Artigo | Sobre provas e abusos

A condenação do jogador Robinho por estupro na Itália não serve para renovar a fé no sistema de justiça como maneira de impedir a violência sexual, explica Aline Passos, da Coluna Abolição

Foto: Divulgação / Santos FC

Mulher é um tipo de pessoa a quem se atribui ou se retira o poder de consentir de acordo com as conveniências de ocasião. Uma hora somos “loucas” que “inventam histórias” e, em seguida, somos alguém que “sabia exatamente o que estava fazendo”. O consentimento da mulher é avaliado, sopesado, dissecado, certificado ou negado a todo momento, inclusive, nos tribunais que julgam crimes sexuais.  

Na Itália, o jogador de futebol brasileiro conhecido como Robinho foi acusado e, por fim, condenado por estupro. Para que isso acontecesse em definitivo, no entanto, foi necessário, entre a primeira e a segunda instância judiciárias, que viessem à tona interceptações telefônicas onde Robinho, literalmente, dizia que a vítima estava “completamente bêbada”. Ou seja, não apenas a mulher se encontrava impossibilitada de manifestar qualquer consentimento como o então jogador do Milan sabia disso. 

É importante pensar no papel da interceptação telefônica e sua divulgação pela imprensa no meio do processo porque ela funcionou como uma instância de validação externa (prova, em termos jurídicos) da palavra da vítima. Embora Robinho estivesse condenado desde a primeira instância, o último recurso foi negado depois da divulgação das gravações de suas conversas com amigos. 

Se olharmos exclusivamente do ponto de vista do devido processo legal, é fácil constatar porque a palavra da vítima não pode ser o único fundamento de uma condenação. Isso violaria uma série de direitos e garantias fundamentais e, dentre elas, a mais importante, que é a presunção de inocência ou, se preferimos, a imperiosa absolvição do acusado diante da dúvida sobre os fatos. Como nenhum meio de prova é absoluto, então, apenas a palavra da vítima, ou apenas uma testemunha, ou apenas uma perícia, jamais devem ser capazes de fixar, em definitivo, uma verdade suficiente para condenar alguém. 

O processo penal, no entanto, não é uma espécie de tábula rasa. Não se entra em um processo penal esvaziado ou despido de relações e valores sociais que o precedem. Logo, a insuficiência da palavra da mulher sobre seu próprio consentimento diante de uma relação sexual precede o processo. Não se trata somente da palavra dela enquanto prova, mas da palavra da mulher enquanto mulher que, além e aquém de qualquer processo, é desvalorizada, desacreditada e “desmentida” o tempo todo. Assim, a palavra das mulheres vítimas de violências sexuais – e não só sexuais – entra no processo penal com uma espécie de dupla desvantagem: a relativização que deve sofrer qualquer meio de prova e a relativização da palavra que uma sociedade machista nos impõe para começo de conversa. 

A presunção de inocência, por sua vez, exige que todas as provas apontadas pela acusação sejam relativizadas no movimento do contraditório que organiza o processo. Cabe, assim, questionar o quão estratégico é submeter à relação processual a palavra de alguém que já é socialmente desacreditada. Obviamente, após a condenação do jogador Robinho, haverá quem diga, não sem qualquer razão, que o processo penal funciona, nem que seja em um caso ou outro, e que a justiça, pelo menos dessa vez, foi feita. Há ainda, entretanto, outras variáveis a serem consideradas que independem dessa sensação de justiça feita. 

Robinho também não entrou no processo penal isento de ser quem é. Trata-se de um jogador de futebol negro e brasileiro na Europa, mais especificamente na Itália, de forma que racismo e xenofobia não são detalhes neste caso. Com isso não se quer dizer que ele foi perseguido ou vitimado por uma condenação injusta, mas tão somente que ele foi pego como muitos jogadores brancos não foram e não serão, em que pese tenham violentado mulheres de forma semelhante. A existência de uma interceptação telefônica que serviu como instância de confirmação da sempre insuficiente palavra da mulher, e sua ampla divulgação na imprensa, inclusive brasileira, demonstram o empenho da justiça criminal na investigação e este empenho não é socialmente, nem politicamente, neutro. Assim, é importante lembrar que toda certeza que se tem hoje de que Robinho praticou um estupro deriva não só dos fatos, mas de como a justiça criminal processa os fatos a partir das hierarquias sociais de gênero, raça, classe, sexualidade e outras. 

Várias questões emergem dessas considerações e permanecerão em aberto. A mais urgente parece ser sobre a submissão do consentimento da mulher a um juízo de verdade que seja externo à própria mulher e que é uma condição inescapável do processo penal. Em que medida é possível romper com a desvalorização da palavra da mulher se, no processo penal, ela sempre terá que ser posta em dúvida além da dúvida que já carrega antes mesmo do processo? Quais foram a condições para que, no caso Robinho, a palavra da vítima vencesse a dupla desvantagem, tanto da presunção de inocência do réu, quanto da condição de mulher? Essas condições são replicáveis ou repetíveis em caso de estupradores brancos? E no caso de vítimas travestis, interceptações telefônicas serão suficientes para confirmar a palavra delas? Haverá interceptação telefônica? A partir do momento em que o consentimento da mulher será julgado como válido ou não, suficiente ou não, existente ou não, por alguém que não seja a própria mulher, quantas e quais serão as vezes em que poderemos falar de fazer justiça por meio da justiça criminal? 

Ajude a Ponte!

Essas inquietações não têm por finalidade condenar a condenação de Robinho. Elas têm, sim, o propósito de expor suas condições e seus limites para que possam servir de alerta contra eventuais movimentos de renovação da fé no sistema de justiça criminal, cujas exceções costumam surtir um efeito esperançoso de que, um dia, ele vai nos salvar da violência, do estupro. Não vai. E um dos tantos motivos pelos quais não vai é que nosso consentimento vai permanecer sequestrado e refém de uma estratégia de poder, de uma estrutura, que nos dá com uma mão o que nos tira com a outra, isto é, que reconhece valor de verdade na nossa palavra somente quando ela coincide com a reafirmação das verdades inconfessáveis da seletividade penal. Saber disso é fundamental para que possamos encarar armadilhas e tecer resistências sem ilusão sobre quem são e onde estão nossos aliados.

* Aline Passos é mãe de Benjamin, sergipana, doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. Professora de Direito Penal e Processo Penal. Pesquisa gestão privada de unidades carcerárias.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas