Justiça arquiva investigação de jovem morto com marmita em ação da Polícia Civil

Juiz acolheu pedido de Ministério Público e entendeu que policiais agiram em legítima defesa durante ação ocorrida em 2021, na zona sul de São Paulo, que terminou na morte de Gabriel Hoytil, 19

Gabriel Hoytil de Araújo, morto em ação da Polícia Civil em 2021. À dir., marmita que ele estaria segurando quando foi alvejado no rosto | Fotos: Reprodução / Instagram e Gil Luiz Mendes / Ponte Jornalismo

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) arquivou, nesta terça-feira (23/4), o inquérito que apurava a morte do engraxate  Gabriel Augusto Hoytil Araújo, baleado aos 19 anos durante uma ação da Polícia Civil no Morro do Piolho, no bairro do Campo Belo, zona sul da cidade de São Paulo, em 2021.

O juiz Roberto Zanichelli Cintra, da 1ª Vara do Júri do Foro Criminal da Barra Funda, acolheu o pedido do Ministério Público (MPSP) por entender que não existiam elementos para que fosse feita uma acusação contra os policiais.

O promotor João Carlos Casalvara argumentou que Gabriel estava traficando drogas na comunidade e reagiu à abordagem dos policiais, que dispararam, e foram apreendidas drogas e uma arma de brinquedo no local. Ele afirmou que não houve abuso por parte dos policiais e que eles atuaram em legítima defesa por se tratar de uma região “reconhecidamente ponto de venda de entorpecentes, funcionando durante quase que todos os períodos do dia, com olheiros, seguranças e entregadores de drogas”.

Ele afirmou que a dinâmica dos disparos, que atingiram a vítima na perna e no maxilar, ocorreram de acordo com a narrativa de policiais e testemunhas.

Em 20 de outubro de 2021, dois jovens detidos na comunidade disseram que Gabriel fazia parte do tráfico de drogas e que correram assustados, “cada um para um lado”, quando os policiais “deram voz de prisão”. Ambos, porém, afirmam que não viram o momento dos disparos, apenas que ouviram os tiros. Uma mulher que foi detida ao correr durante o tiroteio disse que não conhecia Gabriel nem sabia se ele tinha envolvimento com crime.

Moradores ouvidos pela reportagem negaram relação com tráfico e afirmaram, na época, que o engraxate estava apenas com seu almoço nas mãos no momento da abordagem. “Entraram dois policiais disfarçados no beco gritando ‘perdeu!’, só que o pessoal do tráfico não estava nesse local. Só tinha gente que não tinha nada a ver e correram assustados. O Gabriel estava com um marmitex na mão e o policial atirou na cara dele. Nós escutamos um policial falar para o outro: ‘não era para você atirar nele’”, relatou um deles, que não quis ser identificado.

Um vídeo mostra um morador discutindo com um dos policiais ao afirmar que “o menino não tava armado”. A morte gerou ao menos dois protestos por parte de familiares, amigos e ativistas.

Na ocasião, quem relatou o caso ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) foi o policial civil Mauricio da Costa Pereira, que chefiava a equipe de investigadores no 96º DP (Monções). Ele declarou que os policiais estavam investigando o tráfico de drogas na comunidade havia dois meses, foram realizar uma diligência no local e que um dos oito indivíduos alvo da apuração, que seria Gabriel, exibiu uma arma, que depois foi verificada ser um simulacro.

Segundo o chefe dos investigadores, “desconhecidos que estavam no interior da comunidade também começaram a efetuar diversos disparos contra a equipe, motivo pelo, a fim de se defenderem da injusta agressão, foi necessário o revide através de disparos de arma de fogo por parte dos policiais civis” Gilmar Guilon Silva e Sergio Augusto Tolomei Teixeira de Monteiro Palmeira. Mauricio Pereira disse que, conforme as informações deles, Gabriel “acabou ficando tanto na linha de tiro dos policiais civis como também daqueles homens desconhecidos que efetuavam disparos do interior da comunidade”.

Posteriormente, foi anexado um relatório investigação, que data de dois dias antes da ação no Morro do Piolho, em que Gabriel e um dos detidos foram identificados como sendo alguns dos homens fotografados pela Polícia Civil vendendo drogas nas imediações da comunidade.

No local, a perícia recolheu um projétil que estava na cena do crime e, depois, outro que foi retirado do corpo de Gabriel. Segundo a análise da Polícia Técnico-Científica, os projéteis eram compatíveis com armas de calibre 9mm. As armas de Gilmar Silva e Sergio Palmeira que foram apresentadas por Mauricio na delegacia e apreendidas, porém, eram pistolas .40, ou seja, não tinham compatibilidade.

Em 2022, as pistolas 9mm particulares dos policiais Alexandre Gonçalves Marques e Thiago de Almeida Fonseca Albuquerque, que participaram da ação e relataram não terem disparado, foram submetidas a exame de balística. A perícia apontou que os projéteis apreendidos não foram disparados por elas.

Gilmar e Sergio só foram formalmente ouvidos em 7 de junho de 2023, quase dois anos depois da morte de Gabriel. Isso aconteceu com base no artigo 14-A do Código de Processo Penal, que prevê que agentes públicos que se envolverem em mortes podem constituir um advogado ou defensor público em 48h antes de se manifestarem. Esse foi um dos mecanismos criados pela Lei Anticrime do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro e sancionada em 2019 pelo então presidente Jair Bolsonaro. Os dois policiais foram ouvidos no ano passado sem defensores.

Eles disseram que integravam uma operação com cinco policiais civis, sendo que Thiago e Sergio estavam disfarçados de técnicos de telefonia e Gilmar ficou na entrada da comunidade “para prestar apoio”. Alexandre e outro policial, André Hernandes, ficaram na viatura do lado de fora. Eles teriam combinado como código a frase “acabou o fio” para dizer se estavam em perigo e precisavam de apoio.

Isso porque Thiago teria visto a movimentação de várias pessoas com grande quantidade de drogas e “existência de algumas armas” e foi avisar Gilmar. Nesse momento, de acordo com os depoimentos, Sergio fez o aviso pelo celular porque viu traficantes apontando para ele com sinal de desconfiança. Quando Gilmar se aproximou, Sergio disse que deu voz de prisão a um grupo de três pessoas que estariam com drogas e uma arma. Um deles deitou no chão se rendendo, que teria sido detido por Thiago, e o outro ficou parado, momento em que Sergio disse que sentiu alguém lhe agarrou por trás e, por isso, deu um tiro, mas não viu se atingiu alguém. Depois conseguiu se desvencilhar e correr.

Gilmar disse que foi Gabriel quem deu uma “gravata” em Sergio e que, logo em seguida, Gabriel correu em sua direção. O policial conteu que disse várias vezes ser policial e mandou ele parar e se entregar, mas não teria sido obedecido. Gilmar afirmou que Gabriel tentou segurar a mão que ele empunhava a arma e que, por isso, deu um disparo em direção a ele. Logo em seguida, Gilmar teria ouvido “vários disparos vindos da viela” e foi se abrigar, momento em que teria visto vários traficantes armados subindo o morro. Depois, viu Gabriel caído no chão e não soube informar quem teria o alvejado. Sergio teria tentado estancar o sangue que saía do pescoço da vítima enquanto solicitavam o resgate.

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Em depoimento, Gilmar e Sergio disse que não viram se Gabriel estava armado. Thiago disse que não atirou nem viu o momento dos disparos pois foi conduzir os detidos, junto aos outros policiais que estavam na viatura e foram acionados. Gilmar disse que perto da vítima havia uma bolsa com 499 porções de entorpecentes, entre maconha, cocaína e crack, e que também foi localizada uma arma de brinquedo.

Logo depois, um tumulto com moradores teria se iniciado, que passaram a chamá-los de “assassinos”. Gabriel morreu no local.

O que dizem as autoridades

A Ponte solicitou entrevista com o delegado Fernando Moyses Elian, responsável pelo caso, com os policiais civis envolvidos, com o promotor João Calsavara e com o juiz Roberto Zanichelli Cintra.

A assessoria do Tribunal de Justiça disse, em nota, que “os magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento, pois são impedidos pela Lei Orgânica da Magistratura (Loman)”.

A assessoria do Ministério Público disse que o órgão se manifesta nos autos.

A Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, disse que “a Corregedoria segue apurando todas as circunstâncias relacionadas ao caso. Em relação aos demais apontamentos, a SSP não comenta decisões judiciais.”

Reportagem atualizada às 20h06, de 23/4/2024, para incluir resposta da SSP.

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