Após reportagem da Ponte, expedidor é absolvido por falta de provas e reconhecimento ‘falho’

PMs que prenderam Denilson Lucas disseram que, se as vítimas não o reconhecessem, “o cara sai pela porta da frente” e elas teriam “um lobo na rua aí de novo”; jovem ficou 11 meses preso

Após 11 meses presos, o expedidor de mercadorias Denilson Lucas Ferreira da Silva, 24 anos, foi absolvido de uma condenação de oito anos em regime fechado pelo crime de roubo. Vídeos das câmeras corporais dos policiais militares que prenderam o jovem mostraram um diálogo com as vítimas antes do reconhecimento pessoal. Nas imagens, reveladas pela Ponte em fevereiro (veja vídeo acima), é possível escutar um dos PMs dizendo que, se as vítimas não o reconhecessem, “o cara sai pela porta da frente” e elas teriam “um lobo na rua aí de novo”. A ação tornou o procedimento “falho e enviado”, entenderam desembargadores da 13ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que determinaram a absolvição. 

Em acórdão expedido na última quinta-feira (16/5), o relator, desembargador Marcelo Semer, destacou ainda que as três vítimas foram informadas pelos policiais de que a pessoa detida foi encontrada com os pertences roubados antes do reconhecimento pessoal.

O roubo ocorreu em junho do ano passado na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo. Um Fiat Palio bateu na traseira de outro veículo na rua Antônio Palmieri. A motorista do carro atingido e as duas passageiras desceram, momento em que foi anunciado o assalto por dois suspeitos. Elas tiveram pertences como bolsas, cartões e relógios levados.

Em depoimento prestado no 73º D.P. (Jaçanã), os PMs Genilson Soares de Oliveira e Flávio Rezende Carvalho Simões Leal contaram que faziam patrulhamento quando afirmam terem visto Denilson próximo de um carro que batia com a descrição do usado no crime. Os policiais voltaram ao local onde o veículo estava estacionado e abordaram o jovem, que já estava um pouco distante dali.

Próximo ao carro, afirmam ter encontrado dois cartões e um relógio, que depois se confirmou ser de uma das vítimas. Denilson negou que tivesse relação com o crime e disse várias vezes que “estão tentando me forjar”.

COPs desmentem versão dos PMs

Em análise às demais imagens das câmeras, o desembargador concluiu que elas mostraram versão dos fatos diferente da narrada pelo policial Flávio Rezende Carvalho Simões Leal em juízo. Apenas Flávio prestou depoimento nesta etapa.

Denilson contou estar na rua próxima à casa onde mora acompanhado por outras duas pessoas. Ele as conhecia e teria fumado maconha com elas. Depois, saiu para comprar leite para a filha Isabel, que na época tinha 11 meses. A abordagem ocorreu enquanto ele fazia o trajeto.

Para o desembargador, os policiais abordaram Denilson apenas por ele estar no mesmo bairro onde o carro roubado estava. As imagens das COPs mostraram a dupla incerta sobre onde haviam visto o jovem e o detiveram sem justificar razão concreta. 

“Ou seja, a narrativa de que o réu teria sido flagrado mexendo nos objetos subtraídos não é confirmada por quaisquer das provas produzidas no local”, escreveu o desembargador. 

Outro ponto é que a descrição feita pelas vítimas não batia com as roupas que Denilson usava na ocasião. As imagens mostram o jovem de camiseta laranja de mangas curtas. Pela descrição de uma das vítimas, o autor do roubo estava com uma blusa de frio, com gola alta. 

“Sendo assim, diante das evidências de que inexiste prova de que o réu estaria com os pertences subtraídos e sendo o seu reconhecimento falho e enviesado, as provas existentes nos autos contra o réu mostram-se demasiadamente frágeis a ensejar uma condenação”, afirmou. 

Denilson também foi absolvido da condenação de dois meses em regime aberto pelo crime de resistência. Para os desembargadores, embora o jovem tenha se desesperado ao saber que seria preso, ele foi rapidamente imobilizado pelos agentes.

As imagens das câmeras foram anexadas ao processo a pedido da Marcele Louize, defensora de Denilson. Contudo, não foi o bastante para convencer a juíza Adriana Costa, da 32ª Vara Criminal, que o condenou.

A sentença teve como base um inquérito concluído apenas um dia após o crime. Sem pedir diligências, o delegado Milton Elmokdisi Machado de Araújo, do 73º D.P. (Jaçanã), indiciou Denilson com base no reconhecimento feito por uma das três vítimas do roubo.

A apuração policial sequer respondeu de quem era o carro onde os pertences foram encontrados; se havia câmeras que registraram a cena narrada pelos policiais e também não pediu as imagens das câmeras corporais acopladas às fardas dos agentes.

O promotor Vagner Santos Queiroz não fez nenhum questionamento ao relatório policial e ofereceu denúncia no mesmo dia.

Vida após a prisão

Denilson deixou a Penitenciária I de Franco da Rocha no fim da tarde de sexta-feira (17/5). Na mesma data, a família já se reuniu para celebrar a liberdade do jovem. “Eu estou sentindo uma felicidade que não cabe no peito”, disse à Ponte Vittoria Aparecido dos Santos Carvalho, 24, esposa do expedidor.

Vittoria conta que a filha mais velha, Isabela, 4, não quer sair de perto do pai. Nesta segunda-feira (20/5), quando Denilson saiu para resolver questões burocráticas, a filha chorou. “Aonde ele vai, ela vai atrás”, conta.

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O abalo provocado pela prisão ainda faz eco no emocional do jovem. A esperança é que, aos poucos, ele consiga retomar a rotina. A esposa diz que o jovem tentará recuperar o emprego como expedidor de mercadorias, que tinha antes de ser preso. “O pior já passou, né?”, diz Vittoria. 

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP). Foram solicitadas entrevistas com porta-vozes dos órgãos e com os agentes públicos citados na reportagem. 

Por e-mail, as assessorias do MP-SP e do TJ-SP informaram que não se manifestaram. A SSP-SP não retornou até a publicação do texto. O espaço segue aberto.

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