brutal.

O ministério de Milei, obviamente, já é uma caricatura de tudo que se elaborou e está em funcionamento desde Becker e outros de sua estirpe. Mas não deixa de ser desolador saber que essa estratégia de poder já se imiscuiu, quase como num movimento natural de ondas que se propagam, pelos movimentos sociais que abraçaram o empreendedorismo, pelos governos que, diferente do argentino, não são estritamente identificados com a direita, pelos discursos de intelectuais de esquerda. No Brasil, aliás, agora temos um Ministério do Empreendedorismo, não é mesmo?

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Finalizo pensando nos filmes apocalípticos nos quais um vírus, uma bactéria, um contágio qualquer, vai transformando as pessoas em zumbis, replicantes, máquinas, monstros e resta um grupo, cada vez mais diminuto, lutando contra o tempo para não se transformar também no horror que combatem. Quantos trabalhadores ainda restam na saga para não se tornarem capital? E quanto tempo nos resta?

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